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Um relato fundamental de Claudio Souza, ex-morador de rua: “Quando ela (a rua) acabou de me educar, eu era um bicho”

Por Cláudio Souza

Eu saí de casa com pouco mais, meses, de dose anos. E vivi, na verdade mal sobrevivi, nas ruas de Sampa até os 17 e alguma coisa. Eu tive bons momentos e mesmo momentos em que houve até mesmo “especialização minha em sobrevivência!”.

Mas o sistema de vida nas ruas acaba corroendo, geralmente de dentro para fora, qualquer especialização que você possa desenvolver.

Trinta e tantos anos atrás, em face à realidade dos dias de hoje, a situação poderia ter sido tratada como “light”.

Ontem mesmo eu vi, com um misto de horror, pavor e novo “um homem” (sic) agredir uma moradora de rua porque ela estava pedindo ajuda dentro da “empresa dele” que, parecia, um posto de gasolina.

Muitos dirão que o dinheiro era para drogas. Eu não vi isso. E nem ouvi. O que sei é que, usando drogas ou não, são seres humanos e se você pensa que não, que Deus lhe dê guarida para o proteger de ter um filho ou filha nestas condições.

Eu vi e vivi para ver muita coisa, como esta abaixo

Mas vi um monstro envergando a forma humanóide dando pelo menos três chutes na cabeça de uma mulher com dois terços do peso dele, CAÍDA NO CHÃO. Os chutes eram na nuca, ou perto dela.

Entenda-se. Ela recebeu chutes que sequer pode pressentir e tentar cobrir-se com as mãos pois, além de estar caída, foi agredida pelas costas. Eu sou muito sensível ao problema de moradores de rua pois conheço o sistema, a forma como as coisas acontecem.

É um moto-perpétuo…. Você não tem emprego, ou trabalho porque está sujo. E não consegue tomar um banho porque não tem casa. Como vc não tem casa, não consegue trabalho. E não conseguindo trabalho você passa mais um dia sem banho e o mecanismo se retro-alimenta, em um magnificamente perfeito inferno autogerador.

Além da violência física, há a violência estrutural. Falta tudo e a falta de tudo te impede de buscar o mínimo. Sem mínimo…. Seria mais fácil ilustrar com a Faixa de Moebius.

Eu escrevi um depoimento sobre um momento trágico em minha vida, que quase culminou com minha morte por hipotermia, décadas atrás. Me perguntaram porque não os albergues.
Pois bem.
Eu estive em um numa certa noite.

Ao me aproximar da cama, uma coisa que cheirava tão mal que dava náuseas, eu, mais por instinto e medo do que por qualquer malícia, levantei o colchão.

E lá eu encontrei.

Sim! Eu encontrei agulhas, seringa suja de sangue. Eu tive medo. E nojo.

Assim eu aprendi, de uma vez por todas, que aquele era uma espécie de local onde não se pode arriscar nada.

Quando você vê uma pessoa deitada em uma calçada, envolta ou não em papelão, você pode ter certeza que tudo, absolutamente tudo e todos falharam com ela. Família, pais, sociedade, políticos, a maior parte deles são cães em figura humana, e todo “o resto”.

Ninguém! Absolutamente ninguém cumpriu tudo o que devia em matéria de solidariedade, respeito e atenção. Antes de resolver não voltar mais para casa eu levei surra após surra, espancamento após espancamento….

Eu passei por muitas coisas e fui salvo de mim, pois no fim das contas estava me encaminhando em definitivo para uma estação do metrô com o fito de descer à via e tocar o trilho eletrificado para não ter uma só possibilidade de sobrevivência.

Fátima, e eu não sei ao certo se este era mesmo o nome dela, me sustou o ato sem se dar conta que o fazia.

Assim eu acabei, de uma maneira ou de outra, sobrevivendo a tudo e, no final, a mim!

Eu tenho muito a contar e estou trabalhando nisso.

Infelizmente a neuropatia periférica por HIV tem me tolhido os movimentos e este texto foi digitado apenas com os indicadores, que são os remanescentes ativos nas duas mãos.

Eu escolhi tudo isso para mim?
De certa forma, eu ousaria dizer que sim!

Mas veja. A bem da verdade eu não recebi nenhuma educação diferente de pancadas! A Rua ensina. Do jeito dela.
Quando ela acabou de me educar eu era um bicho.

Eu precisei da paciência diletante de um amigo para me reformar. Eu não sou, mais, nem levemente parecido com a criatura animalizada que as ruas tornearam.

Graças Deus!

Link abaixo da página de Claudio Souza e seu trabalho fundamental com o tema Soropositivo

https://soropositivo.org/2018/08/20/dj-claudio-souza-ex-morador-de-rua/