Um pronunciamento fundamental para o povo brasileiro que, embora não pareça, é formado por maioria de negros e pardos, mas que, infelizmente também conta com uma elite preconceituosa, racista e que se acha branca, mesmo sendo fruto de uma bela e extensa miscigenação somente vista num país tão culturalmente rico e diverso, o BRASIL.
Assista à fala de Lula e, abaixo, leia a íntegra do seu discurso.
20 de Novembro: Dia da Consciência Negra. Vídeo: Ricardo Stuckert https://t.co/VzxxZEFO8I
— Lula (@LulaOficial) November 20, 2020
“Minhas amigas e meus amigos,
Hoje, 20 de novembro, é Dia Nacional da Consciência Negra.
Este é um dia que todas as brasileiras e todos os brasileiros têm de celebrar, independentemente de raça e cor. Porque este é um dia que define nosso país. Define o que somos e o que podemos ser.
Nunca me esqueço da viagem que fiz, em abril de 2005, à Ilha de Gorée, na costa do Senegal, um dos locais de onde africanos escravizados eram embarcados à força para as Américas.
Lembro-me da comoção que senti ao entrar nas celas onde homens, mulheres e crianças eram mantidos presos até serem embarcados nos navios negreiros.
Não consegui conter a emoção na Porta do Nunca Mais. Quem passava por aquela porta era lançado nos porões dos navios rumo às Américas. Nunca mais voltaria à África. Perdia definitivamente sua terra, sua família e sua liberdade. Minha emoção foi tanta que, em nome do povo brasileiro, pedi desculpas à África e aos africanos pela escravidão.
No Benim, dizem que os escravos, antes de embarcar, eram obrigados a dar sete voltas em torno da Árvore do Esquecimento, para renunciar à sua identidade e à sua história.
A escravidão começava, assim, pelo esquecimento forçado da condição humana. E o racismo se mantém, em grande parte, pelo esquecimento do processo que nos formou como país.
É por isso, minhas amigas e meus amigos, que este Dia Nacional da Consciência Negra é tão importante. Instituído na data da morte de Zumbi, herói da luta contra a opressão dos colonizadores em Palmares, esse dia lembra o que não pode ser esquecido.
A data de hoje recorda a terrível realidade da escravidão, mas lembra também o exemplo da luta gloriosa do povo negro por sua libertação. Rememora as noites angustiantes nos navios negreiros, mas lembra também o amanhecer corajoso de Zumbi e Dandara em Palmares.
Esse dia nos faz também lembrar que o fim da escravidão, longe de representar a libertação do povo negro, deu início a um longo processo de discriminação e exclusão, que está na raiz das desigualdades raciais e sociais do Brasil de hoje.
Mas esse dia lembra, sobretudo, a incrível resistência do povo negro contra a escravidão e o racismo. Ele homenageia os esquecidos heróis e heroínas da Revolta dos Malês, da Revolta do Engenho de Santana, da Revolta das Carrancas, do Quilombo do Ambrósio, do Quilombo do Jabaquara, da Conjuração Baiana, da Revolta de Manoel Congo e de tantas outras revoltas que mostram que a escravidão não conseguiu aprisionar a alma guerreira das negras e dos negros do Brasil.
Esse dia não deixa esquecer que, em 1890, Ruy Barbosa mandou queimar parte dos arquivos da escravidão brasileira, como se a destruição de documentos pudesse destruir a realidade histórica e apagar a vergonha da escravidão.
Esse dia recorda que o Brasil foi construído também por mãos negras escravizadas e pelo talento de muitos filhos de escravos. O país de Machado de Assis e Lima Barreto. De Maria Firmina, Luís Gama, José do Patrocínio, João Cândido, Carolina de Jesus, Gilberto Gil, Abdias do Nascimento, Conceição Evaristo e Benedita da Silva, Martinho da Vila, todos descendentes de escravos.
O país de intelectuais negros e negras que ajudaram na formação da inteligência nacional e na compreensão da sociedade brasileira, a exemplo de Milton Santos, Joaquim Nabuco, Lélia Gonzáles, Manoel Querino, André Rebouças, Guerreiro Ramos, Beatriz Nascimento, Joel Rufino e Clóvis Moura.
