99 corpos foram identificados nesta sexta; famílias de pessoas consideradas desaparecidas seguem em busca de seus entes
Misturada ao choro desesperado da certeza da morte — que fundia a dor profunda da perda com a angústia em meio à longa espera pela liberação de corpos já reconhecidos —, outra tensão se manifestava na porta do Instituto Médico Legal (IML) do Rio de Janeiro, na manhã desta sexta-feira (31): a de familiares de pessoas ainda consideradas desaparecidas, que buscam pelos corpos de seus entes — uma espécie de autorização para viver o luto, que somente a certeza de “ver para crer” parece oferecer para quem, agora, já não tem mais esperança.
“Ninguém sabe dizer onde está o corpo do meu irmão”, repetia Tássia Caroline da Silva Carvalho, de 33 anos, chorando pelo irmão, Wallace, 30, que visualizou pela última vez o WhatsApp por volta de 1h da madrugada de terça-feira (28). A data se refere ao dia que teve início o massacre protagonizado por policiais civis e militares entre os complexos de favelas da Penha e do Alemão, na zona norte da capital fluminense. “Falaram que ele tava aqui desde a primeira remessa. A gente tá procurando, já fez cadastro, fica vindo aqui e ninguém sabe informar nada. Isso é um desrespeito com a vida dos outros”, desabafa.
“E eu perdendo dias de serviço, procurando, ainda tenho que fazer traslado, levar o corpo do meu irmão para a Bahia. Meus pais estão desesperados e só eu moro aqui”, completa.
Assim como o irmão, Tássia mudou-se de Ilhéus (BA) para o Rio em busca de uma vida melhor. Ela vive em Macaé, e Wallace morava no Alemão, com a companheira e uma filha, uma bebê de seis meses. Ao seu lado, durante a entrevista, as silenciosas lágrimas da cunhada, Ana Clara, viúva aos 18 anos, diziam muito. Não queriam ser fotografadas, só desejam o fim da espera pela identificação do corpo de Wallace. Em dezembro, o rapaz completaria um ano em que chegou ao Rio de Janeiro e deixou duas filhas pequenas na terra natal: uma prestes a completar sete anos e outra de um.
“A gente sabe que ele tava fazendo coisa errada, mas era uma vida, tem família. E a gente não ia desistir dele, é meu irmão, eu não faria uma coisa dessa, é meu sangue. Pedi tanto para ele sair daquele lugar, meu Deus”, conta Tássia.
“Infelizmente, quando você se envolve numa vida dessa, se não tiver outras oportunidades e tiver filho para criar, você acaba continuando naquilo. Só quem nunca passou que não sabe o que acontece”, lamenta.
Quando soube o que estava acontecendo na região, ela começou a tentar contatar o irmão, mas as mensagens já não chegavam, e o telefone já não chamava. E então começaram as notícias da barbárie. “Começaram a me mandar várias informações cruzadas, que ele tinha morrido, que estava preso, que tinham arrancado a cabeça dele”, conta, já sem esperança de rever o irmão.
“Cheiro de sangue com Pinho Sol”
Desde o episódio brutal em que pelo menos 121 pessoas foram assassinadas – e o que se ouve no território onde aconteceu a chacina é que esse número é muito mais elevado –, a palavra “esperança” soa vazia para quem vive, cotidianamente, a violência do Estado, por meio de suas forças policiais, nas favelas cariocas. Pelas ruas da região que foi palco do maior massacre da história do país, o que se vê são rostos marcados por emoções difusas: há tristeza, muita revolta e um profundo cansaço.
Um cenário em que predomina uma espécie de cheiro de morte, como relata o vice-presidente do Instituto Papo Reto, Thainã Medeiros.
“Vendo conhecidos meus ajudando a carregar corpos, eu via um olhar de cansaço. E um cheiro de sangue com Pinho Sol, que agora percebo ser o cheiro que eu associo à morte”, diz, referindo-se ao dia seguinte da chacina, quando viu mães chorando, debruçadas sobre seus filhos ensanguentados e um grupo de moradores lidando com corpos, em muitos casos, mutilados. Quando ele e alguns companheiros caminharam pela mata da Vacaria, entre o fim da manhã e o início da tarde de quarta-feira (29), ainda encontraram corpos.

Após a reunião entre as ministras de Direitos Humanos e Cidadania, Macaé Evaristo, e da Igualdade Racial, Anielle Franco, com líderes comunitários, organizações de direitos humanos e parlamentares na sede da Central Única das Favelas (Cufa), na favela Vila Cruzeiro, na Penha, ocorrida nesta quinta-feira (30), a reportagem do Brasil de Fato seguiu, de mototáxi, até o local onde teve início a chacina.
