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Palestina: a falsa equivalência entre o colonizado e o colonizador

Concentrar-se na denúncia da violência palestina é o mesmo que pedir a eles que aceitem passivamente o seu destino: morrer em silêncio e não resistir.

“Sob qual padrão de moralidade a violência utilizada por um escravo para romper suas correntes pode ser considerada o mesmo que a violência de um senhor de escravos?” – Walter Rodney

Na sequência dos ataques do Hamas a Israel, ocorridos no dia 7 de outubro, que causaram mais de 1,2 mil mortes, houve uma enxurrada de injunções da mídia ocidental, políticos e especialistas, insistindo para que qualquer pessoa que desejasse expressar uma opinião sobre os acontecimentos e os consequentes crimes de guerra e genocídio israelenses em Gaza, denunciasse primeiro o Hamas antes de expressar qualquer outra opinião. Não fazer isso explicitamente, ou qualquer tentativa de interpretar os eventos em seu contexto histórico ou enfatizar as causas fundamentais do conflito eram interpretadas como condescendência com as ações do Hamas (que o interlocutor era um simpatizante do Hamas) e relacionadas com antissemitismo.

Era como se a história do que chamamos conflito palestino-israelense tivesse começado no dia 7 de outubro e não com a Declaração Balfour de 1917, em que o governo colonial britânico anunciou o seu apoio ao estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina. Esse anúncio culminou naquilo a que os palestinos e os árabes chamam de Nakba (a Catástrofe), em 1948, em simultâneo com a fundação do Estado de Israel por meio da limpeza étnica generalizada, dos massacres e do deslocamento de centenas de milhares de palestinos. Mais guerras se seguiram, mais violência, mais assassinatos e mais ocupação de novos territórios. Isso levou a ainda mais deslocamentos, mais assentamentos ilegais e mais bombardeios, que custaram a vida de centenas de milhares de palestinos e forçaram milhões a viver como refugiados. Não me deterei nesta história, pois inúmeras fontes já o fizeram brilhantemente. Em vez disso, o meu objetivo aqui é estabelecer alguns paralelos com a história da luta anticolonial argelina para mostrar a vacuidade, a miopia e a injustiça de denunciar a violência do oprimido/colonizado e do opressor/colonizador em termos equivalentes. Os dilemas morais, os debates sobre a violência e os desacordos em torno da forma como as pessoas oprimidas ou colonizadas devem resistir, e o que podem ou não fazer, não são novos.

Quando penso na Palestina, não posso deixar de estabelecer paralelos com o caso do meu país, a Argélia, durante a era colonial (1830-1962). Não é por acaso que as classes populares e trabalhadoras argelinas apoiem fortemente a causa palestina, uma vez que ambos os países vivenciaram/vivenciam um colonialismo violento e racista. Para compreender o porquê, vale a pena visitar os escritos e as análises de Frantz Fanon sobre aquilo que chamou de “violência revolucionária” na sua obra-prima Os condenados da Terra, que escreveu com base nas suas experiências na Argélia e na África Ocidental nos anos 1950 e no início dos anos 1960. Os condenados da Terra é um texto canônico sobre a luta anticolonial e serviu como uma espécie de bíblia para as lutas de libertação da Argélia à Guiné-Bissau, África do Sul, Palestina e o movimento de libertação negra nos EUA.

Fanon descreveu minuciosamente os mecanismos de violência postos em prática pelo colonialismo para subjugar os povos oprimidos. “O colonialismo não é uma máquina de pensar, nem um corpo dotado de faculdades de raciocínio. É a violência no seu estado natural e só cederá quando confrontado com uma violência maior”, escreveu. Segundo Fanon, o mundo colonial é um mundo maniqueísta que, no limite, “desumaniza o nativo, ou, para falar claramente, transforma-o em animal”. Para ele, “a libertação nacional, o renascimento nacional, a restituição da nacionalidade ao povo, a comunidade: quaisquer que sejam os títulos utilizados ou as novas fórmulas introduzidas, a descolonização é sempre um fenômeno violento”.

A luta de independência da Argélia contra os colonizadores franceses foi uma das revoluções anti-imperialistas mais inspiradoras do século XX. Parte da onda de descolonização iniciada após a Segunda Guerra Mundial (na Índia, na China, em Cuba, no Vietnã e em muitos países africanos), a Conferência de Bandung declarou que estes movimentos faziam parte do “despertar do Sul” – um Sul que esteve sujeito durante décadas (em alguns casos, mais de um século) à dominação imperialista.

Após a declaração de guerra na Argélia em 1 de novembro de 1954, atrocidades impiedosas foram cometidas por ambos os lados (1,5 milhão de mortes, com milhões de deslocados no lado argelino, e dezenas de milhares de mortos no lado francês). A liderança da Frente de Libertação Nacional (FLN) tinha uma avaliação realista do equilíbrio de poder militar, que pendia fortemente a favor da França, que na época possuía o quarto maior exército do mundo. A estratégia da FLN foi inspirada no ditado do líder nacionalista vietnamita Ho Chi Minh: “Para cada nove de nós mortos, mataremos um; no final, vocês irão embora”. A FLN buscava criar um clima de violência e insegurança que acabaria por se tornar intolerável para os franceses, internacionalizar o conflito e chamar a atenção do mundo para a luta da Argélia.