A negritude está em todos nós, independentemente da cor da nossa pele. Somos filhos da África. Existe uma grande e bela África no coração do Brasil.
Durante mais de três séculos, cerca de 12 milhões e 500 mil pessoas foram arrancadas de suas raízes na África, escravizadas e deportadas para as Américas e o Caribe.
Cerca de 1 milhão e 800 mil homens, mulheres e crianças morreram na travessia do Atlântico, feita em condições subumanas. Em média, 14 cadáveres, foram lançados ao mar, todos os dias (todos os dias!) ao longo de 350 anos. Essa é, portanto, uma história de dor e sofrimento. Uma tragédia como nunca se viu antes na história da humanidade.
O Brasil foi o principal destino desse tráfico vergonhoso. Entraram nos portos brasileiros quase 5 milhões de escravos. Entre 1550 e 1850, de cada cem indivíduos entrados no Brasil, 84 eram escravos africanos, e somente 16 eram colonos ou imigrantes portugueses.
Assim, os povos africanos foram bem mais importantes para a formação histórica inicial do Brasil do que muita gente imagina. Somos hoje o segundo país do mundo com maior população negra, atrás apenas da Nigéria, de onde vieram muitos de nossos avós.
Se o Brasil fosse uma árvore, como a Árvore do Esquecimento, veríamos que a escravidão e o racismo estão impregnados em suas raízes históricas.
O Brasil foi o último país a acabar com o tráfico de africanos escravizados e o último abolir a escravidão nas Américas. Vivemos quase 4 séculos de escravismo brutal.
Isso deixou marcas profundas em nossa sociedade. Marcas estruturais que alguns querem negar e esquecer.
O governo genocida atual está totalmente empenhado em negar o papel da escravidão na formação do Brasil, o racismo estrutural que define profundamente nossa sociedade e, sobretudo, a luta da população negra contra sua opressão histórica.
Temos um presidente que afirma que os quilombolas têm de ser pesados em arrobas, como gado, e que esses descendentes dos combatentes contra a escravidão não servem nem para procriar.
Temos um governo que defende as velhas e falsas ideias de que a escravidão não foi tão ruim assim para os negros, de que os povos africanos foram responsáveis pela escravidão e de que não há racismo no Brasil.
Mais da metade da população brasileira é negra. Mas, mesmo sendo maioria, negras e negros ainda se encontrem nos patamares mais cruéis de desigualdade, pobreza e de violência.
No Brasil, a desigualdade e a pobreza têm cor.
De acordo com o IBGE, quase um terço dos negros brasileiros está abaixo da linha da pobreza, ao passo que entre os brancos, esse índice é de cerca de 15%. Na pobreza extrema estão quase 9 % dos negros, enquanto esse número entre os brancos é de menos de 4 %.
Ou seja, meus amigos, as negras e os negros são duas vezes mais pobres que os brancos.
Em nosso país, o desemprego e o subemprego também têm cor.
Em 2018, conforme o IBGE, quase 30% da população negra e parda estava desempregada ou subocupada. Entre os brancos, o mesmo índice era de 18%.
As mulheres negras são as mais penalizadas pelos processos de exclusão social herdados da escravidão. Mesmo com curso superior, elas ganham a metade do que ganham os homens brancos para exercerem a mesma função.
A doença também tem cor. Negras e negros são os que mais adoecem e os que menos têm acesso à saúde.
Eles compõem o público mais exposto ao novo coronavírus, devido à sua condição de pobreza, de desemprego, de trabalho informal, de localização em vilas e favelas sem saneamento básico.
Em nosso país, a violência definitivamente tem cor. Ela se abate ferozmente, como o chicote do pelourinho, na pele negra.
Nos últimos 10 anos, mais de 650 mil pessoas negras foram assassinadas no Brasil. E os negros são quase 80% dos mortos pela polícia.
No Brasil, os negros, especialmente os jovens negros, são vítimas de um genocídio: um jovem negro corre três vezes mais risco de ser assassinado que um jovem branco.
Além disso, de cada três presos, dois são negros.
