A mão invisível da milícia

Com milícia em expansão, confrontos policiais no Rio miram tráfico e somam só 3% em áreas de milicianos.

O dia 7 de abril de 2018 ainda não havia amanhecido quando dezenas de policiais civis chegaram ao Sítio 3 Irmãos, em Santa Cruz, zona oeste do Rio. A ação tinha o objetivo de prender o miliciano Wellington da Silva Braga, o Ecko —chefe da Liga da Justiça, maior milícia do estado.

A operação foi um desastre: o criminoso fugiu durante troca de tiros que deixou quatro de seus seguranças mortos. Autoridades policiais insistiram na versão de que um show de pagode, com venda de ingressos e ampla divulgação, era uma reunião de paramilitares.

Não demorou para que as histórias de inocentes presos injustamente proliferassem na imprensa. Mais de 150 pessoas foram detidas, mas quase todas foram libertadas semanas depois, quando o MP (Ministério Público) do Rio admitiu que não havia elementos para imputar crimes a 138 presos. Levantamento da Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas) entregue à Defensoria Pública mostrou que 139 detidos nunca tinham sido sequer investigados por envolvimento com grupos paramilitares.

Esse tipo de confronto armado entre policiais e paramilitares é raridade, como mostra levantamento inédito feito pelo UOL com base em registros do Laboratório de Dados sobre Violência Armada Fogo Cruzado.

A análise de 2.959 tiroteios com a presença de agentes de segurança na cidade do Rio entre 5 de julho de 2016 e 30 de setembro de 2019 revela um padrão. Na prática, o Rio é uma cidade com duas polícias: uma que promove incessante e violento confronto contra o tráfico de drogas e outra leniente com as milícias.

Para chegar a essa constatação, a reportagem analisou os locais onde esses confrontos armados ocorreram a fim de checar se essas áreas eram dominadas pelo crime organizado e determinar quais grupos criminosos atuavam ali. As trocas de tiros envolvem sobretudo a Polícia Militar, responsável pelo policiamento ostensivo e por operações regulares em comunidades. Também há, em menor número, registros envolvendo operações da Polícia Civil e das Forças Armadas —que atuaram no Rio durante intervenção federal na segurança do estado, em 2018.

Apesar de já ocuparem parte considerável da cidade, as áreas de milícia foram palco de apenas 88 trocas de tiro com as forças de segurança em mais de três anos —2,97% do total. Atualmente, conforme levantamento feito pelo UOL com base em informações do MP do Rio, mais de 40% do território da capital já é dominado por esses grupos.

Por outro lado, 2.333 tiroteios se deram em favelas dominadas pelas três principais facções de traficantes do estado —o equivalente a 78,8% do total de tiroteios envolvendo agentes de segurança em mais de três anos.

Esse movimento acontece em um cenário em que as milícias, apontadas hoje como a principal ameaça à segurança no Rio, expandem seus tentáculos sobre territórios até então dominados pelo tráfico —não só com a tolerância da polícia em áreas já controladas por milicianos, conforme indica o levantamento, mas com a ajuda de agentes de segurança para tomada de comunidades, segundo investigações em curso no estado.

Para a promotora Simone Sibilio, coordenadora do Gaeco (Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado) do MP, a Operação Intocáveis, deflagrada em janeiro de 2019, dá um vislumbre dessa diferença. A ação prendeu parte das lideranças do Escritório do Crime —milícia que controla a comunidade do Rio das Pedras, na zona oeste, que é investigada por ligação com a morte da vereadora Marielle Franco. Entre os presos, está o major Ronald Paulo Alves Pereira, um dos líderes do grupo.

“Eles [os milicianos] têm sim, proteção”, diz, citando como exemplo o fato de Ronald estar prestes a chegar à patente de tenente-coronel, na qual estaria apto a comandar batalhões de área ou unidades especializadas da PM. “Não temos operação [de combate às milícias] sem a participação de agentes públicos.”

Ainda de acordo com a promotora, embora ainda não existam provas cabais de que batalhões da PM estão atuando a serviço das milícias, isso é uma hipótese plausível. “Não identificamos ainda a ação dolosa de um batalhão, o que há é uma inferência [nesse sentido]. Mas a gente não descarta porque a omissão é clara”, pontua.

A conclusão é de que, na Cidade Maravilhosa, apenas determinados CEPs são alvo da política de confronto que norteia a segurança pública há décadas.

A Secretaria de Estado da Polícia Militar do Rio de Janeiro defendeu rigor no combate a grupos criminosos, mas não se manifestou sobre o resultado do levantamento do UOL.

 

 

*Com informações do Uol

*Foto destaque: Uol