“Eu sei o que é ter medo do Estado, ser perseguido, e como devemos prezar pela democracia para que ela não vá embora”
O buquê de flores sobre a mesa de centro, no gabinete da presidente do Supremo Tribunal Militar (STM), Maria Elizabeth Rocha, não era o único sinal de apoio. Durante menos de uma hora de conversa chegou mais um. Eles acompanham as várias mensagens e telefonemas que ela recebeu desde o pronunciamento, considerado desrespeitoso, do ministro e tenente brigadeiro Carlos Augusto Amaral Oliveira, dirigido à presidente durante sessão da corte na sexta-feira (31).
Inconformado com o pedido de perdão de Maria Elizabeth à sociedade brasileira, durante a cerimônia que marcou os 50 anos da morte de Vladimir Herzog, na Catedral da Sé, em São Paulo, o ministro Amaral exigiu o registro, em ata, de um desagravo. Ele sabia que a sessão era transmitida ao vivo e fez a crítica no dia em que ela não estava no plenário. Disse que a presidente não podia falar em nome do tribunal e muito menos em nome dele.
Declarou total discordância da atitude da presidente. Disse ainda que a fala foi superficial, teve abordagem política, e declarou que não concordava com o conteúdo. Sugeriu ainda que ela deveria estudar melhor a história do tribunal.
Na terça-feira (4), ao abrir a sessão, Maria Elizabeth respondeu. “O tom misógino, travestido de conselho paternalista, não me intimida. Estou nesta Corte há quase duas décadas e conheço bem a instituição”, disse.
O debate acalorado gerou comentários, memes e muitas palavras de apoio a ela.
“Não sei se você prestou atenção, mas quando terminei a minha fala, ele virou para mim e disse: nós devíamos ter feito isso a portas fechadas, devíamos ter conversado isso em particular”, contou Elizabeth. Ela não respondeu na hora porque a situação já era tensa o suficiente. “Mas não faço nada de portas fechadas e nem em particular. Sabe por que? Porque a Constituição exige transparência. Eu não tenho segredos para ocultar da sociedade. Eu não faço nada de portas fechadas e não farei! Mas passou. A vida segue”, disse.
Apesar do burburinho que a discussão provocou, Elizabeth não ficou surpresa com a crítica. Já esperava alguma reação porque o tribunal é bem dividido. Isso ficou claro durante a eleição dela a presidente, por seis votos a cinco.
“Eu esperava uma resposta, ele tem todo o direito de divergir do que eu penso, mas a grosseria eu não esperava”, disse. A reação dos demais colegas da corte, no momento da discussão, foi o silêncio. Não houve fala alguma de apoio ao ministro Amaral. O silêncio, diz a ministra, fala alto. Especialmente entre os militares.

“Conheço essa dor”
O gesto que tanto incomodou o colega não foi um impulso. Desde que foi eleita presidente do STM, Elizabeth tinha a intenção de, em algum momento, pedir desculpas à sociedade civil pelos erros cometidos pela Justiça Militar durante a ditadura. Com coragem e firmeza, além da emoção evidente, ela fez o que descreveu como uma atitude republicana.
“Eu conheço essa dor”, disse, ao contar a história da família. “Eu tenho um cunhado que é desaparecido político. Meu marido era jovem nessa época, era tenente-coronel. Meu cunhado tinha 27 anos, meu marido, no máximo 30. O pai era general e quando descobriram que o Paulo era filho de um general, depois de ser preso e torturado, jogaram o corpo no mar. Pelo menos essa é a história que nós sabemos. Não sei nem se estava vivo ou morto quando foi jogado. Eu sei o que é ter medo do Estado, ser perseguido, e como devemos prezar pela democracia para que ela não vá embora. Nós só nos damos conta de que ela partiu quando já estamos sob um regime autoritário”, afirmou.
Quando chegou à Catedral da Sé, no dia 25 de outubro, Elizabeth sentiu que era a hora. Conversou ainda com a jornalista Miriam Leitão. Pediu uma opinião. Seria o dia mais apropriado ou deveria esperar o fim do mandato e fazer o gesto na despedida? Miriam concordou que não havia momento melhor. Elizabeth então escreveu um discurso breve e histórico. Ao ser chamada ao microfone, passou pelo jornalista Juca Kfouri, que brincou: “Vai ser um discurso difícil hein?”. Mal sabia ele…
De fato, o que poderia dizer a presidente do Superior Tribunal Militar nos 50 anos do assassinato de uma vítima da ditadura? “Era só isso que eu tinha a dizer. Mais nada. Pedir perdão para a sociedade civil. Dentro de uma catedral, diante de uma presbítera, de um cardeal, de um rabino, em frente ao povo, me desculpando com a história e com a sociedade brasileira. Realmente acho que não teria ocasião mais propícia”, afirmou.
Elizabeth fez questão de ressaltar que não houve, no gesto, a menor intenção de humilhar o Tribunal Militar. Falou em nome da Justiça Militar e lembrou que o STM errou, mas também teve vários momentos de grandeza, que ela relaciona: defendeu a liberdade de imprensa, criou um substituto para o Habeas Corpus quando o AI-5 proibiu o instrumento para presos políticos e os advogados da época afirmam que a manobra salvou muitas vidas, conta.
“Mas houve muitos equívocos também. Eles tinham consciência das torturas e nada foi feito. Foi em nome dessas falhas que pedi perdão”, explicou.
20 anos de STM
E se algum colega da corte esperava silêncio da presidente, é porque não conhece a mulher miúda, de fala doce e dona de um currículo invejável no meio: mestrado em Ciência Jurídico-Política pela Universidade Católica de Lisboa, doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais, dois títulos Honoris Causa, livros publicados, aulas, e muita experiência. Na discussão em público, o ministro Amaral disse que ela deveria estudar melhor a história do tribunal.
Imediatamente Elizabeth denunciou a misoginia nas palavras do colega. Além de ser presidente, ela foi, durante muito tempo, a única mulher do tribunal e sabe bem o que isso significa. Muita dor de cabeça, claro, mas também a oportunidade de abrir espaço para as próximas gerações. E consolidar conquistas.
Por isso, não perde o bom humor. Disse ao ICL Notícias que estudar, como disse o colega, é sempre um bom conselho. Mas uma mulher se calar, nunca!
“Com 65 anos de idade, 20 de trabalho só aqui e mais os 25 na Advocacia-Geral da União, me sinto preparada para enfrentar o desafio. Pelo menos intimidada eu não me sinto. Eu resisto. Na Catedral da Sé eu me comprometi a resistir em todos os sentidos. Então eu resistirei. Sem chorar!”, garantiu.
*Heloisa Villela/ICL
Queridos leitores,
Nosso blog é um espaço dedicado a compartilhar conhecimento, ideias e histórias que inspiram. Para continuarmos criando conteúdo de qualidade e mantendo este projeto vivo, contamos com o seu apoio! Se você gosta do que fazemos, considere contribuir com uma pequena doação. Cada gesto faz a diferença e nos ajuda a crescer. Pix: 45013993768. Agradecemos de coração o seu apoio.
Siga-nos no Facebook: https://www.facebook.com/profile.php?id=100070790366110
Siga-nos no X: https://x.com/Antropofagista1
Siga-no no Instagram https://www.instagram.com/blogantropofagista?igsh=YzljYTk1ODg3

