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Aressa Rios: A Folia de Reis no Vale do Paraíba

A origem histórica da Folia de Reis brasileira, e as que se manifestam e se apresentam no estado do Rio de Janeiro não se diferem nesse aspecto, é basicamente a origem da Festa de Reis difundida pela América Latina.

No Brasil adquire algumas especificidades, como em cada um dos países em que esse festejo se mantém vivo, não só por se tratar de um país distinto que, assim como os outros países, carrega suas especificidades culturais, mas porque dentro de nossa formação cultural, passamos por um processo de colonização basicamente português, diferente do restante da América Latina em que a presença espanhola foi mais marcante.

A História

A Folia de Reis foi trazida para o Brasil no século XVI através dos portugueses e já naquele tempo, reuniam-se grupos de homens, cancioneiros do catolicismo ibérico inspirados na jornada natalina das pastorinhas dentro da qual aparecem as figuras dos Reis Magos e que também pertence ao ciclo natalino. Aqui chegando, mesclou-se à cultura indígena (nativos) e africana (dos negros trazidos da África no período da escravidão – século XVI), o que hoje se reflete claramente dentro da Jornada através da figura do palhaço. Tornou-se aqui uma manifestação popular que pode ser considerada uma forma de expressão do teatro popular.

No estado do Rio de Janeiro, principalmente no Vale do Paraíba, a história das Folias de Reis se relaciona diretamente com nosso passado colonial. Por ser o Vale do Paraíba, formado por parte dos municípios dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, esta região apresenta-se como testemunho e sede de fatos que mudaram o curso da história de nosso país e é como uma síntese, que ilustra o processo de colonização ocorrido no Brasil.

O Vale do Paraíba, que engloba parte do estado do Rio de Janeiro, região eixo no processo de transição de uma economia agropastoril para uma economia de base industrial, deste ponto de vista, pode ser lido como uma síntese da formação cultural brasileira. É justamente nessa região que vão emergir as diversas manifestações da cultura popular, entre elas a Folia de Reis, que são o testemunho vivo, performando a cada dia pelas ruas, a síntese do processo da formação cultural brasileira.

O ritual

A Folia de Reis é uma manifestação da cultura popular brasileira que a cada ano reconstrói a passagem bíblica que narra a jornada dos Reis Magos, guiados pela estrela de Belém, rumo ao Menino Jesus nascido. Nas mãos do povo, os textos bíblicos adquirem novas feições. São interpretados, relidos e adaptados pela sabedoria e religiosidade popular, que opera constantes transformações.

Encontrada, principalmente, nos estados da região sudeste, entre eles o Rio de Janeiro, mas ocorrendo também em outras regiões do país, a Folia de Reis inicia seu ciclo ritual no dia 24 de dezembro (véspera de Natal), quando sai à meia-noite para só retornar no dia 6 de janeiro, Dia de Reis.

No estado do Rio de Janeiro, as jornadas costumam sair novamente no dia 7 de janeiro ou permanecer direto no giro, para cumprir a jornada de São Sebastião, retornando somente no dia 20 de janeiro, dia do santo padroeiro da cidade. Há indícios de que esta data teria sido incluída no calendário da Folia por influência da charola, uma dança de origem portuguesa com estrutura ritual semelhante a da Folia de Reis e que no Brasil adquiriu uma variante, a “Charola de São Sebastião”.

Tradicionalmente, os integrantes da Folia de Reis são chamados de “foliões” ou de “foliões de Santos Reis” e cada membro da Folia exerce uma função dentro do grupo e durante o processo ritual. Com exceção do palhaço, vestem-se com fardas similares aos fardamentos militares. Entre eles estão o mestre, o contramestre, o bandeireiro, os instrumentistas e os palhaços, considerado os representantes dos soldados de Herodes, perseguidores do Menino Jesus. É o elemento comumente tratado como profano dentro da Folia. Dançam a chula, composta de dança e versos de tom satírico, moral e/ou religioso.