Minhas amigas e meus amigos,
Para as elites brasileiras conservadoras, as vidas negras não contam. São descartáveis. Servem apenas como mão-de-obra barata para um sistema racista profundamente injusto e desigual.
Essa realidade terrível e vergonhosa do racismo está entranhada nas relações sociais, na vida cotidiana e nas instituições.
O racismo está na forma como enxergamos a sociedade e o mundo. Ele está na crueldade dos preconceitos que impedem que vejamos a humanidade comum no diferente.
Existe um racismo silencioso e cúmplice, que muitas vezes não se expressa em palavras ofensivas e injuriosas, mas que nega oportunidades à imensa maioria do povo brasileiro com base apenas na cor da pele. Esse é, portanto, um racismo corrosivo, que destrói o nosso futuro, porque impede que milhões e milhões de brasileiros realizem plenamente as suas vocações e talentos.
Por isso, o racismo desumaniza a todos nós.
Por isso, precisamos combatê-lo juntos. Essa é uma tarefa de todas e de todos que acreditam e lutam pela democracia e pela justiça social, e não somente dos negros e das negras.
Minhas amigas e meus amigos,
Nos quase dois anos de encarceramento injusto que passei, pude ler muito sobre a escravidão e o racismo no Brasil. Descobri que o racismo sempre foi uma prática das elites brancas brasileiras para subjugar as pessoas negras e manter a dominação econômica, social, política e racial.
Entendi, com as lições do Movimento Negro, que as pessoas brancas têm uma grande responsabilidade no combate ao racismo. Que existem privilégios por ser branco no Brasil e que mesmo a pessoa branca e pobre ainda consegue ser mais protegida do que aquela negra e pobre.
Compreendi quão importantes foram as políticas de ações afirmativas e de igualdade racial implementadas no meu governo e da presidenta Dilma, como a criação do Estatuto da Igualdade Racial, o reconhecimento das terras dos quilombolas e as cotas para o ensino superior e o funcionalismo público, que vêm dando grandes oportunidades para que as negras e os negros do Brasil mostrem sua competência.
Mas, hoje, tenho a certeza de que é necessário fazer muito mais.
Se quisermos ter um futuro de justiça e democracia, precisamos combater e superar o racismo. Não basta não ser racista. Precisamos urgentemente ser antirracistas.
Sem igualdade étnica e racial, assim como sem igualdade de gênero, não há democracia de verdade, não há cidadania efetiva e não haverá desenvolvimento. Com racismo, não há sequer soberania.
Um Brasil racista será sempre pobre, injusto, pequeno e frágil.
Portanto, para se reconstruir e transformar o Brasil, como desejamos, precisamos de uma democracia que se assuma antirracista. Precisamos de uma sociedade antirracista.
Em nome da vida, da vida de todas e todos, precisamos superar o racismo.
Minhas amigas e meus amigos,
Esse Dia Nacional da Consciência Negra serve também para nos lembrar que os negros, na verdade, jamais foram subjugados pela escravidão. Que o povo negro não é o que escravidão e o racismo fazem dele. Que ele é muito maior e mais forte do que isso que as elites deste país tentaram lhe impor ao longo dos séculos.
O grande Nelson Mandela escreveu:
Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem aprender a amar.
O racismo é filho do ódio e da intolerância. É também filho do medo ao diferente e do desejo de manter antigos privilégios. Ele vem de um mundo atrasado, triste e sombrio.
Mas se, como disse Mandela, ensinarmos as pessoas a amar, construiremos, todos juntos, um novo mundo democrático, igualitário e bem mais feliz. Um mundo sem racismo e ódio. Um mundo com a coragem de Zumbi e Dandara, pois o ódio é covarde e o amor é valente. Um mundo luminoso de vida para o Brasil.
Esse mundo, minha gente, é possível. E não é só possível. Esse é o mundo necessário para que todos sejam livres. Para que todos sejamos humanos.
É o mundo de que todos, negros e brancos, precisamos.
Amanhecemos transtornados com as cenas brutais de agressão contra João Alberto Freitas, um homem negro, espancado até a morte no Carrefour. O racismo é a origem de todos os abismos desse País. É urgente interrompermos esse ciclo.”
Luiz Inácio Lula da Silva
*PT na Câmara
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