Seguindo essa lógica, Abane Ramdane e Larbi Ben M’hidi decidiram levar a guerra de guerrilha para as áreas urbanas e lançar a Batalha de Argel em setembro de 1956. Talvez não haja melhor maneira de apreciar esse momento chave e dramático de sacrifício do que através do clássico filme realista de 1966 de Gillo Pontecorvo: “A Batalha de Argel”. No filme, há um momento marcante em que o coronel Mathieu, uma discreta referência ao general Massu na vida real, conduz o líder da FLN capturado, Larbi Ben M’Hidi, a uma coletiva de imprensa na qual um jornalista questiona a moralidade de esconder bombas em cestas de compras de mulheres. “Você não acha um pouco covarde usar cestas e bolsas de mulheres para transportar dispositivos explosivos que matam tantas pessoas?” Pergunta o repórter. Ben M’hidi responde: “E não lhe parece ainda mais covarde lançar bombas napalm em vilarejos indefesos, de modo que há mil vezes mais vítimas inocentes? Dê-nos seus bombardeiros, e você pode ficar com nossas cestas.”

Através de uma cobertura favorável generalizada da revolução argelina na imprensa afro-americana, muitas exibições locais de A Batalha de Argel, assim como os escritos de Fanon, a Argélia passou a ocupar um lugar seminal na iconografia, retórica e ideologia dos principais ramos do movimento afro-americano pelos direitos civis, que passou a ver sua luta associada às lutas das nações africanas por independência.

Depois de visitar a Argélia em 1964 e Casbah, local da Batalha de Argel contra os franceses em 1956-1957, Malcolm X declarou:

“As mesmas condições que prevaleceram na Argélia e forçaram o povo, o nobre povo da Argélia, a recorrer eventualmente a táticas de tipo terrorista que eram necessárias para ‘tirar o peso das costas’; essas mesmas condições prevalecem hoje na América em cada comunidade negra.”

Alguns meses depois, em 1965, ele disse:

“Eu não sou a favor da violência. Se pudermos obter o reconhecimento e o respeito de nosso povo por meios pacíficos, ótimo. Todos gostariam de alcançar seus objetivos pacificamente. Mas eu também sou um realista. As únicas pessoas neste país que são instadas a serem não violentas são as pessoas negras.”

E ao saber do assassinato de Martin Luther King, Jr. em 1968, o líder do Partido dos Panteras Negras, Eldridge Cleaver, proclamou:

“A guerra começou. A fase violenta da luta pela libertação negra está aqui, e se espalhará. A partir desse tiro, a partir desse sangue. A América será pintada de vermelho. Corpos encherão as ruas e as cenas lembrarão os relatos nojentos, aterrorizantes e oníricos vindos da Argélia durante o auge da violência geral pouco antes do colapso final do regime colonial francês.”

Também devemos desafiar a narrativa de culpabilização da vítima que se fixa nos palestinos como vítimas imperfeitas, o que, nas palavras da pesquisadora americano-palestina Noura Erakat, equivale a uma “absolvição e cumplicidade com a dominação colonial de Israel”. Ao destacar a violência palestina, nossa mensagem para eles “não é que eles devem resistir de maneira mais pacífica, mas que não podem resistir à ocupação e agressão israelenses de forma alguma”.

Denunciar e destacar a violência dos oprimidos e colonizados não é apenas imoral, mas racista. Os povos colonizados têm o direito de resistir com quaisquer meios necessários, especialmente quando todas as vias políticas e pacíficas foram bloqueadas ou obstruídas. Nos últimos 75 anos, todas as tentativas palestinas de negociar um acordo de paz foram rejeitadas e minadas. Todo meio não violento foi bloqueado, incluindo a “Marcha do Retorno” promovida pelo Hamas em 2018 (brutalmente reprimida, com mais de 200 mortos e dezenas de milhares feridos e mutilados), assim como a campanha internacional de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que foi tornada ilegal em vários países ocidentais sob a pressão do lobby sionista.

Em meio a uma ocupação colonial bárbara e condições de apartheid, seria apropriado que qualquer discussão sobre justiça e a responsabilidade pela violência contra civis começasse pelo opressor. Como a racionalidade de revolta e rebelião de Fanon coloca, os oprimidos se revoltam simplesmente porque não conseguem respirar.

Optar por focar na denúncia da violência palestina é semelhante a pedir a eles que aceitem passivamente seu destino – morrer em silêncio e não resistir. Em vez disso, vamos nos concentrar em um cessar-fogo imediato, interromper o desenrolar da segunda Nakba e encerrar o cerco e a ocupação, mostrando nossa solidariedade aos palestinos em sua luta por liberdade, justiça e autodeterminação.

As vidas palestinas importam!

(*) Hamza Hamouchene é um pesquisador e ativista argelino que vive em Londres. Atualmente, é coordenador do programa do Norte da África no Transnational Institute (TNI).

*Opera Mundi

 

Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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