Durante sua apresentação a Folia de Reis segue um percurso ao qual se dá o nome de giro ou jornada. A trajetória ganha este nome pelo fato de que o ponto de partida coincide com o ponto de chegada. Durante essa jornada a Folia vai fazendo suas paradas de um pouso a outro e visitando as casas para anunciar a palavra dos Santos Reis e para pedir donativos ou contribuições.

No decorrer da jornada, a Folia realiza uma série de cantorias ou toadas. A primeira delas é a cantoria de saída que dá início ao giro; este é momento em que a Folia se concentra e as recomendações e rezas são proclamadas pelo mestre. Dentro e fora das casas visitadas pela Folia, também são realizados cantos, entre eles os cantos de chegada e pedido de licença, através dos quais a Folia é recebida pelo dono da casa, realizando assim a saudação e a reza, chamada de profecia, já dentro da casa; por último, a cantoria de despedida, em que a Folia se despede da casa e de seu dono.

Essa sequência se repete em todas as casas visitadas. No momento em que a Folia encerra sua jornada, há o canto de chegada, na maioria das vezes realizado na casa do festeiro, do dono ou mesmo do mestre, diante do presépio ou da própria bandeira da Folia.

O palhaço da Folia

Além das cantorias, realizadas em cada casa visitada, existe a chula do palhaço, que ocorre sempre após a cantoria de despedida, fora da casa, normalmente no quintal ou na rua. Ao som dos instrumentos, em sua maioria, neste momento, de percussão, acompanhados da sanfona (acordeom), executados em ritmo acelerado, ou seja, “música-de-pancadaria”, dançam os palhaços mascarados com extrema velocidade, executando passos e acrobacias caracterizados por um elevado grau de dificuldade em sua execução.

Além da dança, o palhaço declama versos, tentando estabelecer um diálogo jocoso com o morador, na maioria das vezes como uma forma de persuadi-lo, para que este lhe atenda um pedido (geralmente dinheiro, comida ou bebida). No que tange às funções e restrições do palhaço, ao longo da jornada, este está impedido de passar à frente da bandeira, que geralmente fica oculta sob um véu ou pelas fitas, permanecendo sempre atrás e escoltando-a, semelhante ao movimento realizado pelos mestres-salas das escolas de samba.

Como um representante dos soldados do rei Herodes e sendo a bandeira o símbolo máximo da Folia, carrega consigo uma simbologia do sagrado, que não condiz com o papel por ele representado. Outro aspecto que poderia explicar este fato é pensar na bandeira como um símbolo de proteção, como a materialização dos Santos Reis, funcionando como um escudo para a Folia e, ao mesmo tempo, como o estandarte que a identifica. Passar à sua frente significaria não só um desrespeito àquilo que ela representa, mas também uma exposição, na medida em que se extrapola sua área de proteção, ou seja, sair do raio de sua atuação significaria estar desprotegido.

É interessante observar, em relação ao posicionamento do palhaço e sua circulação que, ao mesmo tempo em que o palhaço não pode passar à frente da bandeira ou aproximar-se muito dela, guardados alguns momentos específicos do ritual, é recomendado a ele também que não se afaste muito da bandeira enquanto a Folia realiza seu giro, principalmente à noite.

O palhaço, pela ambiguidade que guarda, por representar o guardião e ao mesmo tempo o soldado de Herodes, figura muitas vezes associada ao diabo, acaba por carregar consigo um aspecto de impureza. Por isso o impedimento em relação ao ato de entrar na casa ou na igreja. Ao longo dos anos de pesquisa, pude ouvir de diversos foliões. Entre eles, principalmente o mestre Luizinho, que já exerceu o ofício de palhaço, que existem situações em que ao final do canto de despedida da Folia, quando esta encerra sua visita, o palhaço é chamado pelo dono da casa e conduzido cômodo por cômodo para realizar uma espécie de limpeza, retirando desses ambientes os elementos, negativos e impuros que possam existir ali, absorvendo em si essas impurezas.

