Foi a foto da família, velando o corpo do Senador, que se impregnou na minha memória.
Luis Nassif*
Dia desses, o Globo publicou, do seu acervo, o episódio da morte do senador José Kairala, assassinado pelo também senador Arnon de Mello, pai de Fernando Collor. O episódio é curioso.
Lembrei-me de um certo dia nos anos 80, quando Fernando Collor ainda não se aventurara a se candidatar à presidência.
Estávamos na nossa roda de choro no Bar do Alemão, quando chega o jornalista Nicodemus Pessoa, o Pessoinha, acompanhado de um sujeito alto, forte. Pessoinha era um alagoano de pequena estatura, amigo de todos, uma das pessoas mais queridas do jornalismo em São Paulo.
Quando deu o intervalo, apresentou seu amigo:
Queria apresentar a vocês Pedro Collor de Mello, filho do senador Arnon de Mello.
Imediatamente uma luz bateu na minha memória, provavelmente acesa por um algum capeta provocador. E, com alguns chopps a mais obstruindo o desconfiômetro, lembrei-me do episódio trágico, que li através de O Cruzeiro quando tinha 13 anos de idade:
Nossa, lembro-me que seu pai matou o senador Kairalla no Senado.
O tema me impactou tanto me lembrei até do nome do infeliz senador.
Imediatamente, Pedro Collor levantou-se e me chamou para a briga. Os demais amigos do bar o contiveram e a roda continuou.
Com o tempo, fui reunindo mais dados sobre o episódio. E me aprofundei mais no tema quando escrevi a biografia de Walther Moreira Salles. Arnon foi sócio dele e de Roberto Marinho no Parque Lage. E Arnon era frequentador assíduo da Poços de Caldas nos anos 30.
Nos arquivos de Moreira Salles descobri uma reportagem de Arnon sobre um almoço na Caixa D’Água, em Poços, reunindo Getúlio e todos os presidentes de província. Reportagem detalhada, muito bem escrita, inclusive nos detalhes das declarações lisonjeiras de políticos para Getúlio. Em certo momento, apareceu um astrólogo no almoço prevendo que Getúlio seria o imperador do Brasil. Um dos puxa-sacos montou uma coroa com galhos de árvores que colocou na cabeça de Getúlio. Ali foi o ensaio final para o golpe do Estado Novo.
A reportagem foi para O Jornal, de Assis Chateaubriand. Anos depois, Arnon tornou-se sócio de Roberto Marinho. Aí não sei as circunstâncias nem a história sobre sua fortuna familiar.
O que sei, e que foi contado por Homero de Souza e Silva, o grande amigo e sócio de Moreira Salles, é que tinha uma inimizade mortal com o governador de Alagoas Silvestre Péricles de Góes Monteiro, irmão do general Góes Monteiro, figura central do Estado Novo.
Arnon candidatou-se ao governo de Alagoas, venceu as eleições e chamou Homero para ser seu Secretário. Homero me contou que, na despedida do governo, Silvestre Péricles forrou todos os ambientes do Palácio de Governo com merda.
Em 1950, O Cruzeiro havia enviado o repórter David Nasser e o fotógrafo Jean Manzon para preparar um perfil de Silvestre Péricles. A primeira declaração do governador foi retumbante:
“Sou a fera que vocês procuram”, foram as suas primeiras palavras, sem estender a mão para cumprimentos. Em seguida perguntou: “Sabe como recebo aqui os jornalistas indiscretos?”
David Nasser tentou amenizar a conversa e disse acreditar que seriam bem recebidos. A resposta foi na lata>
Jornalista, aqui, eu trato a chibata.
No meio da entrevista abriu o paletó e exibiu um revólver calibre 38.
Anos depois, Arnon foi eleito Senador. Silvestre já era senador e anunciou que, no primeiro discurso de Arnon, entraria na sala e lhe daria um tiro.
Aí entra outra particularidade de Arnon, que me foi narrada pelos seus amigos poços caldenses. Ele era dotado de um medo físico até da própria sombra. Tinha medo dos cavalos da cidade. Eleito governador, tinha tanto medo de atentados que pagava um irmão para dormir no seu quarto, fazendo-se passar por ele. Isso pode explicar o início de campanha de Fernando Collor insistindo no seu “saco roxo”.
Por isso, quando Silvestre entrou no Senado, Arnon sacou de uma arma e, trêmulo, desfechou o primeiro tiro. A bala resvalou na mesa do senador José Ermírio de Moraes – e o trecho a seguir me foi contado por antigos auxiliares dele. José Ermírio se abaixou, escondeu-se embaixo da mesa e, como era muito corpulento, ficou entalado, dando certo trabalho para ser libertado.
O segundo tiro acertou o senador Kairala, jovem de 39 anos, substituto do senador titular, que estava de licença. Era seu último dia no Senado e levara mulher e filhos para acompanhá-lo. Kairala recebeu a bala destinada a Silvestre Péricles, ao se atirar sobre ele para impedir o revide.
Foi a foto da família, velando o corpo do Senador, que se impregnou na minha memória.
A noitada no Alemão termina com Pedro Collor sentado, bêbado feito um peru, e Pessoinha de pé, em frente a ele, passando a maior bronca. De pé, Pessoinha ficava na altura de Pedro, sentado:
Você é a vergonha do Nordeste. Te trago aqui para te apresentar meus amigos e você me faz passar essa vergonha.
E Pedro aceitando a bronca de cabeça baixa.
Segundo me informa o jornalista Olimpio Cruz, a viúva de Kairalla criou os filhos trabalhando como empregada e faxineira em Brasilia nos anos 70 e 80. O filho – o garoto da foto – tornou-se um grande médico em Brasilia.
Duran te algum tempo, ela processou Arnon para custear o estudo do quatro filhos. Nada conseguiu.
*GGN
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