Categorias
Política

Desculpa de Bolsonaro de ganhar na loteria ecoa a de um ‘Anão do Orçamento’

Jair Bolsonaro justificou a transferência de R$ 14.268,04 para um ramo de sua família em Eldorado (SP) alegando que era para pagar apostas que fez na Mega-Sena através da lotérica de um sobrinho, e que ganhou duas vezes na quadra. Não há registro de que bolsonaristas, tão céleres em refutar declarações de petistas sobre casos de corrupção, tenham ficado constrangidos com a desculpa.

Vale lembrar que loterias já foram usadas por políticos interessados em lavar dinheiro ou esconder recursos oriundos de roubo, como no escândalo dos Anões do Orçamento. Após o icônico caso de João Alves, que completa 30 anos, Bolsonaro vai entender se não acreditarmos na sua narrativa sem que uma investigação seja feita.

O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) jogou Pinho Sol sobre as movimentações bancárias do ex-presidente, revelando que ele recebeu R$ 17,1 milhões via PIX. Jair diz que os recursos vieram de seguidores e aliados para pagar multas e condenações.

Como não é inocente, ao contrário de muitos que nele acreditam, investiu na renda fixa uma parte da grana

O jornal O Estado de S.Paulo mostrou que ele fez transferências à família (além da lotérica do sobrinho Angelo Bolsonaro, a ex-primeira dama Michelle recebeu R$ 56 mil). Após isso, Jair veio a público dizer que as transferências não vieram de doações, mas de seus próprios rendimentos.

“[Foram] 17 PIX para meu sobrinho que trabalha em lotérica em Eldorado (SP). A maioria dos depósitos são múltiplos do valor da aposta de 7 números da Mega Sena. Por duas vezes fiz a quadra nos últimos meses, daí, na contabilidade, os valores não múltiplos”, postou.

A CPI dos Anões do Orçamento (assim batizada porque envolvia parlamentares pouco relevantes) investigou 37 parlamentares por conta de um esquema multimilionário de aprovação de emendas para favorecer empreiteiras e desviar recursos para entidades fantasmas. Sim, parece hoje, mas foi em 1993.

Um dos principais anões, o então deputado federal João Alves repetia que seu patrimônio havia sido obtido graças ao sobrenatural e à sorte. Dizia que havia conseguido ganhar 200 vezes em loterias. Segundo ele, “Deus me ajudou e eu ganhei muito dinheiro”.

Acabou renunciando por conta da CPI, após exercer oito mandatos pelo Estado da Bahia, tendo sido da base de sustentação da ditadura no Congresso. Faleceu em 2004.

Jair deve ser mesmo um homem de sorte – tanto que empurrou um país para 700 mil mortes na pandemia e não foi cassado, bastando para isso rezar regularmente para Santo Aras e São Lira. Mas apostar R$ 14 mil na Mega-Sena não é algo comum, tampouco acertar duas vezes a quadra.

O alerta de Jair com relação à fonte dos recursos serve apenas para a Polícia Federal e a CPMI dos Atos Golpistas passarem um pente fino sobre suas movimentações. Ele aponta que foram doações, e está claro que uma parte foi mesmo. Mas todos os recursos também são?

Ou ele se aproveitou das doações dos que defendem as mesmas barbaridades que ele para travestir outros tipos de remessas? Há recursos desviados do cartão corporativo? Há “devolução” por parte de figuras que foram beneficiadas pelo seu governo? Há no meio dinheiro da venda de algum presente recebido pela Presidência da República que o tenente-coronel Mauro Cid tenha vendido?

O próprio Bolsonaro deu a senha para isso ao banalizar a tentativa de seu ex-faz-tudo de fazer dinheiro com o Rolex que ele recebeu de presente da Arábia Saudita. “Não vejo nenhuma maldade em você cotar o preço de alguma coisa. É natural. ‘Quanto é que vale isso aí?’ É natural”, disse.

Natural são joias dadas ao país ficarem com o Estado, não serem embolsados.

Em meio a tudo isso, estranha que o uso de loterias para justificar transferências e renda não choque os bolsonaristas hoje como chocou o pessoal que denunciou corrupção no Congresso há 30 anos. O que mudou no meio tempo?

*Leonardo Sakamoto/Uol