Palhaço e foliões unem-se no corpo ritual da Folia de Reis de forma uníssona, sendo cada parte necessária uma à outra, como um organismo vivo, cujo corpo e estrutura ritual revela-se rico e complexo, estando sujeito a nuances e singularidades conforme a localidade. Podendo variar a cada região, estado, cidade ou até mesmo bairro ou comunidade, o que confere a cada uma delas uma forma única, somada às mudanças que o próprio tempo tem dado cabo, numa tradição que, por ser fruto e agente das dinâmicas sociais, apresenta-se em constante transformação.

No dia 6, eles, os magos, chegaram onde queriam, fizeram o que tinha quer ser feito pra ver um tal menino chamado “Jesus”. Eles, que não sabemos bem se eram três, que não sabemos bem se eram Reis, mas isso não importa.

Abre a janela que eles ainda estão aí, a andar pelas ruas narrando seu feito. Abre a porta que eles vieram anunciar que a fé leva você onde você quiser. Vem pra rua ver passar diante dos seus olhos a mensagem na forma mais linda de que você só precisa acreditar. A Folia de Reis passou na minha porta e eu não me contive e não me satisfiz em ver. Eu fui atrás. Fui ver de perto e aprender com eles um dos maiores ensinamentos que pude ter na vida: FÉ.

A Jornada, a Folia não passou por mim, ela entrou sem bater na minha porta e me levou pro giro! Viva Santos Reis!

Aressa Rios/ http://aressarios.com.br/arte-educacao-e-politica/a-folia-de-reis-no-vale-do-paraiba/

Esse texto foi produzido para o site do Fórum para as Culturas Populares e tradicionais onde encontra-se publicado:

https://fcptsite.wixsite.com/fcpt/single-post/2020/01/20/A-Folia-de-Reis-no-Rio-de-Janeiro?fbclid=IwAR0_LNhAh69Dw5LkN8COTwIrNoXmPgwhtG5FVLMoHiDWacqIl485cssxYCQ

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Os tambores do vale do Paraíba

Por Francisco Luiz Noel

Que a batida do samba e a dolência do choro têm raízes africanas, não há ouvido que conteste. Porém, de tanto escutar o bordão de que a arte dos sambistas e chorões nasceu em berço urbano, muitos brasileiros não se dão conta de que o caminho desses dois gêneros nacionalíssimos cruzou os cafezais do vale do Paraíba no século 19. Antes de soar redondo nos tambores, pandeiros, violões, flautas, cavaquinhos e bandolins, a música que gerou sambistas como Donga e Clementina de Jesus e chorões como Pixinguinha e Jacó do Bandolim foi nutrida pelos cantos e batuques dos escravos na dura lida das fazendas dos barões do café. O rio Paraíba do Sul corria num grande vale dos tambores, percutidos em meio a formas musicais e instrumentos europeus.

Mais do que com palavras, é com notas musicais que o compositor, bandolinista e chorão fluminense Carlos Henrique Machado Freitas semeia país afora essa visão sobre um dos mais instigantes cruzamentos culturais da música brasileira. Cinco anos após o lançamento de seu CD duplo Vale dos Tambores, o músico sempre bate nessa tecla nas apresentações, palestras e debates de que participa, no Rio de Janeiro e em outros estados. Seu trabalho, cultuado no mundo do choro e lançado em quinta edição, patrocinada pela Eletrobrás, é exemplo vivo desse sincretismo etnomusical, valendo como um contundente manifesto em defesa da filiação do choro e do samba às matrizes da cultura rural dos tempos da cafeicultura escravocrata.

