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Reintegração de posse deixa 700 famílias sem teto em Carapicuíba (SP)

“O neoliberalismo se radicaliza para expropriar até os mais miseráveis e, para isso, necessita e não titubeia em reanimar todas as formas de opressão, exclusão e destruição dos diferentes grupos sociais e classes sociais e frações de classe que se opuserem a esta ferocidade exploradora. E, sobretudo neste contexto, o sadismo e o prazer pela humilhação e eliminação dos definidos pelo imaginário autoritário, por séculos, como “os outros, os inimigos” são acionados para orientar as instituições oficiais e atiçar a “opinião pública”. Atiçamento este sustentato com ódios, medos e toda sorte de representações racistas, misóginas, homofóbicas e xenofóbicas de modo a engrossar os uivos de parcelas populacionais mais diversas, porém, concentradas nas classes médias e na burguesia para aplaudirem e até mesmo participarem desta verdadeira chacina social que se tornam os contextos de avanço neoliberal neofascista contra negros, pobres, mulheres, indígenas, LGBTTS e dissidentes políticos.” (Sergio Luiz de Souza)

Área pertence à Cohab desde 1980 e tem como finalidade construção de habitação popular; favela foi formada há pelo menos uma década.

O olhar se perde ao tentar contar a quantidade de prédios entre os quilômetros 17 e 18 do Rodoanel, na divisa das cidades de Carapicuíba e Osasco, na Grande São Paulo. São dezenas de apartamentos da Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo), que garantem moradia a milhares de famílias. No entanto, nem todos ali têm um teto. Na área entre os conjuntos da Cohab 2 e da Cohab 5, que formam o bairro Vila Jussara, 700 famílias perderam suas casas em uma reintegração de posse na manhã desta quinta-feira (12/9).

Famílias inteiras, com mãe, pai, filhos, avós e seus bichos de estimação tiveram que sair com tudo o que tinham, mas deixaram para trás as paredes e o teto sob o qual dormiam. Em minutos, o que era um lar virou ruína. “É muito injusto, moro aqui há nove anos. Nove! Isso não dá direito a usucapião?”, questiona Inês Souza, enquanto carrega uma caixa com pertences retirados às pressas de sua casa.

O terreno é público, de propriedade da Cohab desde a década de 1980. A companhia prestou queixa de que ali havia gente morando irregularmente apenas em agosto de 2017. Consta como objetivo da terra o uso para a construção de unidades habitacionais, exatamente como ocorreu nos terrenos nos quais estão os prédios vizinhos. Onde a comunidade foi construída, não. E, agora, as unidades habitacionais existentes, ainda que precárias e com situação legal irregular, deixarão de existir.

Os moradores relatam que há quem vivia no local há mais de 30 anos. E as construções demonstram que o terreno não é recém-ocupado. Para isso, bastava entrar em uma das casas de alvenaria abandonadas. Tinham piso, azulejo, todo revestimento feito de forma caprichosa. Alguns barracos de madeira ainda tinham tijolos dentro, um indicativo de que o morador juntou suas economias para investir naquela casa que, em minutos, deixou de existir.

“É uma injustiça muito grande”, lamenta Francisco de Oliveira. “Você vê esse monte de casa aqui, vai tudo para o chão, enquanto tem outras que ninguém nem vai tocar. E são do lado”, continua. Sua reclamação era pelo fato de a reintegração ser dividida em três partes, com a casa dele integrando o terreno da primeira parte.

A Justiça determinou a reintegração em janeiro de 2017 e manteve a decisão em duas oportunidades: em janeiro e setembro do ano passado. Essa última, a decisão do juiz Paulo Ricardo Cursino de Moura, trata de que há a cobrança de estrutura para a retirada das pessoas, como ambulâncias do Samu, apoio da PM, acompanhamento do Conselho Tutelar, MP (Ministério Público) e caminhões para realização das mudanças.

A remoção das demais áreas ainda não tem data exata para acontecer, mas a probabilidade maior é que seja no início de 2020, segundo informou à Ponte uma representante dos moradores, que pediu para não ter o nome divulgado. Ela diz que levou um tiro de bala de borracha da polícia em um dos protestos feitos por quem morava na terra e, por isso, teme sofrer ameaças.

O relógio ainda marcava 6h15 quando a reportagem chegou ao local. Havia grande movimentação, seja dos que retiravam itens de casa, seja dos policiais que escoltavam os oficiais de justiça. Foi possível caminhar e verificar a situação em que as pessoas moravam, o chão com parte em cimento e parte de terra. No entanto, não demorou muito tempo até a Polícia Militar do Estado de São Paulo convidar os jornalistas a se retirarem, alegando questão de segurança. As demais pessoas seguiram ali normalmente.

A área ocupada pela comunidade, desintegrada por máquinas ao longo desta quinta-feira, é tão grande que há quatro entradas: três por cima, no topo do morro, e uma no pé do rodoanel. A Ponte conseguiu entrar novamente na favela com a ajuda de moradores, que queriam denunciar a retirada das 700 famílias que ali viviam.

Em mais 20 minutos de observação, o clima de tristeza e de revolta ganhou mais força. Sem poder ficar no espaço que considerava seu lar, dois moradores decidiram não entregá-lo pacificamente e atearam fogo como forma de protesto. Um deles chegou a ser totalmente destruído pelas labaredas, forçando a ação do Corpo de Bombeiros. Enquanto a reportagem via o trabalho no segundo foco de incêndio, fomos convidados pela PM a nos retirar do local. Pior foi o caso de uma moradora, que tentou buscar seu gato em meio ao fogo, mas acabou detida pelos policiais.

Camas ocupavam a calçada em uma esquina junto de botijões de gás, armários, sofás e pertences menores, todos arrumados de modo que era possível serem colocados no caminhões da prefeitura de Carapicuíba. Tinha como levar, mas muitos moradores não tinham um destino. “Não tenho para onde ir, vou levar essas coisas para onde? Um albergue?”, pergunta Joana Azevedo. Ela vivia na comunidade com o filho e o companheiro.

A Ponte questionou a Cohab sobre o pedido de reintegração de posse e os objetivos para o uso futuro do terreno e, segundo a Companhia, o espaço foi comprado na década de 1970. “Nesse terreno, foram construídas cerca de 15 mil unidades habitacionais, local conhecido como Complexo Habitacional Presidente Castelo Branco (Carapicuíba). A invasão, que começou em 2016, se encontra na área remanescente desses empreendimentos”, justifica, dizendo que havia na comunidade 783 famílias e que disponibilizou transporte para as mudanças.

“Após a reintegração, a área será utilizada para a construção de unidades habitacionais para atender a demanda do Município”, diz a nota enviada às 14h03. “No momento existem tratativas para a transferência de algumas áreas, objeto de convênios, para a Prefeitura de Carapicuíba, como foi realizado recentemente no Parque dos Paturis. Vale salientar que em muitas dessas áreas da Cohab estão instalados equipamentos públicos, como escolas, creches, postos de saúde, bases de Policia Militar e outros”, finaliza a Cohab.

A reportagem também acionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, comandada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), para questionar a detenção da moradora que tentou resgatar seu animal de estimação. No entanto, nenhum dos dois órgãos respondeu até a publicação desta reportagem.

 

 

*Por Arthur Stabile/Ponte