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Bolsonaro conseguiu dar ao presente saudita uma cara, orelhas e olhos de suborno

As aparências, como se sabe, enganam. As coisas nem sempre são tão ruins quanto parecem. Elas podem ser piores. É o que sucede no caso das joias de R$ 16,5 milhões enviadas ao Brasil em outubro de 2021 pela ditadura saudita por intermédio do então ministro das Minas e Energia, o almirante Bento Albuquerque. Avacalharam-se todos os ritos. Um presente milionário ganhou aparência de suborno.

Em circunstâncias republicanas, o anel, o colar, o relógio e o par de brincos seriam registrados num formulário preenchido em muitas vias. A descrição apresentaria as peças como presentes do Reino da Arábia Saudita à República Federativa do Brasil. Os diamantes embarcariam em mala diplomática. E desembarcariam no Brasil como bens de propriedade da União, isentos de tributação.

Percorrendo os atalhos da gestão Bolsonaro, as joias foram enfiadas na mochila de Marcos André dos Santos Soeiro, um assessor militar de terceiro escalão do Ministério de Minas e Energia. Voaram em avião de carreira. Ao pousar em Guarulhos, o portador dos diamantes pegou a fila dos viajantes que não têm “nada a declarar” às autoridades alfandegárias. Foi fisgado pelo aparelho de raio-x da Receita Federal. Deu no que está dando.

Antes de noticiar a encrenca, o Estadão foi ouvir o almirante Bento Albuquerque. Em conversa gravada, ele disse que as joias seriam para Michelle Bolsonaro. Alegou que desconhecia a natureza do presente. Embora atenda às conveniências, a versão é desconexa.

Falta nexo ao blábláblá do desconhecimento porque nem mesmo num conto das arábias alguém daria um presente de R$ 16,5 milhões sem informar ao portador o valor da mercadoria a ser transportada. A menção a Michelle soou conveniente porque a Constituição não atribui funções de Estado à primeira-dama. Seria mais fácil sustentar a tese segundo a qual os diamantes seriam propriedade privada.

Bolsonaro sempre cultivou a pretensão de manter relações privilegiadas com o ditador saudita, o príncipe Mohammed bin Salman. Visitou-o em outubro de 2019. Antes do encontro, disse a jornalistas: “Acho que todo mundo gostaria de passar uma tarde com o príncipe, principalmente vocês mulheres. Vou ter essa oportunidade hoje. Nós dois temos certa afinidade.”

Depois da conversa, Bolsonaro declarou: “A forma como o príncipe herdeiro tem me tratado, e eu também no tocante a ele… É como se fôssemos velhos conhecidos ou até mesmo irmãos. Isso me orgulha.” Quer dizer: do ponto de vista de Bolsonaro, as joias seriam o presente de uma espécie de cunhadão multimilionário que Michelle jamais terá.

Em fevereiro do ano passado, Bolsonaro anunciou que Mohammed bin Salman, seu “irmão” por afinidade, visitaria o Brasil. Dizia-se que a viagem ocorreria em março. Depois, foi empurrada para maio. O eleitor brasileiro acabou retirando o capitão da Presidência antes que ele fosse visitado pelo “cunhadão” árabe da primeira-dama. Ficou-se sabendo, porém, que era grande o interesse do regime saudita no Brasil.

Informou-se, por exemplo, que um fundo de investimento soberano do reino da Arábia Saudita, o Fundo de Investimento Público, dono de uma carteira de investimentos estimada em US$ 500 bilhões, planejava investir algo como US$ 10 bilhões no Brasil.

Ou seja: a ditadura saudita tinha mais de 16 milhões de razões para mimar o casal Bolsonaro. Em 2021, quando os diamentes foram embarcados na mochila do assessor do almirante Bento Albuquerque, o projeto de reeleição do capitão ainda não havia saído dos trilhos. Mimá-lo ainda poderia ser bom para os negócios.

Lavrado em 26 outubro de 2021 na alfândega do aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo, o auto de infração da Receita Federal anota que o então ministro Bento Albuquerque recebeu a seguinte orientação: “…Para que os bens fossem considerados de propriedade da União, fruto de presentes do Reino da Arábia Saudita para a República Federativa do Brasil, o Ministério de Minas e Energia deveria pleitear formalmente o reconhecimento desta condição…”

Dois dias depois da apreensão, o então chefe de gabinete do Ministério de Minas e Energia, José Roberto Bueno Junior, enviou ofício ao setor que cuida do acervo oficial da Presidência da República. Anotou no documento: “Se faz necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado”.

No dia seguinte, 29 de outubro de 2021, o chefe de gabinete de Bento Albuquerque recebeu resposta assinada por Marcelo da Silva Vieira, então chefe de gabinete adjunto de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República. O texto continha uma obviedade e uma brecha.

No trecho óbvio, o funcionário do Planalto anotou que era preciso registrar os presentes num formulário oficial. No outro trecho, o servidor escreveu que, consumado o encaminhamento das joias, seria feita uma “análise quanto à incorporação ao acervo privado do presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”. Abriu-se uma brecha para que os diamantes virassem “acervo privado” do clã Bolsonaro.

Em nota divulgada depois que as joias viraram escândalo, a Receita Federal informou que a conversão do presente saudita em patrimônio da União “exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida”. O texto foi categórico: “Isso não aconteceu neste caso.”

Ainda refugiado na Flórida, Bolsonaro declarou: “Eu estava no Brasil quando esse presente foi ofertado lá nos Emirados Árabes para o ministro das Minas e Energia. O assessor dele trouxe, em um avião de carreira, e ficou na alfândega. Eu não fiquei sabendo. Dois, três dias depois, a Presidência notificou a alfândega que era para ir para o acervo.”

Tudo muda no Brasil, exceto a desfaçatez. Não importa a natureza nem a dimen$ão do escândalo. Bolsonaro sempre reage à maneira do avestruz. Espremido pela realidade, enfia a cabeça no cinismo.

*Josias de Souza/Uol

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Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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