“O vale do Paraíba no século 19 era a representação do Brasil”, afirma Carlos Henrique, que compôs as 35 músicas do CD após uma imersão de dois anos na tradição dos grupos populares de cidades e povoados vale-paraibanos do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Em suas pesquisas, o músico mergulhou no rico universo de manifestações como folias de reis, bailes de calango, o jongo do Quilombo São José, no município fluminense de Valença, e as congadas de Aparecida, no trecho do vale situado em São Paulo. Sobre esse caldeirão cultural, testemunhou o chorão, pairam as figuras negras de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, ícones da religiosidade sincrética que é marca distintiva da sociedade brasileira.

A vitalidade sonora da herança africana no vale chama a atenção de pesquisadores há mais de meio século. Um deles foi o brasilianista Stanley J. Stein, autor de Vassouras – Um Município Brasileiro do Café, 1850-1900, clássico sobre a economia cafeeira publicado em 1957. Num gravador de arame magnetizado, ele registrou em 1949 mais de 50 jongos cantados por descendentes de escravos da região. Os registros, que incluíam sambas, possivelmente gravados no Rio de Janeiro, tornaram-se conhecidos em 2007 no livro-CD Memória do Jongo – As Gravações Históricas de Stanley J. Stein, organizado pelo antropólogo Gustavo Pacheco e pela historiadora Silvia Hunold Lara, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com patrocínio da Petrobras.

Livres e migrantes

No turbilhão migratório iniciado após a Abolição, em 1888, e estendido até os anos 1930, não foram poucos os ex-escravos e descendentes que transportaram ao Rio de Janeiro e São Paulo a tradição afro-brasileira do vale. Sonhando melhorar de vida, mas relegados a barracos de favelas e a empregos humildes, muitos vale-paraibanos anônimos ajudaram a dar forma ao carnaval carioca e paulistano, agregando ritmos e gingados de origem africana a uma festa antes dominada por traços europeus. A presença desses migrantes, observa o sambista carioca Nei Lopes, pesquisador da cultura negra, é atestada por estudiosos de escolas de samba do Rio, como Marília Barbosa, autora de livros sobre a Mangueira e a Portela, e Rachel Valença, sobre o Império Serrano.

“Em vários livros sobre as primeiras escolas de samba cariocas, a listagem biográfica dos fundadores tem a predominância de pessoas oriundas do vale do Paraíba. O samba, evidentemente, não veio com elas, mas as manifestações que trouxeram e aqui se caldearam com as de outras procedências foram decisivas”, Nei Lopes avalia. Exemplos dessas contribuições, ele cita, foram o jongo e o calango, exportados do vale e praticados até hoje em comunidades de ascendência negra. Conhecido como caxambu e tambu, o jongo une a dança ao canto puxado pelo jongueiro e respondido na roda, ritmado por um par de tambores. No calango, os versos são improvisados em ritmo rápido e sincopado, ao som da sanfona e do pandeiro.

Caso típico de migração do vale do Paraíba rumo ao Rio de Janeiro nos tempos da formação do samba é o da filha de escravos Maria Joana Monteiro, que ficaria conhecida como Vovó Maria Joana Rezadeira, mãe de santo que tinha entre seus filhos de fé a cantora Clara Nunes. Nascida e criada numa fazenda de café em Valença, Maria Joana mudou-se nos anos 1920 com a família, o jongo e outras tradições para o morro da Serrinha, no bairro de Madureira, onde participaria da fundação da Escola de Samba Império Serrano, em 1947. Seu filho, o percussionista Darcy Monteiro, criaria na década de 1960 o grupo Jongo da Serrinha, que articula a tradição rural do gênero ao formato de show, difundindo o jongo no país e no exterior.

