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Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina

Vacas criadas em laboratório, atentados a bomba e invasões: como ação de grupos judeus extremistas sobre a Mesquita de Al-Aqsa ajudam a explicar ataque do Hamas.

Quando se trata de assuntos de guerra, profecias e escatologias religiosas são fatores que podem parecer mais distantes do que realmente estão. A guerra, afinal, é política. Mas a guerra e a política são feitas por homens e mulheres de carne, osso, paixões e espírito – seja o espírito como o definem os religiosos, seja o espírito como o definem as várias correntes filosóficas.

A fé religiosa – essa gigante que move montanhas e pode ser ao mesmo tempo causa e consequência de divisões e conflitos – consta entre as maiores paixões humanas de que se tem notícia, capaz de arregimentar multidões e exércitos para qualquer projeto, entre eles os violentos. Por isso é falha toda análise que separa em absoluto a fé e o poder, as religiões e a política, quando as sociedades de que se fala são muitas vezes organizadas, atravessadas ou divididas pelo fator religioso.

Berço das três maiores religiões monoteístas do mundo – o judaísmo, o cristianismo e o islã – o Oriente Médio é um dos primeiros exemplos que nos vem à mente quando pensamos na relação entre religião e política. Considerado sempre um barril de pólvora prestes a explodir, ainda que não tenha sido sempre assim, a questão religiosa atravessa ali também todos os aspectos da vida social. Mas, ao contrário do que comumente se diz, não é só o islamismo que possui variáveis consideradas mais “radicais” ou mais “moderadas” naquele terreno.

Também o judaísmo possui seus grupos de radicais religiosos, cujo tamanho e influência política na sociedade e Estado israelenses variam. Sua escatologia – isto é, a visão de mundo religiosa que profetiza e orienta seus seguidores rumo ao “destino final”, o fim do mundo como se conhece e ao próprio apocalipse – tem tomado um local de cada vez mais destaque na guerra em curso, além de ter seu peso entre os motivos que levaram o Hamas a decidir pelo ataque de 7 de outubro.

No discurso que marcou o centésimo dia da guerra em Gaza o porta-voz do Hamas, Abu Ubaida, citou, entre as motivações para o início das operações da operação Tempestade Al-Aqsa, um ocorrido de poucos anos atrás, quando judeus radicais, em aliança com cristãos protestantes dos Estados Unidos, transportaram do Texas para a Terra Santa cinco vacas (ou novilhas) vermelhas para um ritual de sacrifício religioso que aconteceu pela última vez quase dois mil anos atrás, em 189 d.C.. A que se referiu o porta-voz do Hamas e de que maneira isso é relevante para entender o aspecto religioso do conflito em curso?

A profecia judaica das novilhas vermelhas
Para a tradição escatológica judaica, o sacrifício de uma novilha vermelha é necessário para o ritual de purificação que permitiria aos judeus construírem seu Terceiro Templo em Jerusalém. A construção deste templo é um desejo antigo de grupos judeus radicais, que acreditam que esse é um passo necessário para a chegada de seu messias; um passo que precisa ser dado o quanto antes.

A bíblia hebraica explicita a profecia com mais detalhes. Outros dois templos anteriores eram locais de veneração e culto para os judeus em Jerusalém. O Primeiro Templo, também chamado de Templo de Salomão, foi destruído por Nabucodonosor II após o cerco de Jerusalém, no ano de 587 antes de Cristo. Já o Segundo Templo foi construído após o regresso do povo judeu a Jerusalém, por volta de 516 a.C., e durou até o ano 70 depois de Cristo, ocasião em que foi destruído na primeira guerra judaico-romana (ou grande revolta judaica), quando Herodes, rei da Judeia e representante do Império Romano na região, ordenou uma remodelação do templo com o propósito de agradar Júlio César – reforma essa considerada pelos judeus como uma profanação de seu local sagrado. Com o acúmulo de insatisfações e instabilidade político-religiosa, os romanos usaram uma revolta judaica na Palestina como justificativa para a destruição do local sagrado, proibindo também o judaísmo por todo território de Jerusalém.

Desde então e até hoje, com base em profecias da bíblia hebraica, judeus fundamentalistas de todo o mundo esperam a construção do Terceiro Templo de Jerusalém. Suas condições são explicitadas em inúmeros textos sagrados, e uma dessas condições aponta que seria necessário o sacrifício de uma vaca vermelha pura, mais especificamente – e segundo a própria bíblia hebraica – “a novilha vermelha deve ser absolutamente perfeita em sua vermelhidão. Mesmo dois fios de cabelo de qualquer outra cor irão desqualificá-la. Até os cascos devem ser vermelhos.”, detalhando ainda que o animal “não deve ter sido utilizado para nenhum tipo de trabalho físico e nunca ter sido colocado sob jugo”.

Desde os tempos de Moisés, profeta e líder religioso das três religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islã) – que segundo estimativas judaicas teria vivido há 3,5 mil anos atrás –, apenas nove animais vermelhos foram sacrificados. As razões de seu sacrifício (isto é, o motivo por trás da tradição) seriam conhecidas apenas por Moisés, algo reservado à categoria das coisas incompreensíveis por seu caráter divino.

Apesar de desconhecidas as razões do sacrifício, a necessidade do animal segue uma lógica própria: suas cinzas, segundo a crença judaica, são a única coisa capaz de purificar o corpo e alma de todos aqueles que de alguma forma estarão envolvidos na construção do Terceiro Templo. Quis a História que o nosso tempo fosse palco dos preparativos para o décimo sacrifício – preparativos já em estado avançado. Segundo a profecia judaica, uma vez sacrificada a novilha vermelha, o caminho para a construção do local sagrado no Monte do Templo, na Cidade Velha de Jerusalém, está livre; mesmo local onde estiveram o primeiro e segundo templos milhares de anos atrás.

Religião e tecnologia na preparação para o décimo sacrifício
Desde sua fundação, em 1987, o Instituto do Templo, uma organização dedicada à preparação da construção do Terceiro Templo em Jerusalém, tem conduzido – junto a outros preparativos – as buscas pela vaca vermelha, cujo sacrifício seria o único capaz de purificar os responsáveis pela construção. Por duas vezes acreditaram tê-la encontrado: em 1997 e em 2002, mas ambas as novilhas foram consideradas inadequadas para o ritual e abandonadas pelos religiosos, até que em 2015 lançaram um projeto ambicioso: por meio de um financiamento coletivo que levantou milhares de dólares, resolveram criar, a partir da manipulação em laboratório, “a primeira novilha vermelha perfeita autêntica e kosher em 2000 anos na Terra de Israel.”

A manipulação genética foi feita a partir da Red Angus, uma raça bovina de pelagem marrom-avermelhada, o que aparentemente deu certo. Em 2018, depois de décadas de busca infrutífera, o Instituto do Templo anunciou em seu canal no YouTube o nascimento da nova candidata a partir da manipulação humana em laboratório. Nas palavras do instituto: “Uma semana após seu nascimento, a novilha passou por um extenso exame por especialistas rabínicos, que determinaram que a novilha é atualmente uma candidata viável (…) Os especialistas rabínicos que conduziram o exame enfatizam que a novilha, embora atualmente tenha as qualificações necessárias, poderia, a qualquer momento no futuro, ser desqualificada por causas naturais e, portanto, a novilha será periodicamente reexaminada.”

*Opera Mundi

Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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