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Sobre o belíssimo “AmarElo: É tudo pra ontem” de Emicida

“Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira: perspectivas etnomuseológicas”, do congolês Kazadi Wa Mukuna, é um dos melhores livros sobre a nossa música ao lado dos livros de Mário de Andrade.

Durante a nossa pesquisa para a produção do projeto musical Vale dos Tambores, nos valemos muito de suas profundas reflexões e afirmações sobre a formação de nossa música, a contribuição Bantu e como o Vale do Paraíba foi determinante nisso tudo. Afinal, o Vale dos Tambores buscou, através de imagens e informações históricas, além das minhas composições, tratar do universo do Choro e do Samba a partir dessa que é uma das principais matrizes de suas construções.

Segundo Kazadi, a música tem um universo em comum. O tempo, as harmonias e melodias são as mesmas. Agora, a formulação de cada uma dessas músicas, depende da cultura de onde a música foi criada.

Essa foi a síntese que vi no belíssimo “AmarElo: É tudo pra ontem” de Emicida.

Segundo Kazadi, a música é uma expressão humana dentro do tempo e do espaço. Para entender o porquê dessa música ser do jeito que ela é, tem que entender o comportamento de quem criou a música. E parece que foi essa a principal mensagem que Emicida quis passar.

Mário de Andrade, muito citado no documentário do Emicida, disse certa vez, quando foi chamado para ser uma espécie de parecerista que selecionaria as melhores obras eruditas para serem contempladas com uma premiação, não aceitou e explicou: só aceitaria se fosse para premiar Camargo Guarnieri, pois conheço a alma de sua obra. O motivo e o sentido do que eu escutaria a partir da fonte, porque acompanho de perto cada passo desse compositor há muitos anos e conheço o sentido de sua obra.

Emicida oferece um leque de expressões negras dentro da cultura brasileira, mas num contexto atual, modernizado.

Muitas ele fala, outras não.

Seu som, por exemplo, pelo menos o que eu ouvi no documentário, tem muito de herança da inenarrável Banda Black Rio, assim como da fantástica pianista Tania Maria. Basta ouvir “Funky Tamborim”. Da mesma forma como muitas das expressões da música negra no Brasil que metabolizaram antropofagicamente o som do mundo mantendo a memória ativa dos tambores brasileiros, que já não eram mais africanos, apesar de terem a matriz africana como ponto de partida.

O próprio Jongo em que os grandes versadores eram considerados durante os séculos de escravidão no Brasil como os “feiticeiros da palavra” por versarem em metáforas para os senhores da Casa Grande não entenderem o que eles falavam e as mensagens de força, resistência e fuga que continham naqueles versos.

Tudo isso está na música que Emicida apresenta, assim como o Choro e o Samba representado no trecho de um documentário aonde aparecem a santíssima trindade da música popular brasileira, Pixinguinha, Donga e João da Baiana com a Velha Guarda do Samba.

Mário de Andrade afirma que, no Brasil a melodia e a rítmica caminham na mesma pegada. Uma alimenta a outra, daí seu magnetismo, porque a melodia é feita para alimentar o ritmo e este, feito para alimentar a melodia.
Isso está no som que Emicida presenteia a quem assiste seu documentário.

Sobre as mensagens, a mais poderosa é a que fala do amor, da união, da soma e da capacidade que isso tem de produzir caminhos independentes que beneficiem a coletividade.

Kazadi considera importante separar o conceito de filosofia da existência entre africanos e europeus, pois isso faz parte e sustenta a oralidade ou ancestralidade no sentido de não se limitar ao momento, tem raízes. Esse conceito se projeta aos dias atuais: o europeu herdou a filosofia: eu penso, eu sou (físico e individual). O africano diz eu pertenço, portanto eu sou, no sentido (físico e conceitual); minha existência só tem significado enquanto eu e você estamos; eu sou porque você é, estou aqui porque você está.

Num momento em que o racismo recrudesce no Brasil contra o protagonismo dos negros nos espaços institucionais, a receita de Emicida é muito bem vinda.

*Carlos Henrique Machado Freitas

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