‘A guerra em Gaza é uma guerra contra a memória palestina’, diz escritor e sobrevivente em Gaza Atef Abu Saif

Atef foi ministro da cultura da Palestina até março de 2024 e falou sobre a importância da escrita como resistência.

O escritor Atef Abu Saif e sua família fazem parte dos mais de um milhão de palestinos deslocados de suas casas em apenas um ano. Ministro da Cultura da Autoridade Palestina entre 2019 e março de 2024, Atef estava em Gaza quando os bombardeios começaram, experiência que relata no livro recém-lançado Quero estar acordado quando morrer (Elefante, 2024).

“Eu me descobri no meio de uma guerra, e descobri que eu poderia morrer a qualquer momento, em um minuto. Por isso, comecei a escrever, em árabe e inglês ao mesmo tempo, pequenos pedaços sobre a vida. Queria que as pessoas soubessem sobre a minha vida se eu morresse, e sobre a vida das pessoas ao meu redor: meu filho, meu pai, meus irmãos e irmãs”, disse ao Brasil de Fato. 

Atef nasceu no campo de refugiados de Jabalia, ao norte da Faixa de Gaza, mas mora com a esposa e filhos na Cisjordânia. No início dos ataques, o escritor estava visitando a região para participar de um evento e visitar sua família, e levou o filho Yasser para acompanhá-lo.

No diário, ele relata os 85 primeiros dias dos bombardeios de Israel sobre a população da Faixa de Gaza, que começaram em sete de outubro de 2023. Mesmo sob ataques incessantes do exército de Israel, escreveu diariamente sobre os acontecimentos da sua vida, familiares e amigos até a autorização de saída do seu filho da Faixa de Gaza, em 30 de dezembro de 2023.

“A escrita mantém a memória da vida. Nós sabemos sobre civilizações antigas a partir dos registros escritos deles. Gaza foi destruída e muitas pessoas morreram. O que restou deles? O que foi escrito sobre eles. A próxima geração vai ler sobre Gaza como era antes da guerra. Escrever é documentar”, conta Atef. “As vítimas gostam de ser mencionadas, gostam que falem sobre elas”, ressalta.

A sensação de que poderia morrer a qualquer momento, impulsionou a escrita: “Queria deixar esses registros, e tê-los na minha caligrafia, escritos à mão. Assim, pelo menos, eu não teria morrido em vão. As pessoas saberiam que existiu alguém chamado Atef que viveu neste período da história, em Gaza.”

“A guerra nos desumaniza”

A frase que dá nome à edição brasileira de seu diário, Quero estar acordado quando morrer, teve origem nos pensamentos que povoaram sua mente quando se viu em meio à guerra. “O que eu estava pensando é que eu mereço uma morte honrosa. Meu corpo merece ser sepultado quando eu morrer. Eu gostaria de estar acordado no momento da minha morte para eu saber para onde meu corpo vai. Para que eu diga para me colocarem em uma sepultura.”

Em um trecho do diário, Atef relata a perda do grande amigo e jornalista Bilal Jadali. Ao se referir a sobrevivência durante a guerra, diz que sente saudades. “Sinto falta do Atef, de ser eu mesmo”, escreveu.

“Na guerra, você não é você mesmo”, disse ao Brasil de Fato sobre essa passagem do diário. Nesse contexto, ele enfatiza que é preciso sempre “relembrar de si”, “olhar no espelho e nas fotos do celular, e tentar agir normalmente”, uma vez que “tudo ao redor não é normal”.

“A guerra nos desumaniza, torna a vida uma coisa anormal. Eu senti muitas vezes que não era o Atef. Eu era o Atef durante o genocídio, e isso vive com você após a guerra. Mesmo que eu tenha saído de Gaza, eu ainda sinto que estou lá. Meu espírito, meu corpo, minhas memórias. Você não é mais você”.

A escrita como resistência

Atef também destaca como o diário que escreveu e os registros dos moradores de Gaza servem para levar a narrativa palestina para o mundo.

