Presidente da Câmara questionou paternidade confirmada em exame de DNA. Mãe recorreu ao Estado para bancar remédio essencial para tratamento.
Escrita por Alice Maciel, da Agência Pública
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), não tornou pública a existência de uma filha, fruto do relacionamento extraconjugal que teve em 2002 com Letícia*, à época com 20 anos, que trabalhava distribuindo panfletos da campanha de reeleição do político à Assembleia Legislativa de Alagoas. A Agência Pública teve acesso à decisão judicial de primeira instância, publicada em dezembro de 2010, que o obrigou a assumir a paternidade da menina, após teste de DNA, já com 7 anos de idade — não foram localizados recursos e decisões judiciais posteriores relativos ao processo de investigação de paternidade. Hoje, Gabriela* tem 19 anos – aos 4, foi diagnosticada com um tipo raro de epilepsia que causa atraso no desenvolvimento psicomotor, chamada de síndrome de West.
A jovem, que precisa de cuidados especiais e apoio nas necessidades básicas, como comer, trocar de roupa e andar, leva uma vida humilde e mora numa casa simples numa cidade próxima a Maceió. A Pública apurou que, em 2016, sua mãe precisou recorrer à Justiça para conseguir no governo do estado um remédio de alto custo para tratar as frequentes convulsões da filha. Gabriela fica sob os cuidados da avó quando a mãe sai para trabalhar como atendente de bilheteria.
O presidente da Câmara foi procurado para dar sua versão da história. A reportagem enviou 10 questões relacionadas ao tema. A resposta, encaminhada por nota, segue na íntegra: “O povo brasileiro quer saber o que estamos fazendo para combater a inflação, reduzir o preço dos combustíveis, da energia, do gás de cozinha, dos alimentos. O povo brasileiro espera medidas que gerem mais empregos, renda e traga desenvolvimento. É isso que estamos fazendo dia a dia: buscando soluções que melhorem a vida de cada cidadão e cidadã. Esse é o nosso foco permanente. A vida privada de um homem público não interessa quando não há nenhuma relação de irregularidade ou ilegalidade”.
Também procuramos Letícia pessoalmente, em 25 e 26 de maio, mas ela não quis falar sobre sua relação com Lira, que tem patrimônio declarado de R$ 1,7 milhão. “Eu não tenho nada para falar, sou uma pessoa normal, que segue a minha vida, trabalhando e fazendo as minhas coisas. Sem falar que minha vida pessoal não diz respeito a ninguém”, afirmou. Os nomes de mãe e filha foram alterados na reportagem para preservar suas identidades, assim como o local exato onde residem.
Em 2008, a bilheteira entrou com Ação de Investigação de Paternidade Cumulada com Alimentos contra o então deputado estadual. O processo, que já está arquivado, tramitou sob sigilo, mas a sentença acabou divulgada em órgão oficial da imprensa. Optamos por não divulgá-la e não citar trechos na íntegra também com o intuito de preservar a identidade de Letícia e Gabriela. Nela, há um resumo do caso.
Segundo o documento, Letícia teria relatado nos autos que não conseguiu nem mesmo ter acesso a Arthur Lira para contar da gestação. De acordo com ela, ao saber da filha por meio de seu assessor, o político teria se recusado a reconhecer a paternidade da criança. À época, Lira era casado com Jullyene Lins e já tinha um herdeiro de 3 anos, Arthur Lira Filho, nascido em janeiro de 2000. Seu caçula também é fruto do matrimônio com a ex-mulher. Álvaro Lins de Lira nasceu em março de 2006.
O teste de DNA realizado pelo laboratório da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) apontou o então deputado estadual como o pai biológico de Gabriela com mais de 99% de probabilidade. Mesmo assim, o parlamentar, por meio de seu advogado, contestou o exame. A defesa argumentou que o teste não seria próprio para confirmar a paternidade, e sim para caracterizar sua exclusão.
Como ele não apresentou nenhum estudo científico para o argumento, o juiz intimou o perito responsável pelo DNA — um professor renomado da universidade federal —, que, segundo o magistrado, se posicionou contra a realização de novo exame, diante da ausência de justificativa plausível. Após as explicações do pesquisador, o juiz reforçou em sua sentença que o resultado do teste de DNA tem total credibilidade.
Com a confirmação do parentesco, a sentença proferida em dezembro de 2010 determinou que Arthur Lira pagasse à filha pensão de 20% referente ao seu subsídio líquido — o salário bruto do parlamentar era de R$ 20 mil — e ainda a inclusão do nome do deputado e dos avós paternos de Gabriela na certidão de nascimento.
Sem recursos para tratamento de doença
Apesar de carregar o nome do político no documento de identidade, Gabriela não foi assumida publicamente. Em 2016, Letícia precisou recorrer à Justiça para que o Estado fornecesse mensalmente um medicamento anticonvulsivo para a filha, orçado à época em R$ 1.184,20.
“Diante do custo do medicamento, a beneficiada desta ação, humilde, não tem condições financeiras para custeá-lo, restando apenas a proteção do Judiciário para salvar sua vida”, informa a defesa, acrescentando ainda que Gabriela tem epilepsia e transtorno do espectro autista (TEA). Letícia e Gabriela foram representadas nos autos pela Defensoria Pública. O pedido foi acatado pela Justiça e, diante da demora do fornecimento do remédio, a defensora alertou: “O que está em ‘jogo’ é a saúde de uma criança doente e carente de recursos”.
Naquele ano, Arthur Lira já estava em seu segundo mandato na Câmara dos Deputados, recebendo salário líquido de R$ 23,6 mil — o que representaria R$ 4,7 mil de pensão, considerando-se a determinação da sentença de 2010. Na campanha de 2014, ele declarou à Justiça Eleitoral patrimônio de R$ 1,16 milhão, incluindo duas fazendas. Além de atuar na política, Lira é agropecuarista, criador da raça de gado nelore.