O mototaxista, que pediu anonimato, chorava ao relatar o exato momento em que, recolhendo com colegas corpos deixados pelos policiais na mata, encontrou, sem vida, um de seus melhores amigos, que conhecia desde muito novo. “Ele era meu fechamento”. As buscas e o recolhimento de corpos foi iniciada somente depois que os policiais deixaram a favela, segundo o mototaxista, já que antes disso os agentes não permitiram.
Mais para o alto, ao caminhar pelo território, dezenas de perfurações nas casas e muros dão concretude à dor e a revolta que os moradores das favelas sentem desde os fatos da última terça-feira. Ainda que receosos em falar com a imprensa, seja por medo ou mesmo desconfiança, uma moradora se aproxima da reportagem: “Vem cá ver o que eles fizeram com a minha casa, entra aqui, vem ver!”

Alguns relatos dão conta de que, entre as vítimas que eram integrantes do Comando Vermelho (CV), todos já se encontravam rendidos, quando foram baleados. “Eu vi eles gritando ‘perdi, perdi’, se entregando, e os caras sem motivo atirando e ainda comemoravam”, conta a prima de uma vítima, no portão do IML, na manhã desta sexta-feira.
“Se fosse familiar, se fosse um filho deles na vida errada, iam sofrer do mesmo jeito, como nós estamos sofrendo. Ia ser até pior, porque eles não iam aceitar”, afirma.
“É muito fácil vir uma pessoa julgar, falar que ‘bandido bom é bandido morto’ quando não é seu parente. Ninguém tem direito de falar isso, ninguém tem como nem imaginar a dor disso. Para mim, os verdadeiros bandidos são esses covardes de farda”, encerra a jovem, que veio com a família do Pará para o Rio e vive na Penha.

Por volta das 21h da noite de terça-feira, fora do epicentro principal da chacina, o empresário Douglas, de 30 anos, voltava em seu carro para casa e passava pela estrada Adhemar Bebiano, no Complexo do Alemão, quando foi baleado por quatro policiais que, a bordo de duas motos, sequer o abordaram, conforme testemunhas contaram à sua esposa, Carine Andrade, 30.
“Eles não o mandaram parar, não houve nenhum tipo de abordagem ou perseguição policial, eles simplesmente alvejaram o carro com mais de cinco tiros e um desses tiros acertou o rosto do Douglas. Ele está em estado grave no hospital, precisando de um leito de CTI e vai ter que passar por várias cirurgias de reconstrução da face”, conta a esposa.
“O lugar foi todo mexido pelos policiais, temos provas e testemunhas de que ele não tinha nenhuma arma, que não tinha troca de tiro. Mas, no registro de ocorrência, os policiais alegam que teve uma troca de tiros, que ele estava armado”, critica.
“Além de estar no hospital, inconsciente, sedado, lutando pela vida, ele ainda está preso, sob custódia, acusado de tentativa de homicídio, como se tivesse atirado nos policiais”, completa Carine, que auxiliada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), quer provar a inocência do marido.
“Quem pratica terrorismo no Brasil é o Estado”
A chacina do Complexo do Alemão e Complexo da Penha é um marco histórico na violência de Estado no Rio de Janeiro, segundo o advogado Guilherme Pimentel, coordenador da Rede de Atenção a pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave), que atendeu mais de 70 familiares de vítimas desde terça.
“Além de ser a maior chacina, ela também é uma operação policial que multiplicou bastante a quantidade de mortos da segunda maior chacina. Mas ela também é um marco no Rio de Janeiro porque mostra quem é Cláudio Castro, esse governador que entra para a história por ser responsável por quatro das cinco operações policiais mais letais da história do Rio de Janeiro”, analisa Pimentel.
“Esse governador que faz uma chacina que não é só eleitoreira, com o objetivo de angariar votos, disseminando fake news e ativando redes de ódio na nossa sociedade. É também uma chacina para desviar o seu verdadeiro caráter de criminoso”, destaca.
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A chacina serve ao propósito do governador de, segundo Pimentel, “criar um falso debate a partir de fake news sobre o combate ao crime, quando todos nós sabemos que ele e os seus comparsas são os verdadeiros responsáveis por organizar o crime no Rio de Janeiro”.
