Categorias
Cultura

Aressa Rios: A Folia de Reis no Vale do Paraíba

A origem histórica da Folia de Reis brasileira, e as que se manifestam e se apresentam no estado do Rio de Janeiro não se diferem nesse aspecto, é basicamente a origem da Festa de Reis difundida pela América Latina.

No Brasil adquire algumas especificidades, como em cada um dos países em que esse festejo se mantém vivo, não só por se tratar de um país distinto que, assim como os outros países, carrega suas especificidades culturais, mas porque dentro de nossa formação cultural, passamos por um processo de colonização basicamente português, diferente do restante da América Latina em que a presença espanhola foi mais marcante.

A História

A Folia de Reis foi trazida para o Brasil no século XVI através dos portugueses e já naquele tempo, reuniam-se grupos de homens, cancioneiros do catolicismo ibérico inspirados na jornada natalina das pastorinhas dentro da qual aparecem as figuras dos Reis Magos e que também pertence ao ciclo natalino. Aqui chegando, mesclou-se à cultura indígena (nativos) e africana (dos negros trazidos da África no período da escravidão – século XVI), o que hoje se reflete claramente dentro da Jornada através da figura do palhaço. Tornou-se aqui uma manifestação popular que pode ser considerada uma forma de expressão do teatro popular.

No estado do Rio de Janeiro, principalmente no Vale do Paraíba, a história das Folias de Reis se relaciona diretamente com nosso passado colonial. Por ser o Vale do Paraíba, formado por parte dos municípios dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, esta região apresenta-se como testemunho e sede de fatos que mudaram o curso da história de nosso país e é como uma síntese, que ilustra o processo de colonização ocorrido no Brasil.

O Vale do Paraíba, que engloba parte do estado do Rio de Janeiro, região eixo no processo de transição de uma economia agropastoril para uma economia de base industrial, deste ponto de vista, pode ser lido como uma síntese da formação cultural brasileira. É justamente nessa região que vão emergir as diversas manifestações da cultura popular, entre elas a Folia de Reis, que são o testemunho vivo, performando a cada dia pelas ruas, a síntese do processo da formação cultural brasileira.

O ritual

A Folia de Reis é uma manifestação da cultura popular brasileira que a cada ano reconstrói a passagem bíblica que narra a jornada dos Reis Magos, guiados pela estrela de Belém, rumo ao Menino Jesus nascido. Nas mãos do povo, os textos bíblicos adquirem novas feições. São interpretados, relidos e adaptados pela sabedoria e religiosidade popular, que opera constantes transformações.

Encontrada, principalmente, nos estados da região sudeste, entre eles o Rio de Janeiro, mas ocorrendo também em outras regiões do país, a Folia de Reis inicia seu ciclo ritual no dia 24 de dezembro (véspera de Natal), quando sai à meia-noite para só retornar no dia 6 de janeiro, Dia de Reis.

No estado do Rio de Janeiro, as jornadas costumam sair novamente no dia 7 de janeiro ou permanecer direto no giro, para cumprir a jornada de São Sebastião, retornando somente no dia 20 de janeiro, dia do santo padroeiro da cidade. Há indícios de que esta data teria sido incluída no calendário da Folia por influência da charola, uma dança de origem portuguesa com estrutura ritual semelhante a da Folia de Reis e que no Brasil adquiriu uma variante, a “Charola de São Sebastião”.

Tradicionalmente, os integrantes da Folia de Reis são chamados de “foliões” ou de “foliões de Santos Reis” e cada membro da Folia exerce uma função dentro do grupo e durante o processo ritual. Com exceção do palhaço, vestem-se com fardas similares aos fardamentos militares. Entre eles estão o mestre, o contramestre, o bandeireiro, os instrumentistas e os palhaços, considerado os representantes dos soldados de Herodes, perseguidores do Menino Jesus. É o elemento comumente tratado como profano dentro da Folia. Dançam a chula, composta de dança e versos de tom satírico, moral e/ou religioso.

Durante sua apresentação a Folia de Reis segue um percurso ao qual se dá o nome de giro ou jornada. A trajetória ganha este nome pelo fato de que o ponto de partida coincide com o ponto de chegada. Durante essa jornada a Folia vai fazendo suas paradas de um pouso a outro e visitando as casas para anunciar a palavra dos Santos Reis e para pedir donativos ou contribuições.

No decorrer da jornada, a Folia realiza uma série de cantorias ou toadas. A primeira delas é a cantoria de saída que dá início ao giro; este é momento em que a Folia se concentra e as recomendações e rezas são proclamadas pelo mestre. Dentro e fora das casas visitadas pela Folia, também são realizados cantos, entre eles os cantos de chegada e pedido de licença, através dos quais a Folia é recebida pelo dono da casa, realizando assim a saudação e a reza, chamada de profecia, já dentro da casa; por último, a cantoria de despedida, em que a Folia se despede da casa e de seu dono.

Essa sequência se repete em todas as casas visitadas. No momento em que a Folia encerra sua jornada, há o canto de chegada, na maioria das vezes realizado na casa do festeiro, do dono ou mesmo do mestre, diante do presépio ou da própria bandeira da Folia.

