Relatos e dados contradizem a versão oficial e revelam operação sem transparência, marcada por sumiços, repressão e desinformação.
A dispersão abrupta da população usuária de drogas da região da Luz, histórico epicentro da chamada Cracolândia em São Paulo, não significou solução para a crise social e humanitária que se arrasta há mais de duas décadas na capital paulista. Segundo diversos relatos obtidos pela reportagem do ICL Notíicias, o que ocorreu foi um deslocamento forçado, sem planejamento e cercado de silêncio institucional, que espalhou a cena de uso por outras regiões da cidade. A operação é marcada por falta de transparência, violações de direitos e ausência de estratégia articulada de acolhimento.
As consequências desse processo são vividas em extremos: na Luz, comerciantes relatam alívio e melhoria nos negócios. Em bairros como Parque Dom Pedro, Canindé, Marechal Deodoro e Brás, a rotina passou a ser marcada por violência, insegurança e sensação de abandono. “Chegamos um belo dia e não tinha mais morador. Do nada, foram embora. Pra gente foi bom”, relatou Giovani, comerciante da Luz há mais de 30 anos.
Ele conta que uma base policial, instalada em frente à sua loja, foi desmobilizada cerca de duas semanas antes da dispersão. Ainda que tenha notado melhora no movimento e no faturamento, Giovani acha que isso será temporário e que a qualquer momento a região voltará a ser o que era. Ele reconhece que a solução na região não foi definitiva.
Na outra ponta desse deslocamento, os relatos são de colapso. No Parque Dom Pedro, uma comerciante que atua há 22 anos na região diz que o comércio “caiu mais de 50%”. “Eles brigam de soco, de faca, com pau. Ninguém tem paz aqui. A gente não pode nem reclamar”, afirmou à reportagem. Segundo ela, o medo é constante: “Não tem a mínima segurança. E a situação piorou para todo mundo aqui, não só para mim”.
Outros lojistas ouvidos na região, sob condição de anonimato, apontaram o mesmo cenário: tensão constante, prejuízos, e total ausência de interlocução com o poder público. “A GCM chega batendo. Os usuários respondem. E a gente fica no meio, sem saber o que pode acontecer”, disse um deles. Em alguns trechos, comerciantes relataram já ter solicitado reforço da polícia para garantir segurança mínima, mas sem retorno efetivo.
A sensação de insegurança faz com que, mesmo há poucos metros de uma base da Polícia Militar, comerciantes relatem queda no movimento, medo e insegurança.
Segundo Leona, do Instituto Luz — organização que atua no território com recursos federais da emenda parlamentar da deputada Erika Hilton —, a dispersão foi resultado de uma operação silenciosa e violenta. “Foi da noite para o dia. Não encontramos mais as pessoas. Vieram os relatos: remoções forçadas, veículos descaracterizados, agressões, ameaças de morte. O pânico se instalou”. Leona afirma que não houve aviso prévio ou qualquer articulação entre os órgãos públicos e as entidades que atuam no território. “É uma política de apagamento. Não há diálogo, nem transparência.”
A violência foi detalhada também por Marcel Segalla Bueno, do coletivo A Craco Resiste. Segundo ele, abordagens da GCM incluíam espancamentos e ameaças com exibição de fotos de pessoas desaparecidas: “Não é mais uma operação policial, é milicianização da Guarda. As pessoas estão sendo levadas sem que se saiba para onde. Elas simplesmente somem.” Em relatos adicionais enviados à reportagem, ele menciona também denúncias de veículos utilizados sem identificação, vans brancas e caminhões que recolheriam usuários durante a madrugada para destinos ignorados.
Cracolândia foi desmontada
A reportagem esteve na Praça Marechal Deodoro, identificada em reportagens anteriores como novo reduto de usuários. Um “mini fluxo” chegou a se formar ali, com barracas improvisadas e até uma banquinha de venda de drogas e insumos. Quando a equipe voltou à região, tudo já havia sido desmontado. Uma base policial ocupava o local. Uma agente da PM informou que a base havia sido deslocada no dia anterior com a missão de impedir a formação de novos fluxos. Segundo ela, essa é a nova diretriz: onde houver foco de aglomeração, será montada imediatamente uma base policial. Resta saber se essa estratégia é sustentável a longo prazo.
