Pela primeira vez na história do Brics, movimentos populares, organizados no Conselho Popular do BRICS, terão um espaço oficial para apresentar suas pautas diretamente a chefes de Estado do bloco. A iniciativa inédita acontece neste domingo (6), no Rio de Janeiro (RJ), durante plenária da cúpula promovida sob a presidência brasileira do grupo em 2025.
Representantes da sociedade civil terão três minutos para intervir diretamente diante dos presidentes dos países-membros. O brasileiro João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), será o responsável por falar em nome do Conselho Popular do BRICS. Ele estará acompanhado de Raymond Matala, conselheiro pela África do Sul, e Victoria Panova, conselheira pela Rússia.
Além do conselho popular, a presidência brasileira também abriu espaço para a participação da Aliança Empresarial de Mulheres do Brics e do Conselho Empresarial do Brics, que igualmente terão três minutos cada para falas na plenária.
Participação social ganha força sob presidência brasileira
A abertura à participação social na cúpula é parte de um esforço da presidência brasileira do Brics em 2024 para ampliar o diálogo com setores da sociedade civil. Em abril, a presidência já havia promovido um encontro entre representantes populares e os chamados sherpas – diplomatas e negociadores de alto nível que atuam na formulação da agenda política do bloco. Agora, o gesto se repete de forma ainda mais visível, com a inserção das demandas populares diretamente na sessão com os chefes de Estado.
“O encontro é histórico porque consolida um método”, afirmou Stedile ao Brasil de Fato. “Todos estão de acordo que os problemas que os povos enfrentam, sobretudo no Sul Global, não serão resolvidos apenas por iniciativas governamentais. Ou a gente envolve o povo, ou não vamos superar a pobreza e a desigualdade.”
Entre os temas que devem ser levados aos presidentes estão a soberania alimentar, a industrialização dos países do Sul, a taxação de grandes fortunas, o controle dos paraísos fiscais, a desdolarização da economia mundial e o enfrentamento da crise climática por meio de propostas concretas como desmatamento zero e controle da mineração.
A seguir, confira a entrevista concedida por Stedile na véspera do encontro.
BdF: João Pedro, qual a importância do Conselho Popular do Brics? Fazer eventos paralelos com viés popular aos encontros de chefes de Estado está se tornando uma tradição. Foi assim na Cúpula da Amazônia, no G20…
Nós estamos aqui reunidos na primeira reunião, por isso que é histórico, aqui no Rio de Janeiro, do que é o Conselho Popular dos Brics.
Essa possibilidade foi confirmada como regra na última reunião dos presidentes, lá em Kazan. Por iniciativa da delegação russa, eles incluíram no documento essa proposta de que deveria ter um espaço formal constituído por representantes da sociedade civil – no que seria, então, um Conselho Popular dos Brics – que deveria se reunir também com esse mesmo espírito.
Então, aqui no Rio, é agora a primeira reunião que nós podemos realizar. E ela é histórica porque consolida um método. Porque todo mundo está de acordo que os problemas que os povos enfrentam, sobretudo no Sul Global, não serão resolvidos apenas por iniciativas governamentais.
Ou a gente envolve o povo, as organizações populares, as entidades da sociedade civil, ou dificilmente nós conseguiremos resolver os problemas que estão resumidos nos objetivos principais do BRICS como um todo, que são o combate à pobreza, o combate à desigualdade social e o desenvolvimento dos nossos povos.
Como vai ser esse espaço com os chefes de estado no domingo?
Bem, foi escolhido pelo conselho que fossem para a reunião dos presidentes o Brasil, a África do Sul e a Rússia. Acho que, de certa forma, é também uma deferência ao primeiro núcleo inicial dos BRICS.
E nós teremos oportunidade de falar, transmitir as opiniões do conselho aos presidentes, durante três minutos. Parece pouco, mas para defender ideias fundamentais já será suficiente. Lá nós vamos dizer a eles mais ou menos as ideias consolidadas no conselho, que estamos nos reunindo já há muito tempo de forma virtual, e aqui foi de forma presencial.
Primeiro, que nós nos somamos nessa ideia de que o objetivo principal do Brics é o combate à desigualdade social e à pobreza. Mas, para isso, nós temos que criar mecanismos de cooperação científica e tecnológica para industrializar os nossos países. Sem a industrialização, não é possível desenvolver.
Segundo, nós temos que desenvolver políticas de soberania alimentar para combater a fome. Não basta ficar distribuindo alimentos por aí. Cada país, cada povo, tem que ter as condições de produzir todos os alimentos que necessita.
E também diremos a eles que é importante seguir a luta pela desdolarização da economia mundial. Porque os Estados Unidos sempre usaram sua moeda – já que eles têm a maquininha de fazer moeda – como instrumento de exploração.
Eles emitem sem nenhum controle e vêm pelo Sul Global comprando o que quiserem. Então, é um mecanismo de concentração de renda, de espoliação dos nossos bens da natureza e de exploração do trabalho dos trabalhadores de todo o Sul Global.
Também vamos manifestar o nosso apoio à ideia de que tem que aumentar a taxação, tributar os milionários em todo o mundo.
