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Cheiro podre, fadiga, danos neurológicos: pacientes com sequelas de Covid-19 não conseguem tratamento no SUS

Pacientes enfrentam demora no atendimento e ouvem que sequelas são “psicológicas”; muitos têm que arcar com remédios do próprio bolso.

Para esses pacientes, a doença só deu duas alternativas: “Ou você morre ou tem dinheiro pra arcar com as consequências”

“Um dia eu tô bem e no outro não tenho vontade de sair da cama”, conta motorista.

Ministério da Saúde ainda não fez protocolo sobre sequelas, prejudicando atendimento.

“Esse vírus me arrancou o meu funcionamento básico, minha memória, a minha comunicação, me arrancou o direito de sentir o cheiro dos meus filhos, poder sentir o gosto da minha comida preferida”, desabafou Natália Spinelli, fonoaudióloga e diretora de clínica de reabilitação infantil, em um grupo do Facebook que reúne pacientes com possíveis sequelas da Covid.

Natália, de Recife, Pernambuco, começou a sentir os sintomas da infecção por coronavírus em 18 de maio e, quando se curou da doença, pensou que o pior já havia passado. Mas outros efeitos começaram a aparecer: cansaço, suor frio, dor no corpo, uma fadiga “indescritível”.

“Eu comecei a esquecer coisas muito simples do trabalho, das aulas on-line, dos meus filhos. Chegou o momento que eu tinha que fazer o cadastro de alguma coisa online e o CPF e RG, que é algo totalmente memorizado, e eu não lembrava mais.” Para ela, “o pós foi infinitamente pior do que os dias que eu tava [com a doença]”.

Além de Natália, Francisca Benedita também não se viu totalmente curada depois que a fase aguda da doença – a infecção em atividade – passou. Francisca, que tem 45 anos e mora em Fortaleza, no Ceará, ficou internada por 60 dias na UTI; 22 destes passou intubada, com auxílio da ventilação mecânica invasiva.

Hoje, quatro meses depois da alta, lida com “muita dor de cabeça, tontura, falta de paladar”.

“Tem dias que eu sinto a casa podre, mas é o meu nariz que tá podre, porque eu chamo as pessoas pra vir e ninguém tá sentindo nada”, descreve. Depois da Covid, ela passou a apresentar fraqueza, pressão alta, problema da tireoide, além de sequelas pulmonares. Hoje, faz acompanhamento particular: “Ou você morre ou tem dinheiro pra arcar com as consequências”, finaliza.

Natália e Francisca Benedita são duas entre os mais de 5 milhões de brasileiros curados de coronavírus até 5 de novembro de 2020 – depois de mais de sete meses de pandemia e 161 mil óbitos registrados no Brasil. Esse número, 5,06 milhões de recuperados, aparece com destaque no site do Ministério da Saúde (MS) e nas redes sociais do governo federal. Entretanto, relatos de pessoas que tiveram a Covid e estudos indicam que as consequências da infecção não acabam quando o vírus é derrotado pelo corpo.

Um dos estudos pioneiros sobre o assunto, do Hospital Policlínico Universitário Agostino Gemelli, em Roma, na Itália, indicou em julho que apenas 12,6% dos participantes não apresentaram sintomas persistentes depois da cura. Do restante, 32% tiveram um ou dois sintomas e 55%, mais de três. As sequelas mais persistentes foram fadiga (53,1%), dificuldade de respirar ou dispneia (43,4%), dor nas articulações (27,3%) e dor no peito (21,7%).

Pacientes são orientados a “procurar um psicólogo”

“Tenho que aprender a conviver com a dor de cabeça que não passa”, afirma Raphaela Fagundes, que tem 35 anos e é motorista de aplicativo em Bauru, interior de São Paulo. Ela e o sobrinho começaram a sentir os sintomas da Covid – cansaço, exaustão, febre e dor de cabeça – no dia 18 de setembro. Foram medicados com cloroquina, azitromicina, prednisona, dipirona e ivermectina, e 14 dias depois, seguindo o ciclo da doença, seus exames deram negativo, indicando que estavam “curados”. Mas as dores persistiram. “Os remédios que estavam me dando morfina, cortisona não estavam tirando a dor”, contou a motorista.

Além das dores, que já duram mais de um mês, Raphaela apresenta fraqueza e “confusão de palavras” e não tem paladar e olfato. “O cheiro que eu sinto é de podre, de madeira podre. Só isso. O resto eu não sinto mais nada”, contou. “Um dia eu tô bem e no outro não tenho vontade de sair da cama.”