O palhaço da Folia

Além das cantorias, realizadas em cada casa visitada, existe a chula do palhaço, que ocorre sempre após a cantoria de despedida, fora da casa, normalmente no quintal ou na rua. Ao som dos instrumentos, em sua maioria, neste momento, de percussão, acompanhados da sanfona (acordeom), executados em ritmo acelerado, ou seja, “música-de-pancadaria”, dançam os palhaços mascarados com extrema velocidade, executando passos e acrobacias caracterizados por um elevado grau de dificuldade em sua execução.

Além da dança, o palhaço declama versos, tentando estabelecer um diálogo jocoso com o morador, na maioria das vezes como uma forma de persuadi-lo, para que este lhe atenda um pedido (geralmente dinheiro, comida ou bebida). No que tange às funções e restrições do palhaço, ao longo da jornada, este está impedido de passar à frente da bandeira, que geralmente fica oculta sob um véu ou pelas fitas, permanecendo sempre atrás e escoltando-a, semelhante ao movimento realizado pelos mestres-salas das escolas de samba.

Como um representante dos soldados do rei Herodes e sendo a bandeira o símbolo máximo da Folia, carrega consigo uma simbologia do sagrado, que não condiz com o papel por ele representado. Outro aspecto que poderia explicar este fato é pensar na bandeira como um símbolo de proteção, como a materialização dos Santos Reis, funcionando como um escudo para a Folia e, ao mesmo tempo, como o estandarte que a identifica. Passar à sua frente significaria não só um desrespeito àquilo que ela representa, mas também uma exposição, na medida em que se extrapola sua área de proteção, ou seja, sair do raio de sua atuação significaria estar desprotegido.

É interessante observar, em relação ao posicionamento do palhaço e sua circulação que, ao mesmo tempo em que o palhaço não pode passar à frente da bandeira ou aproximar-se muito dela, guardados alguns momentos específicos do ritual, é recomendado a ele também que não se afaste muito da bandeira enquanto a Folia realiza seu giro, principalmente à noite.

O palhaço, pela ambiguidade que guarda, por representar o guardião e ao mesmo tempo o soldado de Herodes, figura muitas vezes associada ao diabo, acaba por carregar consigo um aspecto de impureza. Por isso o impedimento em relação ao ato de entrar na casa ou na igreja. Ao longo dos anos de pesquisa, pude ouvir de diversos foliões. Entre eles, principalmente o mestre Luizinho, que já exerceu o ofício de palhaço, que existem situações em que ao final do canto de despedida da Folia, quando esta encerra sua visita, o palhaço é chamado pelo dono da casa e conduzido cômodo por cômodo para realizar uma espécie de limpeza, retirando desses ambientes os elementos, negativos e impuros que possam existir ali, absorvendo em si essas impurezas.

Palhaço e foliões unem-se no corpo ritual da Folia de Reis de forma uníssona, sendo cada parte necessária uma à outra, como um organismo vivo, cujo corpo e estrutura ritual revela-se rico e complexo, estando sujeito a nuances e singularidades conforme a localidade. Podendo variar a cada região, estado, cidade ou até mesmo bairro ou comunidade, o que confere a cada uma delas uma forma única, somada às mudanças que o próprio tempo tem dado cabo, numa tradição que, por ser fruto e agente das dinâmicas sociais, apresenta-se em constante transformação.

No dia 6, eles, os magos, chegaram onde queriam, fizeram o que tinha quer ser feito pra ver um tal menino chamado “Jesus”. Eles, que não sabemos bem se eram três, que não sabemos bem se eram Reis, mas isso não importa.

Abre a janela que eles ainda estão aí, a andar pelas ruas narrando seu feito. Abre a porta que eles vieram anunciar que a fé leva você onde você quiser. Vem pra rua ver passar diante dos seus olhos a mensagem na forma mais linda de que você só precisa acreditar. A Folia de Reis passou na minha porta e eu não me contive e não me satisfiz em ver. Eu fui atrás. Fui ver de perto e aprender com eles um dos maiores ensinamentos que pude ter na vida: FÉ.

A Jornada, a Folia não passou por mim, ela entrou sem bater na minha porta e me levou pro giro! Viva Santos Reis!

Aressa Rios/ http://aressarios.com.br/arte-educacao-e-politica/a-folia-de-reis-no-vale-do-paraiba/

Esse texto foi produzido para o site do Fórum para as Culturas Populares e tradicionais onde encontra-se publicado:

https://fcptsite.wixsite.com/fcpt/single-post/2020/01/20/A-Folia-de-Reis-no-Rio-de-Janeiro?fbclid=IwAR0_LNhAh69Dw5LkN8COTwIrNoXmPgwhtG5FVLMoHiDWacqIl485cssxYCQ

Categorias
Opinião

Aressa Rios: Sobre Tecer e Renascer

E se você pudesse começar de novo?
E se você pudesse voltar no tempo e mudar algumas situações?
E se você pudesse passar uma borracha em tudo o que pra você não foi bom ou poderia ser evitado?
E se você tivesse hoje em mãos o poder de voltar lá e mudar o que não saiu exatamente como havia planejado?
E se você tivesse tentado um pouco mais?
E se você tivesse ido antes?
E se você tivesse feito outra escolha?
E se você não tivesse insistido tanto?
E se você tivesse dado um basta?
E se você tivesse feito escolhas diferentes?
E se eu tivesse largado tudo?
E se eu não tivesse me largado?
E se eu tivesse dito adeus?
E se eu tivesse dito mais “eu te amo”?
E se eu tivesse me amado mais?
E se eu não esperasse tanto?
E se eu não tivesse tido tanto medo?
E se eu tivesse tido mais coragem?
E se eu tivesse tentado?
E se eu tivesse?
E se eu?
E se?

