Jornalista narra origens da crise e critica Talibã, mas define os EUA como principal responsável pelas tragédias do país desde 1979; veja vídeo na íntegra.
No programa 20MINUTOS HISTÓRIA desta terça-feira (17/08), o jornalista e fundador de Opera Mundi, Breno Altman, discorreu sobre a origem da crise do Afeganistão. O Talibã retornou ao poder no país, colocando abaixo o governo de Ashraf Ghani, considerado um fantoche dos Estados Unidos, que invadiram o país em 2001.
Nesta semana, ganhou intensidade o debate de se teria havido ou não uma derrota da Casa Branca. Se a ascensão do Talibã é um fato positivo ou negativo no cenário mundial e na vida do Afeganistão.
Para Altman, “a derrota do imperialismo estadunidense é fato positivo na situação internacional e na própria condição interna do país, embora muitas nuvens ainda pairem sob o horizonte. O povo afegão merece toda a solidariedade internacional que puder ter, inclusive contra possíveis delírios e crueldades dos novos governantes”.
Assim, os comunistas passaram à oposição frontal, aproveitando-se da influência conquistada no interior das Forças Armadas por conta do auxílio militar soviético desde 1973. O PDP inclusive se reunificou em 1977, diante da situação, pondo fim a 10 anos de cisma entre as frações Khalq (massas, em dari) e Parcham (bandeira).
República Democrática do Afeganistão
Com apoio de setores das Forças Armadas, das classes trabalhadoras assalariadas e das camadas médias urbanas, especialmente em Cabul, o PDP comandou a chamada Revolução de Saur, em 28 de abril de 1978.
Um novo governo foi constituído, com Taraki como primeiro-ministro, Karmal como seu vice e Amin como ministro das Relações Exteriores, compondo as duas tendências comunistas.
“As primeiras medidas do governo Taraki foram a decretação do caráter laico do Estado e de uma ampla reforma agrária, além de outras medidas buscando igualdade de gênero e direitos para as mulheres, controle do capital financeiro, estabelecimento de um sistema público de ensino”, listou Altman.
Essas medidas geraram rechaço no campo, onde dominavam forças semifeudais e muçulmanas que estavam “descontentes com o combate explícito dos comunistas às posições religiosas, ao poder das instituições islâmicas e a implantação de um modelo agrário baseado na combinação entre coletivização e cooperativização”.
Essa resistência rapidamente ganhou o formato de uma rebelião armada, com inúmeros grupos sendo criados para lutar contra o governo Taraki, com ajuda militar do Paquistão e da Arábia Saudita, mas também com apoio decisivo dos EUA e do Reino Unido.
“No dia 3 de julho de 1979, o então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, assinou secretamente uma ordem executiva para reforçar as finanças e a capacidade militar dos grupos de oposição ao regime liderado pelo PDP, usando como base operacional o Paquistão e seu serviço secreto”, explicou Altman.
Era o início da Operação Ciclone, chefiada pela CIA, que chegou a treinar mais de 100 mil mujahideen até 1989, palavra árabe para “combatentes”, como eram chamados os insurgentes que se levantavam contra Taraki e seus companheiros.
Amin acabou derrubando Taraki e ordenando sua execução, assumindo o governo e se aproximando dos EUA e do Paquistão. Moscou, que até então havia tentado evitar interferir no conflito, se aliou a Babrak Karmal em uma conspiração para derrubar e matar Amin, fazendo de seu aliado principal o novo presidente do Afeganistão.
Karmal decidiu, como primeira medida, a invocação do Tratado de Amizade entre o Afeganistão e a URSS, assinado em 1978, solicitando a entrada formal do Exército Vermelho no país para enfrentar seus inimigos.
A intervenção soviética durou 10 anos, e não conseguiu “derrotar os grupos islâmicos insurgentes, embora fosse capaz de impedir a queda do governo dos comunistas, chefiado por Karmal até 1986 e por Mohammad Najibullah até 1992”.
O Exército Vermelho se retirou unilateralmente, em 1989, sob o governo de Mikhail Gorbatchev. Três anos depois, os grupos islâmicos mais moderados, pró-ocidente, vinculados às elites agrárias, semi-feudais, chegaram ao poder. O novo presidente passou a ser Burhanuddin Rabbani, que ocuparia o cargo até 1996. As frações muçulmanas. mais radicais, porém, vinculadas aos pequenos fazendeiros e excluídas do governo, rapidamente passaram à oposição.