O contexto que o Rio de Janeiro vive, de acordo com o coordenador da Raave, é “desumano, porque trata as vidas negras, as vidas nas favelas, como descartáveis e como meras peças no tabuleiro em que a política criminal com derramamento de sangue é uma engrenagem para interesses políticos desses grupos que sempre estiveram no poder no Rio e que são responsáveis por chegarmos a esse cenário”.
Criada por mães de jovens assassinados por policiais, reunindo vítimas de violência de Estado e defensores de direitos humanos, a Raave atua no acolhimento e cuidado de pessoas que tiveram seus direitos violados ou que vivem em situação de vulnerabilidade social.
Desde a chacina, a equipe tem estado presente no IML, no território e nos hospitais, oferecendo às famílias suporte e ajudando com o apoio jurídico e psicossocial necessário neste momento de total desamparo. Articulada com as universidades públicas, instituições de direitos humanos e grupos clínicos, é uma rede de apoio capaz de produzir uma política de cuidado que deveria existir como política pública, como defende Pimentel, que foi também Ouvidor da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro de 2020 a 2023.
“Ninguém no Rio de Janeiro se sentiu mais seguro depois daquela operação. Muito pelo contrário. A população do Rio hoje está se sentindo extremamente insegura e isso significa que a política de segurança do Cláudio Castro é um fracasso”, define.
Pimentel afirma que a gestão e a forma de conduzir a Segurança Pública de Castro movimentam o que ele chama de “necromercado de armas e munições”, e que, por isso, o governador tem resistência a colocar câmeras nos fardamentos e GPS nas viaturas. “Todos nós sabemos que agentes públicos estão envolvidos no tráfico de armas e munições”, critica Pimentel.
“Essa matança, então, vai gerar esse necromercado, seja com o aumento dos valores dos arregos, seja com o aumento das encomendas de armas e munições, que é o que está acontecendo agora, depois da operação, seja com o mercado de vidas, que quadrilhas rivais movimentam a partir dos agentes públicos para gerar essas mortes”, conclui o advogado.
A entrada do aparato repressivo do estado do Rio no complexo de favelas no terceiro dia após se completar 50 anos da morte, sob tortura, de Vladimir Herzog, veio “para relembrar aos pobres que essa história de cidadania e democracia não é para todos”, segundo o doutor em Ciência Política João Batista Damasceno, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
“O aparato torturador e assassino herdado da ditadura empresarial-militar não foi desmontado com a redemocratização limitada aos bairros de classe média. Nas favelas e periferias, o Terror do Estado se manteve intacto. Nas chacinas praticadas pelo Estado tem sido recorrente a denúncia de familiares de mortes causadas por arma branca: faca ou punhal. Já ouvi relato de policial que integrou o Bope que tal treinamento faz parte do curriculum”, afirma.
Para o desembargador do TJ-RJ, “as perícias feitas pelo órgão de perícia da Polícia Civil, quando crimes podem ser praticados pela própria Polícia Civil, deixa dúvida sobre a idoneidade dos laudos” e “o falseamento de laudos é rotineiro no Brasil”. Ele defende que “a maior chacina já ocorrida no Rio de Janeiro precisa ser federalizada e as perícias acompanhadas por órgão federal, não sujeito hierarquicamente ao governo do Estado”.
Como exemplo, ele cita novamente a ditadura militar, quando “o médico-legista Harry Shibata ficou conhecido por elaborar laudos falsos para encobrir a tortura e a morte de presos políticos”, sendo o episódio mais notório no qual se envolveu exatamente o do jornalista Vladimir Herzog, em 1975.
“Além da necessidade de apuração adequada, é preciso entender que o caso não está apenas no campo jurídico, porque foi deslocado para o campo geopolítico. A ideia difundida de que se trata de combate ao narcoterrorismo não é inocente. É uma revisita à Guerra Fria e à tutela do território nacional pelos EUA. Mas o terror é do Estado”, pondera o desembargador.
“A necropolítica se fundamenta no choque e temor, capaz de intimidar os vulneráveis. Os crimes contra a humanidade praticados na terça-feira não podem ser vistos apenas como uma operação policial estadual. Trata-se de uma operação psicológica planejada, sob cartilha estadunidense, para instituir instabilidade e difundir que vivemos sob o domínio do narcoterrorismo”, enfatiza Damasceno.
“Que a cadeia de comando que ordenou tais execuções, crimes contra a humanidade, seja submetida ao Tribunal Penal Internacional (TPI), se inexistente no Brasil instituições que apurem as responsabilidades”, encerra.
*Brasil de Fato
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