A reportagem questionou o parlamentar sobre o pagamento da pensão alimentícia à filha, mas ele não respondeu às perguntas enviadas, encaminhando apenas a nota citada. O desconto relativo à pensão alimentícia também não é divulgado no portal da transparência da Câmara dos Deputados por ser considerado de “natureza pessoal”.
Sua filha, conforme dados do processo, era usuária do Sistema Único de Saúde (SUS), e a médica da jovem relatou no laudo anexado ao processo que ela fez uso de todas as alternativas terapêuticas disponíveis e fornecidas pelo SUS. “Menor é portadora de grave atraso neuropsicomotor com espectro autista secundário à epilepsia de difícil controle. Aos 4 anos de vida, desenvolveu epilepsia de West. Evoluiu posteriormente para epilepsia multifocal”, diz o documento.
A médica observa que Gabriela chegou a tomar vários anticonvulsivantes nacionais “e mesmo assim apresentava crises tônicas diariamente”. Ela relata que prescreveu um remédio importado que é utilizado “quando os anticonvulsivantes nacionais não conseguiram controlar epilepsias farmacorresistentes”. Depois que a menina começou a experimentar a medicação, segundo o laudo, houve melhora significativa das convulsões, assim como do desempenho motor. A médica ressaltou ainda que o uso do remédio possibilitou que Gabriela conseguisse sair da cadeira de rodas — o que não acontecia antes devido ao grande número de convulsões diárias. “Diante do exposto, solicitamos o fornecimento dessa medicação”, concluiu a profissional.
Lira não queria reconhecer a filha, diz ex-mulher
Mulher de Arthur Lira à época em que Letícia engravidou, Jullyene Lins disse à Pública que o deputado escondeu por muito tempo dela a existência da menina. Segundo a ex-esposa, o parlamentar só lhe contou a história após três anos do nascimento de Gabriela, em 2006, quando temeu que o caso viesse à tona devido à disputa política. Naquele ano, ele se candidatou para o segundo mandato na Assembleia.
De acordo com Jullyene, Lira teria lhe dito: “Olha, não vou reconhecer, não sei se é minha filha, mesmo se fizer DNA, o advogado vai dar um jeito”. Ela afirmou que ficou indignada com a postura do companheiro e diz ter sugerido que ele “pelo menos” ajudasse a menina financeiramente. No entanto, segundo Jullyene, Lira teria respondido: “Não quero saber, pra mim nem existe, não quero saber e você vai ficar calada”.
Jullyene contou que essa história foi o estopim da separação do casal. “Uma pessoa, que é pai dos seus filhos, tem uma conduta dessa, aí foi por água abaixo”, observou. Ela relata que o relacionamento com Arthur Lira já não andava bem porque o deputado, ainda casado, havia assumido publicamente o relacionamento que mantinha com outra mulher.
“Ele sempre foi muito namorador. A mulher já é tida para aguentar as traições do marido, e no Nordeste isso é pior ainda. Porque o machismo é assim aqui no Nordeste: se a mulher trair o homem, é rapariga, prostituta, mas, se o homem trair, ele é o gostosão, o fodástico. Então, ele sempre teve muitas namoradas e ao mesmo tempo ciúmes de mim. Eu não podia sair de casa, só saía com motorista”, relatou Jullyene.
Jullyene Lins foi casada com Arthur Lira e afirma que sofreu violência verbal e psicológica
Ex-mulher relata que Arthur Lira a teria agredido fisicamente
De acordo com Jullyene Lins, Arthur Lira exigia que a esposa fosse “uma dona de casa perfeita”. Ela conta que o deputado chegava em casa passando os dedos nos móveis para conferir se estava tudo limpo e, quando encontrava alguma poeira, gritava: “Você é uma inútil, não presta pra nada. Só presta mesmo pra cuidar dos meninos, pra dar educação, pelo menos não faz eu passar vergonha em um restaurante”.
“Eu era a dondoquinha, tinha que andar bem-vestida, arrumada, eu era no pedestal para política, para caminhar, para fazer reunião com as mulheres junto com a mãe dele, pra cuidar dos meninos e para cuidar da roupa dele. Pra isso eu prestava. Porque, se tinha uma blusa amassada, ele pegava, amassava mais, jogava no chão e gritava comigo perguntando o que eu estava fazendo dentro de casa, que não estava vendo que a blusa dele estava mal passada”, lembrou emocionada.
Jullyene diz que por causa do abandono — o companheiro sairia na maioria das vezes sozinho —, das traições e da violência, teve depressão. Ela relata que começou a beber, fumar e tomar muito remédio devido à tristeza, às crises de ansiedade e de pânico. O quadro teria se agravado após a suposta agressão física contra ela. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) absolveu Arthur Lira da denúncia de agressão. Os ministros consideraram que a punição prescreveu e que não havia provas.
Jullyene ainda briga na Justiça para que o parlamentar quite um ano de pensão aos filhos (de 2012 a 2013) que ele teria ficado sem pagar, segundo ela.
A ex-esposa do presidente da Câmara dos Deputados depôs contra o político na Operação Taturana, deflagrada em 2007 pela Polícia Federal (PF). Arthur Lira, segundo o Ministério Público Federal (MPF), teria liderado um esquema de “rachadinhas” na Assembleia Legislativa de Alagoas, quando ele ainda era deputado estadual (2001-2007). Jullyene teria sido uma das funcionárias fantasmas empregadas no gabinete do parlamentar.
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das citadas
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