“O que nós escritores fazemos é documentar a vida como ela é. E esse foi o motivo central do diário. Eu me distanciava sobre o que estava acontecendo, tentando observar sobre o que acontecia, e escrevia. A verdade e a realidade são mais poderosas do que imaginação e ficção.”

“Eles nos querem atrás das cortinas”, diz o escritor sobre as tentativas israelenses de manter jornalistas fora de Gaza. Em um determinado momento, ele recorda que, após sucessivos assassinatos, – “um jornalista morto pelas forças de Israel em Gaza a cada um dia e meio” – não havia mais profissionais da imprensa na região: “Foram todos expulsos, suas casas e escritórios destruídos”.

Como escritor, ele considera que a decisão de reportar para o mundo por meio de um diário foi uma forma de “jornalismo alternativo”.

“Isso provia informação sobre a situação em Gaza. Não é o puro jornalismo, é um jornalismo narrativo, no qual você conta sobre a vida. Não é ficção, não é romance, não é história também. Mas uma mistura de tudo isso: jornalismo, narrativa e suspense também, de certa forma, uma história contada em primeira pessoa”

Uma guerra contra a memória palestina

Durante o diário, Atef relembra constantemente a importância da memória para a existência e cultura de um povo, principalmente para os palestinos. Em relato do dia 6 de dezembro de 2023, conta que a dança dabke (dança palestina) foi incluída na lista oficial da Unesco como “patrimônio imaterial cultural”, que o mesmo já havia sido feito com o bordado palestino tatreez e que ele também pediria a entrada do sabonete tradicional nabulsi.

“Coisas como essa podem parecer frívolas num primeiro momento, mas são parte da identidade de um povo e daquilo que é ameaçado, e potencialmente perdido, quando ocupações ou guerra expulsam repetidamente as pessoas de sua terra”, explica ao Brasil de Fato.

Enquanto comandava o Ministério da Cultura – cargo que manteve até março deste ano – Atef dizia a seus interlocutores que a pasta se equiparava ao Ministério da Defesa, tal a importância da preservação da memória palestina para sua existência.

“A guerra lançada contra a Palestina é uma guerra contra a nossa memória, nossa cultura, nossa narrativa dos fatos e acontecimentos. O papel do ministro da Cultura é preservar essa memória e manter tais narrativas. A cultura é a linha de frente principal para defender a causa nacional, no nosso caso.”

Quero estar acordado quando morrer teve seu lançamento em São Paulo durante a inauguração do Centro de Centro de Estudos Palestinos (CEPal) na Universidade de São Paulo (USP) na quinta-feira (16), onde o escritor ressaltou a importância da memória e da preservação da cultura e estudos sobre a Palestina.

Durante o seu discurso, Atef relembrou como o povo palestino sempre foi propositalmente retratado como sem cultura ou estudos, usando como exemplo o significado da palavra em inglês “philistine”, que significa “alguém que é hostil ou indiferente à cultura e às artes”, que faz menção direta aos filisteus, povo do qual os palestinos descendem.

“A escrita preserva a memória. O que escritores escrevem se torna parte da memória de um povo. É responsabilidade dos autores serem leais a sua nação, pois a memória é a identidade de todas as culturas. O que identifica uma nação são as tradições contadas através dos seus membros do passado. Todas as pessoas querem ser parte de uma grande e longa história.”

Atef lembra que as pessoas não podem esquecer o genocídio que acontece na Palestina. “Nós não podemos parar de falar sobre isso”, completa o escritor. “Estudar, ler e registrar sobre a cultura palestina e acontecimentos passados e atuais também são parte importante da preservação da memória palestina.”

“Pertencemos a um lugar, a uma civilização porque, assim, nós podemos explicar nossa existência; como falamos, como nos vestimos. E isso é muito importante. Nós não podemos mudar o curso da História, mas ao menos [o registro] será em nosso nome”, finaliza.

Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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