Talibã
“Foi nesse caldo de cultura que surgiu o Talibã, criado em 1994, a partir de um grupo de islâmicos fundamentalistas que tinham combatido a URSS e os comunistas, embora não haja provas ou evidências que tivessem relação direta com os Estados Unidos”, ponderou Altman.
De toda forma, fortemente apoiados pelo Paquistão, apesar da pressão em contrário dos EUA, o Talibã rapidamente ganhou musculatura social e militar, até derrubar o governo, em 27 de setembro de 1996, e estabelecer uma “feroz ditadura fundamentalista, mas já em contradição com os interesses dos Estados Unidos”.
Além da brutalização das mulheres e da conversão do país em um emirado islâmico, governado pela Xaria e inteiramente submetido a sua versão do Alcorão, o Talibã ficou conhecido por atos de absurda crueldade.
“A ascensão do Talibã tinha sido possível, em última instância, graças ao apoio dos Estados Unidos aos mujahideens anticomunistas, mas seu perfil antiamericano decorreu de um sentimento de traição”, reforçou o jornalista.
Os atentados contra o World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, foram o episódio decisivo para a abertura de um novo ciclo. Os EUA, desde 1996 em conflito com o Talibã, invadiram o país “e restituíram o poder para seus antigos aliados, conformados na Aliança do Norte, formada em 1996 por Rabbani e amigos”.
As tropas norte-americanas expulsaram os fundamentalistas da capital, criaram a Administração Transitória do Afeganistão e praticamente impuseram o retorno dos políticos afegãos mais próximos da Casa Branca. Segundo o jornalista, os presidentes sob ocupação norte-americana “sempre foram vistos, pela imensa maioria do Afeganistão profundo, como fantoches do imperialismo, verdadeiro sustentáculo do regime nascido em 2001, a bordo dos tanques e aviões enviados por Washington”.
Durante os 20 anos de guerra neocolonial, como definida por Altman, sem conseguir controlar o território ou dotar seus aliados de uma estrutura político-militar que o fizesse, a ocupação norte-americana provocou 180 mil mortes, 50 mil das quais de civis. Mais de 60 mil pessoas ficaram gravemente feridas e 11 milhões de refugiados deixaram suas casas e o país. Mais de 2,5 mil norte-americanos faleceram, além de outros 1,1 mil aliados estrangeiros.
“Ao contrário de retirar o país das sombras do período talibânico, como prometia a famosa Guerra ao Terror, o que se viu foi a proliferação de grupos terroristas, alicerçados no fundamentalismo islâmico, atuando dentro do Afeganistão e reforçando seus pares além-fronteiras”, criticou.
Derrota dos Estados Unidos
Ele argumentou que o Talibã comandou, por vinte anos, uma guerra popular de libertação nacional, anti-imperialista, com o apoio de amplas massas do povo afegão, até mesmo de setores que tinham sido oprimidos pelo regime dos mulás.
“Essa constatação não faz do Talibã uma força progressista, mas seu caráter reacionário não deveria servir de argumento contrário à caracterização do que ocorreu depois de 2001”, enfatizou.
Para Altman, ainda é cedo para saber se o Talibã de hoje é a mesma organização de 2001 ou se as alianças internacionais, além da mobilização interna contra os Estados Unidos, forçaram alguma mudança em seu programa, em seus valores e em seus métodos.
“O fato principal, no entanto, é que a origem dos principais problemas do país não está no fundamentalismo religioso e reacionário do Talibã, mas na dominação imperialista que os EUA buscam exercer, nesse país, desde o final dos anos 70”, afirmou.
Segundo o jornalista, “não há como o Afeganistão chegar a um caminho democrático e emancipatório sem antes se livrar da dominação imperialista”. A reconfiguração do próprio Talibã ou sua substituição por uma eventual alternativa de esquerda ou mais democrática, dependeria da expulsão do imperialismo, para que outras questões possam emergir com mais relevância.
“Por outro lado, o enfraquecimento dos Estados Unidos, propiciado pela derrota no Afeganistão, é saudável para o equilíbrio internacional de forças, para o desmonte final da ordem unipolar que emergiu depois do desaparecimento da União Soviética, em 1991. Claro, abre-se também um novo período de tensão e dor para os setores populares, para as mulheres, em função da natureza do Talibã e sua história. Mas esses dramas não foram amenizados no período da ocupação norte-americana. Ao contrário, pioraram. Somente a derrota do imperialismo, um fato positivo e central, poderá abrir espaço para enfrentar as chagas do fundamentalismo religioso, na medida em que esse deixe de ser confundido com a própria luta de libertação nacional”, concluiu.
*Breno Altman/Opera Mundi
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