A dispersão pulverizou a cena de uso por São Paulo. Núcleos foram identificados em bairros como Canindé, Bom Retiro, Brás, Parque Dom Pedro e regiões da zona leste e sul. Em muitos desses pontos, há relatos de pequenos agrupamentos, consumo a céu aberto, uso de becos e áreas periféricas como novo refúgio. Moradores relatam aumento de conflitos, sensação de abandono e recrudescimento das abordagens violentas. Em alguns locais, comerciantes passaram a fechar mais cedo, enquanto outros adotaram rotinas de segurança privadas para lidar com os riscos. Há também registros de aumento de pessoas dormindo nas ruas em regiões como Vila Maria, Penha, Capão Redondo e Santo Amaro, locais que anteriormente não abrigavam esse perfil populacional de forma expressiva.
Apesar disso, os relatórios oficiais da Prefeitura apontam números robustos e estáveis de atendimentos nos meses que antecederam o desaparecimento da população da Luz. Em abril de 2025, o Programa Redenção registrou 14.041 abordagens, sendo 10.143 de saúde e 3.898 de assistência social. Em março, haviam sido 10.636 abordagens (7.298 de saúde e 3.338 sociais) e, em fevereiro, 10.994 (6.068 de saúde e 4.926 sociais). Os números não indicam qualquer variação expressiva que justificasse uma migração espontânea ou acolhimento em massa — ao contrário, mantêm-se dentro da média histórica do programa.
Os encaminhamentos registrados em abril seguiram a mesma proporção: 274 para a rede de saúde, 845 para acolhimento, 1.287 para o HUB Álcool e Drogas e apenas 37 para leitos hospitalares. No mesmo mês, o município informou que 4.207 pacientes foram atendidos nos CAPS AD, e 961 pessoas estavam vinculadas a programas de capacitação profissional. Foram registrados ainda 104 casos de autonomia de moradia e 186 de autonomia de renda.
Esses dados, no entanto, contrastam com o relato de quem vive a crise nas ruas. O número de acolhimentos é visivelmente inferior ao contingente que desapareceu da Luz em poucos dias. As estruturas da rede — CAPS, SIATs, POT Redenção, Atende — não comportam uma migração forçada e repentina. A ausência de picos ou alterações significativas nos dados reforça a suspeita de que não houve acolhimento em larga escala, mas sim dispersão e realocação silenciosa e improvisada para outras regiões da cidade.
Deslocamento de usuários foi naturalizado
A desarticulação entre os números da gestão e a vivência concreta nos territórios expõe o descompasso entre a política pública no papel e sua aplicação. Segundo técnicos que atuam na rede socioassistencial, há uma “naturalização institucional” de que parte dessa população será deslocada, sem que se criem mecanismos estruturados de acolhimento e reinserção. “Na prática, o que vemos é a reprodução de ciclos de exclusão. A operação muda a paisagem urbana, mas não resolve o problema. Só o distribui”, avaliou uma fonte técnica que preferiu não se identificar.
Não há qualquer explicação oficial para o que ocorreu. Nem a Prefeitura de São Paulo nem o governo estadual divulgaram informações sobre a operação que esvaziou a Luz. Tampouco há dados sobre internações, transferências, acolhimentos ou estratégias de realocação. O Ministério dos Direitos Humanos, segundo fontes, também enfrenta dificuldades em obter respostas. O silêncio é institucional.
E o medo, generalizado. Comerciantes evitam falar. Moradores não se identificam. Usuários somem sem deixar rastros. A tensão ocupa os territórios, antes, durante e depois da presença da Cracolândia. A cidade que acredita ter resolvido o problema, assiste agora ao surgimento de várias outras Cracolândias — menores, espalhadas, ainda mais vulneráveis e invisíveis.
Não se trata apenas de omissão. Trata-se de uma política ativa de silenciamento. E de um medo que toma conta de todos: de falar, de ser visto, de ser punido. E também de desaparecer.
*A reportagem é de Cleber Lourenço e Lucas Allabi, publicada no ICL.
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