A história do Brasil é marcada pela criminalização das religiões de matriz africana.
Dona Teresa quando entra na senzala
Oi corre atrás de rezadeira com criança para benzer
A carne é fraca, o santo é forte na ribeira
Oi vira santo a noite inteira, quero ver agradecer
É preciso reconhecer o papel histórico que os povos e comunidades tradicionais de terreiro desempenham na sobrevivência e na luta contínua pela afirmação da dignidade humana da população negra desde o terrível crime da escravidão. É necessário reconhecer que os saberes ancestrais africanos e afro-brasileiros beneficiam não apenas pessoas negras, mas toda a sociedade brasileira.
O samba, epígrafe deste texto, de autoria da cantora Teresa Cristina, ilustra bem a importância dos conhecimentos tradicionais de cura, beneficiando inclusive os brancos colonizadores. Mas o reconhecimento público e institucional desses saberes continua sendo negado. O racismo religioso segue operando invalidação, no reconhecimento público por parte de certos gestores públicos e setores da sociedade.
Lélia Gonzalez afirma que a violência do racismo impossibilita o reconhecimento da “contribuição para o avanço da humanidade nos níveis filosófico, científico, artístico e religioso” realizada pelo povo negro. É o próprio racismo que atribui ao negro uma suposta incapacidade de pensar e de produzir conhecimento e ciência. A história do Brasil é marcada pela criminalização das religiões de matriz africana, com seus saberes medicinais reduzidos ao curandeirismo. A repressão às práticas de cura realizadas por sacerdotisas e sacerdotes dessas tradições já figurou, na história recente do país, como crime contra a saúde pública.
É nesse contexto histórico de apagamento e violência que, desde 2021, foi instituído no estado do Rio de Janeiro o “Abril Verde” — Lei 9.301/21, de minha autoria — como um mês dedicado ao enfrentamento do racismo religioso. A lei simbolicamente reconhece essas tradições como espaços de promoção da saúde. O verde faz referência a Ossãe, orixá das folhas e da medicina. A este grande Orixá pede-se a cura para os males do racismo, considerado um dos determinantes sociais das condições de saúde da população negra. Por isso, celebramos a importância dos saberes medicinais ancestrais. Saberes que confrontam o racismo e ampliam a compreensão hegemônica de saúde, reconhecendo o corpo em sua integralidade, na qual os terreiros nos ensinam que a natureza e espiritualidade são indissociáveis da noção de saúde.
Esta reflexão segue os passos de uma luta histórica, marcada por vitórias institucionais que carecem de regulamentação e aplicabilidade. É preciso efetivar a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), conquista do movimento negro no Sistema Único de Saúde (SUS). A PNSIPN, instituída em 2010, já destacava a relevância dessas práticas preservadas nas comunidades de terreiro como parte do direito à saúde no SUS.
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Nessa direção, a recente resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) sobre o papel dos terreiros na promoção da saúde, assim como garantir o respeito das complexidades culturais dos povos tradicionais nos equipamentos do SUS. A resolução n° 715 de 2023, na sua orientação 46, reconhece as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e suas comunidades tradicionais de terreiro como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS.
Reconhecer os terreiros como espaços de cuidado e promotores de saúde é reconhecer que a cura também vem da ancestralidade, das folhas, dos cantos, da fé e da resistência negra. O Abril Verde é mais do que um símbolo: é um chamado à ação, à escuta e ao respeito. Que a política pública caminhe ao lado dos saberes tradicionais, que o SUS acolha, valorize essas práticas de cura. Porque, contrariando as violências, enquanto houver terreiro, haverá cura, dignidade e vida pulsando pelo Brasil afora.
*Renata Souza é deputada estadual, autora da Lei que institui o Abril Verde no estado do Rio de Janeiro, cria da Favela da Maré, jornalista e pós-doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Feminista negra, preside atualmente a Comissão da Mulher da Alerj. Foi reeleita a deputada estadual mais votada da história. É coautora do livro Pedagogia do Axé: saberes, lutas e resistências do povo negro (Ed. Aruanda).
*BdF