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Da Nakba a Gaza: ‘Exterminem todos os selvagens!’

Pais segurando os corpos dilacerados de seus filhos são cenas comuns em Gaza. Antes, uma única imagem assim viraria manchete mundial. Hoje, são tantas que nem sequer são notícia. É o quão baixo o Ocidente afundou.

A guerra de Israel contra Gaza é um genocídio em plena vista — massacres, fome e deslocamento forçado enquanto o Ocidente desvia o olhar.

Nos anos 1960, Bernard Lewis cunhou a frase “choque de civilizações”. Tempos depois, Samuel Huntington a adotou. Era um argumento furado. Governos “colidem” por interesses concretos — dinheiro, território, poder, dominação —, não por algo vago como “civilização”. Mas era uma desculpa conveniente para potências imperialistas predatórias empenhadas em controlar o mundo.

Afinal, o que era a “civilização ocidental” senão uma besta esquizofrênica de duas faces, que ouvia Bach e Mozart enquanto escravizava milhões, massacrava povos, roubava suas terras e saqueava seus recursos?

É essa face hedionda que vemos novamente hoje. O Ocidente cruza os braços e fala de tudo — menos do genocídio em Gaza.

A semente que as potências europeias plantaram na Palestina cresceu e se tornou a maior ameaça à paz mundial desde os nazistas. E isso não é coincidência, dada a afinidade ideológica entre nazismo e sionismo: o racismo, a supremacia, o desprezo pelo direito internacional e pela vida humana, agora expostos em Gaza e no Líbano.

Sem esquecer o equivalente ao lebensraum — expansionismo e maximalismo territorial para abrir caminho a colonos judeus em substituição aos “animais humanos” palestinos. Apenas um degrau acima dos nazistas, que chamavam suas vítimas judias e outras de “sub-humanos”.

Que ironia grotesca: nos anos 1930, nazistas buscavam formas de eliminar judeus; em 2025, judeus buscam formas de eliminar palestinos. E sim, são judeus — não apenas sionistas, mas judeus cruéis, assim como há muçulmanos, cristãos e ateus cruéis. Eles são uma mancha na história judaica que nunca será apagada.

Os campos de extermínio nazistas e a política israelense diferem apenas no eufemismo: enquanto os nazistas falavam em “emigração” antes da morte, Israel nem disfarça. O número real de palestinos massacrados é incerto, mas ultrapassa em muito os 200 mil sugeridos pela revista The Lancet.

Durante o breve cessar-fogo, palestinos desenterraram corpos dos escombros. Mas agora Netanyahu o rompeu. No momento em que escrevo (18 de março, 9h38), Israel já matou 235 palestinos em ataques aéreos. Muitos, é claro, eram crianças — porque milhares já foram assassinadas.

Pais segurando os corpos dilacerados de seus filhos são cenas comuns em Gaza. Antes, uma única imagem assim viraria manchete mundial. Hoje, são tantas que nem sequer são notícia. É o quão baixo o Ocidente afundou.

Sem conseguir convencer ninguém a aceitar a “transferência” populacional que Trump também defende, Israel opta pelo extermínio. Aos palestinos, resta “escolher”: fugir ou ficar e morrer. Fugir para onde? Não há saída. Gaza é uma armadilha, e seus algozes não têm piedade.

“Ainda que a fome e a sede não os matem, nós mataremos.” Essa é a mensagem. Velhos, jovens, deficientes, professores, agricultores, jornalistas — não importa. O “exército mais moral do mundo” os assassinará.

Não em suas casas (já destruídas), mas em campos, tendas, praias ou ruínas urbanas — por bombas, drones, mísseis ou tiros de sniper. Ou pela privação de comida, água, remédios e eletricidade.

Isso acontece agora. “Exterminem todos os selvagens!”, clamou Kurtz em O Coração das Trevas. E é o que se vê no campo de extermínio de Gaza — desta vez, administrado por judeus. Uma verdade repugnante, mas ainda assim verdade. Claro, no livro, era Kurtz, o agente da “civilização”, o verdadeiro selvagem.

Israel nunca deveria ter sido criado em terras alheias. É um Estado usurpador, como tantos na história — mas estamos no século XXI, não no XVII. Israel nunca demonstrou remorso, e o mundo nunca aprendeu a evitar a repetição de horrores passados. Poucos horrores foram tão brutais quanto Gaza.

Israel é a contradição de um Estado colonial surgido no crepúsculo da era colonial. Foi parido pela ONU, a “mãe” que hoje odeia porque esta tenta frear seu comportamento vil.

Seu ódio transborda nas redes sociais, no governo, no parlamento, na mídia e nas instituições religiosas. Ódio aos palestinos, árabes, ONU, críticos do genocídio — e até entre si. Talvez seja isso que, um dia, destruirá Israel: ele acabará devorando a si mesmo.

Seus chiliques e fúria teatral são históricos, mas sempre indulgenciados. Políticos dos EUA, Reino Unido, Austrália, Canadá e UE agem com medo. Não chamam o genocídio pelo nome — Israel e seus lobistas não gostariam.

Criticam, mas com códigos: “Compartilhamos seus valores democráticos e estamos do seu lado, mesmo quando reclamamos.” Falam em “solução de dois Estados” sabendo que nunca acontecerá. Israel sabe que sabem. Tudo sob controle.

Expressam “preocupação”, nunca raiva. Afinal, há séculos pessoas de pele branca exterminam as de pele escura. É triste, mas “normal”. Seria anormal só se as vítimas fossem brancas. Alguém imagina 2 milhões de europeus presos em um enclave, esfomeados e massacrados, sem que o Ocidente interviesse?

Isso expõe não só o racismo de Israel, mas o do Ocidente — que assiste passivamente a 18 meses de genocídio.

Israel é apoiado incondicionalmente pelos EUA, cujas instituições infiltrou. Recebe tudo o que quer. Juntos, são uma ameaça à paz global.

Israel não obedece leis, só seus interesses. Suga seus “aliados” e os trai — como fez com a Grã-Bretanha nos anos 1940, matando policiais e diplomatas britânicos.

Lembrem-se do USS Liberty (1967), do plutônio roubado dos EUA, dos ativistas Rachel Corrie, James Miller e Tom Hurndall — todos mortos em Gaza. Lembrem-se do turco-americano Furkan Doğan, assassinado no Mavi Marmara. Israel não respeita nem seus aliados, mas estes insistem em um masoquismo destrutivo.

Netanyahu deixa claro: Israel não mudará. Para sobreviver, deve continuar matando — palestinos, libaneses, sírios, iranianos, quem quer que ouse enfrentá-lo.

Se (ou melhor, quando) Israel for encurralado sem saída, sua mensagem é clara: “Levaremos o mundo conosco.” E quem lhe deu as armas e tecnologia para isso? A resposta é óbvia.

São 11h59. O The Guardian reporta mais de 320 mortos em Gaza. Assassinados em massa. Às 14h08, já eram mais de 400.

*Jeremy Salt*, site da Fepal

* Jeremy Salt lecionou na Universidade de Melbourne, na Universidade Boğaziçi (Istambul) e na Universidade Bilkent (Ankara), especializando-se na história moderna do Oriente Médio. Entre suas publicações estão The Unmaking of the Middle East (2008) e The Last Ottoman Wars (2019). Artigo publicado em 19/03/2025 no The Palestine Chronicle.