O fato é que nenhuma dessas perguntas tem resposta, porque o que foi já passou e o presente é a resposta das decisões que tomamos antes, das escolhas que fizemos ao longo dessa jornada.
A grande verdade de tudo isso é que onde estamos hoje é resultado das escolhas que fizemos no passado e isso vale para o micro e é resultante também do macro, ou seja, do que nos envolve e nos afeta. Somos fruto e agentes do meio. Assim sendo, uma palavra dita e uma palavra não dita tem a mesma potência originária, assim como o movimento. E cabe a nós fazer essa escolha.

Podia ter sido diferente? No presente, o futuro é sempre uma possibilidade, mas o que está feito, está feito. Mas saiba que se você move uma vareta, as outras se movem também, esse é grande lance do jogo. Diante disso, saiba que qualquer que fosse a escolha, a mudança, o caminho escolhido, o fato a ser apagado, movido, substituído, necessariamente moveria todas as peças do xadrez ou muitas delas. Não se pode separar um fio sem desfazer toda a trama.

Agora, estando consciente de que essa trama é tecida por você neste grande tear chamado vida, você pode escolher trocar o fio, ir numa direção diferente do ponto onde parou, acrescentar novas cores, interromper padrões de tramas que não saíram exatamente como gostaria, mudar o desenho, iniciar um novo ponto, abrir espaços entre as linhas, mudar a lógica do tecer, inverter, virar de cabeça pra baixo, inventar algo novo, ousar o que ainda não experimentou, criar, mudar a direção…sim…tudo isso é possível! Até mesmo não tecer mais e dar um nó no último ponto pra firmar tudo o que foi construído até aqui.

Se pensarmos na vida como um grande tear, veremos que tem um início, um meio, um fim, que requer movimento, escolhas, consistência, criação, liberdade, que segue uma certa lógica, mas que também é repleta de possibilidades. E que enquanto estamos em movimento, nós e o tear, damos sentido à sua existência, mas se pararmos, ele perde sua função, sua beleza sua “utilidade”, sua capacidade criativa, sua arte, interrompemos um processo que existe enquanto em movimento, mas que na estaticidade é como se deixasse de existir, ali parado, mudo, empoeirado.

E assim é a vida, ela existe no movimento, na criação, nas escolhas, ainda que olhemos para elas e cheguemos à conclusão de que não foram as melhores, mas pelo menos foram um movimento em alguma direção, que no momento do passo, acreditamos ser o melhor caminho.

A grande questão nesse caminho, é quando deixamos de escolher, quando nos acuamos com medo de tomar alguma direção, quando jogamos para não perder, quando ficar parado se torna mais seguro.

É como se o tear parasse, dando-nos a falsa sensação de que isso é vida. Com medo de mover e ele quebrar, com medo de mexer num fio e ele não sair como você imaginou, fosse sinônimo de que todo o tecido está perdido. Com medo de mudar a direção e no novo desenhar e dançar dos fios acabar por dar um nó e interromper a trama. Sem se dar conta de que nós de desfazem, de que nós marcam pontos, mas também recomeços. O tear parado é como se morrêssemos aos poucos, é como se ao invés de viver, passássemos a sobreviver.

E aí as coisas vão perdendo a cor, o cheiro, o sabor. Aí começa a não fazer sentido. Aí começamos a nos perguntar e se?

É quando paramos de nos mover que vamos perdendo a capacidade de olhar pra frente, é como se parássemos de olhar pelo vidro do carro e passássemos a olhar a vida pelo retrovisor. Se não estamos nos movendo estamos morrendo.
Então, se tem algo que você pode se perguntar agora é:

E se eu levantar dessa cadeira e começar tudo de novo?
E se eu fizer voltar a girar esse tear?
E se eu ousar mudar e fazer diferente?
E se eu entender que já não sou a mesma e que tudo bem?
E se eu construir novas tramas com os fios de quem eu sou hoje?
E se eu mudar a direção das linhas?

São tantos os teares, são tantos os fios, são tantas as possibilidades de cores, caminhos, combinações. São tantos os movimentos!

E basta pisar nesse pedal, pois quando você se movimenta, tudo se movimenta!
Escolha uma cor, um fio, uma direção e, sem pressa, inicie o movimento. Começa em você. Movamo-nos! Teçamos novos fios!
Vamos renascer em novas tramas.

 

*Aressa Rios – Doutora em Cultura Popular pela Unirio

*Imagem destaque – Tecelão Van Gogh