Se houvesse a tributação sobre as 3 mil pessoas mais ricas do mundo, com apenas 2% sobre o seu patrimônio, sobre a sua riqueza, nós recolheríamos mais de 1 trilhão de dólares. Isso seria mais do que suficiente para eliminar a pobreza, eliminar a fome e desenvolver os países.
Nós defendemos o controle dos paraísos fiscais e do sistema financeiro mundial. Não é possível continuar com essa política de juros, como aqui no Brasil e em todo o mundo, que faz com que todo o trabalho das pessoas acabe sendo carregado num funil que vai para o capital financeiro. O grande espoliador do mundo hoje é o capital financeiro.
Vamos dizer que somos contra as guerras. Não é possível continuar essas agressões militares que têm como único objetivo manter o mercado das armas dos Estados Unidos e da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte].
E vamos terminar nossa manifestação dizendo que nós queremos que o conselho tenha uma vida perene, tenha uma formalidade, com secretaria, com recursos.
Pretendemos nos reunir no mês de outubro, na Bahia. Então, realizar uma conferência mais ampla, com 10, 15 delegados de cada país – de todos os países, dos 21 países – e outros que querem entrar, como a Venezuela, como a Colômbia e mesmo a Argentina. O Milei saiu do Brics, mas o povo argentino, não. Então, nós vamos trazer a Argentina também.
E, finalmente, nós vamos pedir apoio para eles. Só os Brics podem parar o genocídio na Palestina. Só os Brics podem ajudar o povo do Haiti, o povo do Sudão, o povo do Congo, o povo do Saara Ocidental, que são os povos que estão sofrendo mais agressões imperialistas nesse momento.
Diante da crise de representatividade dos mecanismos de governança do Norte Global, o Brics adquire ainda mais importância?
Nós estamos vivendo uma crise do capitalismo mundial. E isso trouxe como consequência a decadência do império dos Estados Unidos e a decadência daquele sistema de governança internacional que surgiu da Segunda Guerra Mundial.
Então, ninguém mais respeita a ONU [Organização das Nações Unidas], ninguém mais respeita o FMI [Fundo Monetário Internacional], ninguém mais respeita a FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura]. Nem sequer a agência de controle de armas atômicas, porque Israel tem a bomba atômica e não respeita.
Então, aquela arquitetura de governança mundial que existia no pós-guerra – que foi construída pelas forças que ganharam a guerra – agora está desmoralizada.
O Brics, apesar de ter muitas diferenças entre si, pode ser o espaço para se construir uma nova articulação baseada no Sul Global, que é o único que tem moral e condições políticas de fazer frente a essa crise geral que está aí.
É claro que os países entre si têm muitas diferenças, tanto pela economia, pela cultura, pela tradição diplomática deles. Mas eu acho que é mais do que necessário que se fortaleça o Brics como o único espaço hoje, que poderia ter um papel relevante para superar a crise e propor medidas concretas.
E sobre a crise climática? Vai ser mencionada?
O tema da crise ambiental, que é resultante da crise capitalista, é um grande tema. Nós vamos citar na intervenção. Porém, por ser tão grave e tão urgente, eu acho que nós teríamos que apelar para outras formas.
A COP 30 vai ser uma farsa. Lá vão se reunir os governos. Todas as COPs sempre foram controladas pelos poluidores, que são o Norte, Estados Unidos, a Europa, né? Eles não têm moral nenhuma de falar em meio ambiente. E estão pagando caro — vocês viram, nesse verão lá no Norte, está morrendo gente de calor, mas eles não se conscientizam.
E o Brics, eu acho que ainda não tem um acúmulo de entendimento. Por isso que eu acho que, como movimentos populares, nós teríamos que pensar e propor, quem sabe, outro tipo de iniciativa em nível internacional, que possa sensibilizar os governos, a opinião pública, sobre como fazer um grande mutirão internacional para tentar enfrentar essa crise ambiental.
Como MST, nós temos defendido, com outros movimentos aqui do Brasil, algumas iniciativas bem práticas e objetivas que podem fazer frente.
O primeiro é desmatamento zero. Você, imagine se nós estabelecêssemos no mundo que ninguém mais vai derrubar árvores. Já seria uma grande revolução.
Segundo, o reflorestamento. Temos que reflorestar. O Brasil tem 50 milhões de hectares degradados pela pecuária, pelo agronegócio, e mesmo nas cidades.
Em todas as cidades seria possível plantarmos muito mais árvores, sobretudo nas grandes cidades.
E, terceiro, tem que ter um controle da mineração. Não é possível mais aceitar esse tipo de agressão. A mineração é uma das que mais provocam agressões ambientais, né? Seja pelo garimpo, o mercúrio que é usado, seja pelas grandes mineradoras, as grandes empresas, como aqui no Brasil, a Vale.
Os principais crimes cometidos foram pela Vale, que não pagou nada. Continua, ninguém foi preso. Mataram 272 trabalhadores deles mesmos, e ninguém vai preso. Se alguém assalta aqui e rouba o celular de alguém, vai preso. Agora, matar 272 pessoas, ninguém vai preso.
Então, é preciso controlar as atividades da mineração. Se nós começássemos a difundir esse programa mínimo em todo o mundo — controle da mineração, desmatamento zero e reflorestar o nosso planeta — eu acho que já teríamos um alívio, para não chegarmos ao ponto de retorno zero.
*BdF
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