Reinaldo Azevedo*
Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, depôs nesta quinta, por videoconferência, em ação que tramita no Tribunal Superior Eleitoral que apura a reunião que Jair Bolsonaro, então presidente, promoveu com embaixadores estrangeiros para acusar a fragilidade do sistema eleitoral brasileiro e apontar falsas evidências de fraudes em pleitos anteriores. A intenção da patuscada era segredo de Polichinelo: o biltre ora homiziado em Orlando testava, vamos dizer assim, o terreno internacional para o caso de um ato de força caso o resultado não lhe fosse favorável. Em uma palavra: golpe. Se isso era ou não possível, bem, esses são outros quinhentos. A questão, no caso, é saber se o crime foi tentado. E foi. E por iniciativa do próprio presidente.
O que Torres tem com isso? Num mandado de busca e apreensão que se sucedeu aos ataques de 8 de janeiro — ele era o secretário de Segurança do DF que tinha acabado de assumir o cargo e de sair de férias ao mesmo tempo —, foi encontrada em sua casa a minuta de um decreto de estado de defesa, que valeria apenas para o Tribunal Superior Eleitoral, o que é uma excrescência estúpida. Tal medida, com efeito, pode abranger áreas do país, mas nunca o prédio de uma instituição e seus braços. No caso, a Justiça Eleitoral estaria sob intervenção.
Nos termos do documento, os ministros seriam destituídos de suas funções, e uma “Comissão de Regularidade Eleitoral”, sob o comando do Ministério da Defesa, passaria a cuidar do processo. O grupo contaria com 17 membros, sete nomeados pela Defesa. Os ministros teriam seus respectivos sigilos telefônico e telemático quebrados. O espaço físico do TSE seria tomado por forças militares, nos seguintes termos: “Todas as dependências onde houve tramitação de documentos, petições e decisões acerca do processo eleitoral presidencial de 2022, bem como o tratamento de dados telemáticos específicos de registro, contabilização e apuração dos votos coletados por urnas eletrônicas em todas as zonas e seções disponibilizadas em território nacional e no exterior”. Mimetizando o AI-5, como escrevi quando esse texto foi descoberto, a minuta vetava a contestação na Justiça de decisões da tal Comissão.
O que essa minuta tem a ver com aquela reunião com embaixadores? Tudo. E não só com ela. Há 16 processos contra Bolsonaro ou a sua chapa no TSE. Essa, relacionada aos diplomatas, movida pelo PDT, atende pelo nome de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije). Em caso de condenação, a pena é a perda de mandato e a inelegibilidade. No caso, o ex-presidente estaria submetido à segunda punição. Insista-se: por que incorporar a minuta a essa Aije? Ora, porque ela expõe o que seria o desdobramento prático daquilo que o presidente golpista anunciou aos embaixadores. Afinal, se ele assegurou que o sistema eleitoral não era seguro e que havia evidências de fraudes em pleitos anteriores — e tudo era mentira —, seria inescapável que tentasse, então, segundo o seu discurso, resgatar a legalidade. Esse é o mecanismo a que recorre todo golpista. É muito raro que o sujeito diga: “É golpe mesmo, e daí?”
TORRES, O TODO-PURO
No depoimento, orientado por sua defesa — e esta cumpre sua nobre missão na democracia: defender! –, Torres classificou o documento de “lixo” e disse ser um texto “folclórico”. Mais: jamais teria tratado do assunto com o então presidente da República e, obviamente, não se lembra de quem lhe entregou a estrovenga.
Sei, sei… Vamos supor que assim seja, isto é: que ele nem se lembre de quem lhe passou o papel porque considerou aquilo “folclórico”. Sua memória certamente teria recebido o devido amparo se, então, ao tomar conhecimento daquele “lixo”, tivesse cumprido o seu dever: ou chamar a PF para dar voz de prisão a quem o convidava para cometer um crime ou, numa ação mais suave, cobrar que a PF abrisse imediatamente um inquérito para investigar o autor do texto.
Afinal, ninguém menos do que o ministro da Justiça — cujo papel é cuidar da harmonia entre os Três Poderes no que concerne à ordem legal — estava sendo convidado para um golpe de Estado. E ele se calou? Não fez nada? Limitou-se a acomodar o “”lixo folclórico” numa pasta? E não numa pasta qualquer. Como apontou o procurador Carlos Frederico Santos, “ao contrário do que o investigado já tentou justificar, não se trata de documento que seria jogado fora, estando, ao revés, muito bem guardado em uma pasta do Governo Federal e junto a outros itens de especial singularidade, como fotos de família e imagem religiosa”.
Torres certamente não é o tipo de monstro moral que junta lixo a fotos de familiares e imagens da boa e tradicional família cristã. E, claro!, negou que tenha tratado daquele assunto com Jair Bolsonaro, o chefe da pregação golpista. Pergunta: alguma chance de ele dizer o contrário?
CONFESSAR?
Sejamos objetivos: ninguém esperava que Torres contasse a origem da minuta golpista ou que dissesse que o texto era parte da urdidura para melar as eleições. Vale o óbvio: não havendo explicação convincente ou álibi, cumpre negar até o fim. A menos que seja oferecida alguma compensação pela verdade, como acontece no caso de delações premiadas. Sem isso, a defesa sempre aposta que uma dúvida razoável contará a favor do réu. Cabe indagar: há dúvida razoável no caso?
Fosse Torres um auxiliar qualquer de Bolsonaro, sem nenhuma vinculação com o aparato jurídico do Estado nem fosse o responsável pela relação com os outros Poderes nessa área, até se poderia emprestar à sua palavra um fiapo de credibilidade. Mas pergunto: quem acredita que um ministro da Justiça recebe uma minuta com os passos para um golpe de Estado, guarda o documento entre pertences que lhe são caros e não tem a menor noção de sua origem? Mais: na condição de um dos escudeiros mais fiéis de Bolsonaro, soa crível que o chefe, principal beneficiário do crime exposto naquele papel, de nada soubesse?
Assim define o Código de Processo Penal, no Artigo 239, a prova indiciária: “Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.”
Aplica-se ou não ao caso no que diz respeito ao processo que corre contra Bolsonaro no TSE?
E, no que respeita a Torres, dizer o quê? No mínimo, parece estar caracterizado um caso claro de prevaricação. Ele já é investigado, note-se, em um inquérito que apura a tentativa de golpe daquele 8 de janeiro. A prevaricação, a depender da investigação, pode ser a imputação mais leve.
*Uol
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