O samba paulistano viveu processo semelhante, observa a professora de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) Martha Abreu, pesquisadora da cultura negra e coautora de um dos textos de Memória do Jongo. “Nos morros do Rio onde surgiram escolas de samba havia jongo, calango e folias de reis, que já existiam na cidade, mas que eram a cara do vale do Paraíba no século 19. Isso também ocorreu em São Paulo: muitas pessoas das primeiras escolas, como as que moravam na Barra Funda, tinham saído do vale.” Em 1914, no bairro, as rodas de samba de negros citadinos e migrantes geraram o Grupo Carnavalesco Barra Funda, primeiro cordão paulistano, liderado pelo filho de escravos Dionísio Barbosa e origem da Escola de Samba Camisa Verde e Branco.

Memórias dos cafezais

O vale do Paraíba despontou no mapa do Brasil no século 17. Pela correnteza do rio, descendo desde as terras paulistas, os bandeirantes iniciavam a jornada rumo às matas de Minas Gerais em busca de ouro e pedras preciosas, numa aventura que abriu novas fronteiras para o Brasil Colônia à custa da dizimação de diversos grupos indígenas que viviam na região. De caminho para desbravadores e mercadorias, o vale passou à condição de principal polo da economia brasileira na segunda metade do século 19, quando o boom da cafeicultura escravocrata e a consequente derrubada da mata atlântica para a expansão sem freios das lavouras abriram um novo ciclo na economia brasileira, depois dos reinados do açúcar e da mineração.

O café, originário da África, havia chegado ao Brasil por volta de 1730, procedente da Guiana Francesa. Das primeiras lavouras cultivadas no Pará, a planta rubiácea desceu ao sudeste e foi aclimatada pelo braço escravo a locais montanhosos da cidade do Rio de Janeiro, como a área que mais tarde teria a mata recomposta e formaria a floresta da Tijuca. No fim do século 18, a cafeicultura expandiu-se em direção ao interior e, avançando serra acima, alcançou o vale do Paraíba pelo município fluminense de Resende. Na direção oeste, os cafezais seguiram rumo a terras paulistas e, a leste, desceram pelo vale e fincaram raízes na Zona da Mata do território de Minas.

O acesso fácil à mão de obra escrava, fornecida por um vigoroso tráfico negreiro, pilotado por grandes negociantes e comissários do café, foi vital para fazer do produto o grande negócio brasileiro do Segundo Reinado, estimulado pelo consumo crescente em países da Europa e nos Estados Unidos. Na segunda metade dos anos 1840, a produção dos cafezais espalhados no trecho fluminense do vale do Paraíba beirava 50 mil toneladas anuais, calcada na grande fazenda monocultora, que os economistas do século 20 chamariam de plantation. Na década de 1850, em plena expansão por todo o vale, as propriedades cafeeiras chegaram a produzir 140 mil toneladas por ano – mais de 80% das exportações do Brasil, maior fornecedor de café do planeta.

No vale, cavado entre a litorânea serra do Mar e a interiorana Mantiqueira, o café espalhou cidades e lugarejos marcados por flagrante desigualdade social, mas ricos em manifestações culturais, surgidas na encruzilhada do legado dos negros bantos, procedentes da África central, e da influência europeia. Passados 150 anos do auge da cafeicultura, suas marcas continuam presentes na região, incluída a arquitetura de época. O Paraíba do Sul, com 1.150 quilômetros entre o nascedouro, em Paraibuna (SP), e a foz, em São João da Barra (RJ), é o desaguadouro de uma bacia hidrográfica que se espraia por 55,5 mil quilômetros quadrados e abriga 5,5 milhões de brasileiros, em 180 municípios – 39 em São Paulo, 53 no Rio de Janeiro e 88 em Minas.

Bandas de escravos

Uma das pontes entre a musicalidade de linhagem africana e o choro foram as bandas de escravos formadas em várias fazendas do vale na segunda metade do século 19, explica o músico Carlos Henrique. Como sinal de poder, os barões do café ostentavam a propriedade de grupos musicais em que negros empunhavam instrumentos de sopro importados e eram regidos por músicos europeus. Exemplo, nos anos 1850, foi a banda de escravos que aparece na fotografia de capa dos CDs e do encarte de Vale dos Tambores. Pertencente ao cafeicultor Antônio Luís de Almeida, de Bananal, município paulista do vale, o grupo era conhecido como Banda do Tio Antoniquinho e tinha à frente um maestro alemão, Wiltem Sholtz.

