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A posse de Trump e a democracia capturada pelos algoritmos

Percorri as ruas de Washington horas antes da posse de Trump e vi pessoas cansadas, indiferentes à democracia.

Washington amanheceu fria nesta segunda-feira (20), com – 4ºC. Todos os blocos próximos à Casa Branca estavam hermeticamente fechados para carros. Perguntei ao funcionário do hotel se toda cerimônia de posse presidencial era sempre assim e ele respondeu que não. Disseram que Trump já havia sofrido dois atentados e que toda essa segurança era devido ao risco de um novo atentado.

Estou em Washington a trabalho e sabia que iria passar o fatídico dia aqui. Saí para fotografar a movimentação por volta das 10 horas da manhã. A posse aconteceria só ao meio-dia, mas me surpreendi. Não havia alegria nas ruas. Para falar a verdade, as ruas estavam vazias. Estou retomando a fotografia e levei uma pequena Leica. Não havia autorização para câmeras grandes sem apresentar credenciais ou dar explicações. Saí com essa pequena Leica e vi pessoas cansadas.

Não havia absolutamente nenhum jovem ou grupo de jovens que poderia ter votado no MAGA (sigla em inglês para Faça América Grande de Novo, o slogan de Trump). Havia pessoas velhas que vieram no dia anterior de ônibus, muitos trabalhadores, crianças dormindo ou no colo dos pais, e algumas maiores brincando com as bandeiras. Mas pouquíssimos negros e latinos. Uma senhora muito idosa passa com andador, ajudada pela filha, vestindo um pijama com a estampa da bandeira americana. Ela segue vagarosamente, numa parábola do que são os Estados Unidos neste dia de posse.

Havia alguns cosplays com muitos adereços. Passou um com chapéu de alce, chamando a atenção de dois jornalistas. Ele celebra a invasão do Capitólio como um ato de “liberdade suprema”. Eu e os repórteres, que são franceses, nos olhamos com extrema consciência do que estamos presenciando. Talvez o fato mais importante deste século. Trocamos algumas palavras em francês e fomos para lados opostos. Sabemos, eu e eles, que a democracia está nas mãos dos “riots” agora.

A democracia que presenciamos é indiferente às mudanças climáticas, ao valor do salário mínimo congelado há vinte anos, à pobreza que as barracas de moradores de rua testemunham. A democracia capturada pelos algoritmos, pelo big oil, pelo capital e pelas corporações. A democracia da oligarquia, que Bernie Sanders denunciou há poucos dias. A democracia de Martin Luther King – que tem hoje o seu dia – presencia a queda dos valores de tolerância e cooperação de forma acelerada.

Na frente do restaurante Hamilton havia um checkpoint calmo. As pessoas chegavam e tinham tempo de comprar bonés e camisetas. Estavam felizes porque a América cindida, a América dividida, retornou com seu showman. Tirei algumas fotos dos apoiadores de Trump pelo reflexo dos letreiros deste restaurante. E pensei: Alexander Hamilton e James Madison foram os responsáveis por não se adotar a democracia total, mas a democracia parcial das elites e dos colégios eleitorais. Madison, com seu medo tremendo de que o povo empoderado dos novos estados fizesse, por exemplo, uma reforma agrária com as terras da maioria dos congressistas constitucionais, grandes latifundiários. O paradoxo da Revolução Americana de 1776 e da Constituição Americana, que garantiu que todos os homens eram livres, enquanto mantinha seus pés sobre as cabeças dos negros e indígenas que construíram esta nação.

O que querem essas pessoas cansadas e empobrecidas que vejo nos checkpoints? Querem o retorno da meritocracia ou o privilégio branco? Querem se livrar da vida baseada em empréstimos infindáveis ou da dupla jornada? Querem se livrar do idioma espanhol ou chinês que ouvem pelas suas ruas? Pensam que os anos de ouro do milagre econômico estadunidense, no início do século passado, são possíveis e retornarão simplesmente anexando territórios como Groenlândia e Canadá?

Essas pessoas não sabem, e nem lhes interessa saber, que as big techs têm muito a ver com os algoritmos que fizeram com que os Estados Unidos estivessem em seu estado de irreconciliabilidade. Em seu modo mais refratário aos ideais de liberdade e igualdade que moldaram pensadores como John Rawls e Henry David Thoreau. Elas não sabem que uma elite muito mais poderosa que a Inglaterra colonial chegou ao poder agora. Que brinda nos salões privados e chiques da capital norte-americana a ascensão do projeto 2025, que vai desmontar o sistema de freios e contrapesos que Madison pensou para evitar oligarquias ou tiranias. O projeto que já deu certo na Polônia e na Hungria de desmontar o estado por dentro, retirando funcionários de carreira e colocando pessoas fieis ao ideal MAGA.

E o Brasil é a próxima parada dessa oligarquia que abocanhou a democracia com seus algoritmos e poder econômico das corporações. A viralização do vídeo de um deputado federal contra o Pix demonstra que toda a máquina de moer democracias já se dirige para as cabeças dos Brics. Os Brics, que hoje são o único contraponto que temos para obstar a subjugação total do capital sobre a democracia real. De uma ágora real contra a ágora inventada pelo rolar da timeline.

Como lidar com a indiferença à democracia é a grande pergunta que faço. A verdadeira liberdade ainda nos importa? O que Rawls ou Thoreau diriam de pessoas como Zuckerberg ou Musk, que cooptaram e se aliaram ao fascismo?

Abandono as ruas vazias de Washington. A democracia vazia tornou-se indiferente ao futuro da humanidade. O mundo totalitário do século 21 não terá tortura, prisões políticas ou extermínio em massa. O mundo totalitário pós-Hannah Arendt, que tão bem descreveu o estado totalitário clássico, terá os algoritmos de persuasão certos. E alguns poucos, com cabeça de alce, para celebrar isso.

*BdF

Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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