O Brasil de março de 1964 revisto em perspectiva do Brasil de março de 2025.
Concomitantemente a essa celebração, chegam-nos notícias diárias acerca do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da denúncia da Procuradoria Geral da República, tornando réus, até o momento, oito homens envolvidos nos atos golpistas de 08 de janeiro de 2023, dentre os quais, um ex-presidente abertamente defensor de modelos autoritários de governo.
Nos 61 anos do golpe de 31 de março, o historiador Demetrius Ricco Ávila traz olhar para aquele março de 64 a partir deste março de 2025, para provocar indagações, confrontar o senso comum e indicar leituras sobre a trama conspiratória.
Março na história brasileira
O mês de março de 2025, no Brasil, vem sendo assinalado por extraordinárias articulações entre efemérides – isto é, datas que demarcam acontecimentos importantes do passado – e eventos do presente, que o país acompanha atento, conquanto se mantenha significativamente dividido.
No decorrer deste mês de março, no último dia 15, celebramos os quarenta anos da redemocratização que se seguiu após um longo período de ditadura militar – em 15 de março de 1985, José Sarney, primeiro presidente civil eleito, ainda que de forma indireta, depois de uma sequência de cinco militares, é empossado presidente da República.
Concomitantemente a essa celebração, chegam-nos notícias diárias acerca do julgamento, pelo Suprem
As instituições democráticas resistiram àqueles atos e, aparentemente, seus mentores intelectuais virão a ser punidos com as penas da lei. A Carta Magna de 1988, “Constituição Cidadã”, conforme alcunha a ela atribuída por Ulysses Guimarães, segue vigente (março também carrega uma efeméride ligada a constituições, mas à Constituição autoritária de D. Pedro I, a primeira de nossa história, outorgada a 25 de março de 1824), e as articulações entre passado e presente bem podem levar a pensar que estamos vivendo um ponto alto da história.
Oficiais militares réus por tentativa de golpe de Estado acaso sugeririam que começamos a realizar, com quarenta anos de atraso, uma “purga” que a Lei da Anistia, de 1979, ao se fazer “ampla, geral e irrestrita”, obstou?
Ainda no escopo do corrente mês, na esteira do reconhecimento internacional demonstrado pela obtenção de uma inédita premiação no Oscar, no último dia 02, por Ainda Estou Aqui, filme brasileiro que aborda prisão, tortura, morte, ocultação de cadáver e, especialmente, o sofrimento inflingido por uma ditadura a uma família por ela devassada e mutilada, deve-se recordar outra efeméride, diametralmente oposta à do dia 15: o último dia de março, 31, é indelevelemente lembrado como o do golpe de 1964.
Entrementes, antes que se passe a discorrer a respeito do golpe, fazem-se necessárias algumas palavras explicativas, concernentes ao próprio texto. A despeito de ser redigido com rigor, procurará este fugir ao academicismo e construir-se por meio de uma prosa ágil e acessível, com vistas a alargar seu alcance em termos de público leitor.
Por outro lado, de limites físicos relativamente exíguos, não pretende aprofundar discussões, nem se arroga capaz de oferecer explicações definitivas sobre o tema que se dispõe a tratar, quanto menos esgotá-lo.
Deseja, antes, provocar indagações capazes de confrontar o discurso do senso comum sobre o golpe de 31 de março de 1964 e da ditadura de mais de vinte anos por ele implantada. E, como consequência dessa confrontação, o texto objetiva inequivocamente despertar o interesse de quem venha a apreciá-lo para outras e mais abrangentes leituras relativas à história política do Brasil nas últimas seis ou sete décadas, em virtude do que, as linhas a seguir passam de pronto a exibir algumas sugestões.
Relatos e historiografia do golpe de 31 de março
A cadeia dos acontecimentos que resultaram no golpe de 31 de março de 1964 é extensa e intrincada em muitos dos pontos que nela se enlaçam.
Praticamente desde a primeira hora de instauração do regime discricionário implantado pelo golpe, imprimiram-se milhares de páginas contendo relatos de pessoas que participaram dessa cadeia, mais ou menos de perto, em um ou mais de seus pontos.