O encontro de vertentes musicais tão diferentes desaguou numa das correntes mais ricas da cultura brasileira. “Os negros se apropriaram das formas musicais da Europa, mas incluíram um toque da ancestralidade africana e também ameríndia”, observa Carlos Henrique. O vale do Paraíba, onde africanos recém-desembarcados se juntavam a negros e brancos tangidos à região pela decadência do ouro em Minas, foi espaço privilegiado na formação da musicalidade nacional, proporcionando a operação de processos de sincretismo cultural ocorridos também em regiões como as zonas açucareiras, no nordeste. “O choro e o samba foram construídos nos nossos ciclos econômicos”, resume o músico, nascido no município de Volta Redonda (RJ) em 1952.

Em Vale dos Tambores, Carlos Henrique passeia pela cultura regional sem abrir mão da criatividade na composição, secundando seu bandolim com o instrumental típico do choro, agregando sopros e valorizando a percussão. O passado ressoa em músicas como Tambus para Manoel Congo, alusiva ao líder de uma gigantesca fuga de escravos no vale, em 1838, e Lundu de Clementina, ecoando também em peças como Dança dos Puris, cujo título remete aos indígenas dizimados pela expansão do café. Cortando um Dobrado lembra as bandas que estão na origem do choro. Na pungente Zero Hora, o bandolinista honra em ritmo de valsa os peões do turno da meia-noite na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, adicionando sua vivência urbana ao rico painel que criou sobre a música do vale do Paraíba.

O choro de raiz de Vale dos Tambores rende tributo às origens vale-paraibanas do autor. Filho de arigó, como eram chamados os fluminenses, mineiros e migrantes de outros estados que ergueram à beira do Paraíba do Sul a CSN e a Cidade do Aço, nos anos 1940, o músico viveu a efervescência cultural das primeiras décadas do empreendimento, símbolo getulista de um Brasil moderno. Num mundo em que os filhos dos arigós tinham boas escolas e formação artística, garotos como Carlos Henrique soltavam a voz no canto orfeônico, sopravam cornetas nas fanfarras e aprendiam a tocar instrumentos – tudo em nome do “novo homem”, como pregava a propaganda getulista.

Ao aprendizado musical, o compositor juntou a experiência como mestre de bateria de escolas de samba de Volta Redonda e integrante de grupos de choro desde os anos 1970, colecionando prêmios e elogios de chorões da antiga e do presente. Autor de uma composição incorporada ao repertório do gênero – Meu Pandeiro no Choro –, Carlos Henrique lançou em 2002 seu primeiro disco, Comigo Não, Violão, com 14 composições. Com Vale dos Tambores, ganhou em 2005 o 4º Prêmio Rival Petrobras de Música, na categoria Atitude, e viu suas músicas lançadas no Japão, além de passar a se apresentar em programas culturais na tevê e em templos da música instrumental, como o Clube do Choro de Brasília e a loja Modern Sound, no Rio de Janeiro.

Carlos Henrique, que prepara um novo CD inspirado nas observações do escritor e pesquisador Mário de Andrade sobre o choro no livro Música de Feitiçaria no Brasil, dos anos 1930, segue o rastro de muitos outros grandes músicos do vale do Paraíba que ganharam o mundo. Um dos primeiros a se projetar foi o pistonista e compositor Bonfiglio de Oliveira, mestiço nascido em 1891 no município paulista de Guaratinguetá, por onde ainda ecoavam melodias e ritmos das bandas que haviam misturado o som das senzalas com o instrumental e as formas europeias da casa-grande. Virtuose, Bonfiglio brilhou em orquestras cariocas, compôs choros e musicou sambas com letristas famosos, como Orestes Barbosa, Lamartine Babo e Herivelto Martins.