A motorista não está conseguindo trabalhar por causa da fadiga “muito forte”. Antes sua rotina chegava a 15 horas diárias, hoje já não consegue fazer três corridas sem parar para descansar.

Mas Raphaela, que é mãe solteira e vive com a filha, conta que desistiu de buscar atendimento. Na última vez que foi ao hospital, no meio de outubro, teve suas dores caracterizadas como “psicológicas”. “[O médico] falou que era pra eu e meu sobrinho procurarmos um psicólogo, porque o nosso caso era crise de ansiedade, porque não tinha como a gente estar com a dor que estávamos descrevendo.”

Segundo Carolina Marinho, professora de clínica geral da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e responsável por pesquisa sobre as possíveis consequências a longo prazo do coronavírus, as sequelas podem ser tanto pela ação do vírus quanto por causa da intubação ou ventilação mecânica. “O paciente precisa ficar paralisado, imobilizado, a própria ventilação mecânica sopra dentro do pulmão com pressão positiva, então ela produz lesão no tecido pulmonar, lesão inflamatória.”

Por outro lado, “algumas vezes são exacerbações de doenças que as pessoas já tinham”. Em outros casos, se tem observado “pacientes com sintomas que não tinham antes”. É o que aconteceu com Natália Spinelli, que durante a infecção por Covid apresentou sintomas “moderados”, como cansaço, suor frio, dor no corpo e fadiga. Depois da cura, começou a sentir sequelas neurológicas, como perda de memória e confusão mental, que só melhoraram depois de tratamento. A fonoaudióloga conta que, para ela, lidar com a doença foi mais fácil do que com as sequelas: “Eu sofri, mas o que eu sofro hoje em dia, o depois, foi imensuravelmente muito mais”.

Outra sequela é a síndrome da fadiga crônica, que se caracteriza por sintomas como fadiga e cansaço extremos, dores e aumento do volume das articulações e até aparecimento de gânglios e linfonodos na região do pescoço ou da virilha, segundo o médico José Roberto Provenza, presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia.

A médica da família Raquel Soeiro, professora da Universidade de Campinas (Unicamp), que atua na atenção primária da saúde pública em Campinas, observou que os pacientes que tiveram sintomas leves da Covid têm feito queixas de cansaço. “[A fadiga] é o que eles mais relatam. Eles falam que parece que a energia acaba antes do final do dia”, relatou.

“Parecia que os ossos estavam desmanchando”

Kellyane Vaz, de Palmas, no estado de Tocantins, também ouviu de profissionais da saúde que suas queixas eram somente fruto da ansiedade e que deveria “procurar um psicólogo para tratar e fazer acompanhamento psiquiátrico”. Ela foi diagnosticada com Covid no dia 22 de maio, com sintomas como febre, dor de garganta e falta de ar. Ainda estava isolada em casa quando, na noite de 7 de junho, sequelas neurológicas começaram a aparecer.

“Estava deitada lá, isolada, levantei para ir ao banheiro e comecei a sentir as pernas tremerem. Eu não conseguia firmar a perna no chão, tremendo e tremendo. Como já era noite eu pensei: ‘Ah, amanhã de manhã quando acordar eu vou ao médico’. Quando voltei do banheiro, eu já não conseguia segurar o celular, eu não tinha força na mão pra segurar o celular”, conta.

No dia seguinte, foi internada no Hospital Geral de Palmas, onde ficaria na ala neurológica por dez dias. Fez uma série de exames e continuou o acompanhamento em casa com o neurologista, “experimentando vários remédios”. “O tremor não passava, eu continuava com as pernas tremendo, não tinha domínio sobre a perna nem força nos braços. Sentia muita dor no corpo todo. Parecia que os ossos estavam desmanchando.” Nesse meio-tempo, esperou dois meses por uma consulta com outro neurologista pelo SUS, mas acabou buscando um médico particular.

Kellyane é pedagoga e está afastada do trabalho desde que teve os primeiros sintomas. Atualmente é auxiliada nas tarefas de casa pela tia e pela prima, que ajudam a criar a filha de 4 anos. “Eu não consigo ainda pegar a minha filha no colo. Dirigir, eu não faço ainda por conta dos braços. Eu não tenho segurança ainda. Atividades físicas, eu ainda não consigo”.

*Com informações da Agência Pública

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Por Celeste Silveira

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