Dentre esses relatos, muitos dos quais elaborados em terras estrangeiras pela imposição do exílio compulsório a seus enunciadores, podem ser citados, a título de exemplo:
O Tribunal Federal, da denúncia da Procuradoria Geral da República, tornando réus, até o momento, oito homens envolvidos nos atos golpistas de 08 de janeiro de 2023, dentre os quais, um ex-presidente abertamente defensor de modelos autoritários de governo.
- o de Abelardo Jurema (Sexta-feira 13 – os últimos dias do governo João Goulart), ex-ministro da Justiça do governo João Goulart;
- o de Paulo Schilling (Como se coloca a direita no poder, em dois volumes), economista iracundo, que fora assessor de Leonel Brizola no governo do Rio Grande do Sul, secretário-executivo da Frente de Mobilização Popular e diretor do jornal brizolista Panfleto;
- o de Miguel Arraes (Brasil, o povo e o poder), governador de Pernambuco deposto pelo golpe; e muitíssimos mais.
Para além desses relatos, no mais das vezes carregados de uma densidade existencial, a boa historiografia brasileira produziu e segue produzindo obras de relevo para a elucidação, seja das razões, seja do modus operandi dos que derrubaram um governo constitucionalmente estabelecido e desencadearam uma repressão que se estenderia por mais de dois decênios.
Também a título de exemplo, nessa direção, recorde-se um livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira chamado O Governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil, um dos trabalhos pioneiros no que tange à historiografia do golpe, uma vez que veio à luz no final da década de 1970, época em que a ditadura dava sinais de arrefecimento.
Trama conspiratória do golpe militar
Tanto nos relatos vívidos de lideranças sociais e políticas e de participantes diretos do governo deposto, quanto nos trabalhos historiográficos de que se possa lançar mão, salta aos olhos o fato de que o golpe de 31 de março de 1964 é filho da conspiração; de uma trama de conspirações, melhor dito, que envolveu:
- elementos endógenos – latifundiários, industriais, imprensa e jornalistas de grande expressão, setores conservadores da Igreja, falsos institutos de pesquisa e fomento à democracia (como IPES e IBAD), parlamentares, governadores e outros elementos da classe política, partidos, militares…
- e exógenos, sobremaneira, o governo dos Estados Unidos da América, cuja ingerência sobre a política brasileira, coroada pelo golpe de 1964, está competentemente descrita e documentada em O dia que durou 21 anos (Brasil, 2012), dirigido por Camilo Galli Tavares.
A trama conspiratória, espargida em bombardeios midiáticos diários, capturou a consciência da classe média, temerosa da “ameaça comunista” que supostamente vinha rondando o Brasil, temor acirrado pelo sucesso da Revolução Cubana desde 1959.
Parte dessa classe média vai às ruas marchar, “em família”, “com Deus e pela liberdade”, para se contrapor ao Comício da Central do Brasil, de 13 de março de 1964, no qual João Goulart subira o tom na pugna por suas Reformas de Base.
Note-se que, naquele contexto de Guerra Fria, e em conta de idiossincrasias da sociedade brasileira – que por certo perduram, anacronicamente, nos dias de hoje -, a alusão a reformas era prontamente entendida como demonstração de alinhamento com Moscou. Meras reformas, propostas dentro da ordem constitucional, em que pese o tom mais elevado de Goulart no Comício.
O programa das Reformas de Base, portanto, nem de longe, significava revolução. João Goulart era gaúcho e herdeiro político de Getúlio Vargas, que, por sua vez, era produto do meio castilhista e borgista do Rio Grande do Sul dos tempos da República Velha. Júlio de Castilhos, que seria sucedido e teria sua política continuada por Borges de Medeiros no governo do Estado natal de Vargas, fora o materializador, em termos políticos e institucionais, nas plagas sul-rio-grandenses, do positivismo do pensador francês Auguste Comte (1798-1857), doutrina francamente reformista e avessa à ideia de revolução. O trabalhismo brasileiro, ao menos no que toca a Getúlio Vargas e João Goulart, praticamente em nada se assemelhava ao comunismo.
*TVTNews