O vale do Paraíba também exportou cobras em outros instrumentos, como o violão, abrasileirado no século 20 e alçado a presença obrigatória na música popular do país. Nascido também em Guará, o instrumentista Dilermando Reis desembarcou no Rio de Janeiro aos 18 anos, na década de 1930, para fazer escola como precursor da linguagem que caracterizaria o chamado violão brasileiro. Outra virtuose do pinho foi Rosinha de Valença, do município homônimo na parte fluminense do vale. Gênio precoce, apresentada às cordas por um tio conhecido como Fio da Mulata, ela passou a tocar em bailes da região aos 12 anos e migrou para o Rio de Janeiro aos 18, impressionando com sua técnica os músicos cariocas.

Samba e raízes rurais

No balaio de influências da tradição negra do vale sobre o samba carioca, um caso emblemático é o da cantora Clementina de Jesus. Neta de escravos do café, nascida em Valença junto com o século 20, ela viveu a infância entre pontos de jongo, ladainhas e cantos de trabalho entoados pela mãe, parteira e rezadeira, e toques de capoeira e da viola ponteada pelo pai, pedreiro e carpinteiro. Desembarcada no Rio de Janeiro nos anos 1910, morou no bairro de Oswaldo Cruz, berço da Portela, e no morro da Mangueira, trabalhando quase toda a vida como empregada doméstica. Em 1963, aos 63 anos, teve seu talento descoberto pelo compositor e produtor cultural Hermínio Bello de Carvalho.

Aos ouvidos cariocas da década de 1960, quando a classe média se dividia entre a bossa nova e a nascente jovem guarda, o canto de Clementina era o elo perdido entre a música das senzalas e o samba, que vivia dias de revalorização. Em 1965, ela impressionou a crítica carioca ao estrelar com Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nescarzinho do Salgueiro e Aracy Cortes o histórico show Rosa de Ouro. O espetáculo repetia o nome do cordão cantado em Ó Abre Alas, marcha composta em 1899 por Chiquinha Gonzaga, pioneira na fusão de ritmos negros com formas europeias. Clementina lançou em 1966 o primeiro de seus LPs, em que o partido-alto e outras variações do samba desfilavam ao lado do jongo e outros gêneros ancestrais do vale.

Mensurar a exata influência dos vale paraibanos é desafio que não passa pela cabeça dos estudiosos, em face da complexidade do cruzamento de culturas que resultou no samba. No Rio de Janeiro, além dos libertos chegados do vale, os ex-escravos originados da Bahia e seus descendentes deram grande contribuição ao gênero. Muitos deles se reuniam, nas primeiras décadas do século 20, em casas e rodas como a da célebre mãe de santo e quituteira Tia Ciata, na antiga Praça 11, berço dos desfiles de escolas de samba. Em 1917, da casa da baiana Ciata, frequentada por bambas como Pixinguinha e os sambistas Sinhô e João da Baiana, saiu o primeiro samba gravado, Pelo Telefone, registrado por Donga e Mauro de Almeida.

Marcas da herança vale-paraibana no samba foram deixadas por manifestações como o calango. “Em minhas pesquisas sobre partido-alto, observei que no samba tradicional há uma maneira de versar e de improvisar mais sinuosa, mais sincopada, mais repinicada. Acho que isso veio do calango ou desafio calangueado, da região do vale”, afirma Nei Lopes, comparando essa forma ao samba de roda da Bahia, mais “liso”, com menos notas musicais, ritmado com palmas. Entre os partideiros que lembram o calango ele cita alguns famosos, como Padeirinho da Mangueira e Geraldo Babão, do Salgueiro, falecidos, e Tantinho da Mangueira.

 

 

*Da Revista Sesc