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Na ONU, Lula projeta Brasil como líder do Sul Global e voz a ser ouvida nas questões mundiais, dizem analistas

Para embaixador Rubens Barbosa, ao evitar tópicos de política interna, Lula ‘fala sobre o lugar do Brasil no mundo, sobre o que o Brasil aspira e como pode contribuir para alcançar objetivos’.

Em seu primeiro discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas após 14 anos de ausência, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, falou como um “estadista do século XXI” ao desviar da política doméstica para se concentrar nos desafios internacionais em que o Sul Global quer contribuir como parte, e não como coadjuvante nas disputas entre potências globais. Essa foi a avaliação de diplomatas e especialistas estrangeiros e brasileiros ouvidos pelo Globo, entre eles Thomas Shannon, ex-secretário para o Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado americano e ex-embaixador dos EUA no Brasil.

Lula discursou como um estadista do século XXI, e o que ele disse deve ser lido com muito cuidado e atenção em Washington e no resto do mundo. Lula fez alertas sobre o que vem por aí — disse o ex-embaixador.

Na visão de Shannon, mesmo quando se refere à guerra entre Rússia e Ucrânia, o presidente brasileiro está pensando em questões globais, como a crise de segurança alimentar e energética.

Lula não quer falar sobre poder, mas sim sobre os desafios que o mundo enfrenta, como a desigualdade. Foi um discurso valioso, ao qual Washington deve prestar muita atenção, porque vem de um estadista que entende o Sul Global.

O embaixador americano acredita que o que está por trás de muitas das afirmações do presidente brasileiro é um recado para os EUA e a China.

— O Brasil está tentando lembrar aos EUA e o China que eles não são os únicos países do mundo, e que o mundo não permitirá que o futuro seja capturado por uma disputa estratégica entre ambos. Está frisando esse alerta — aponta Shannon.

O brasilianista e editor chefe da Americas Quarterly, Brian Winter, também ficou positivamente impacto pela fala do presidente brasileiro:

— Foi o discurso de um chefe de Estado que quer se projetar como líder do Sul Global, não foi de um presidente de um poder regional, e sim de um poder global.

Para Winter, o presidente brasileiro fez um discurso “ambicioso e sem os erros que caracterizaram algumas de suas declarações nos últimos meses, sobretudo quando se referiu ao conflito entre Rússia e Ucrânia”.

Esse tema é, de fato, a única diferença que o editor chefe da Americas Quarterly observa entre Lula e o presidente dos EUA, Joe Bien, que também discursou nesta terça em Nova York.

— Com exceção da guerra, Lula e Biden compartilham visões sobre mudança climáticas, democracia e legislação trabalhista — enfatiza Winter.

Para o embaixador Rubens Barbosa, que chefiou à sede diplomática brasileira em Washington entre 1999 e 2004, o discurso de Lula destoou de quase a totalidade das participações de chefes de Estado brasileiros na Assembleia Geral da ONU dos últimos 15 ou 20 anos.

— Antes, os discursos tinham foco no público interno, eram relatórios sobre o que acontecia no Brasil. Lula, pela primeira vez, fala sobre o lugar do Brasil no mundo, sobre o que o Brasil aspira e como pode contribuir para alcançar objetivos — frisa o embaixador.

Na visão de Renata Segura, subdiretora para a América Latina do Crisis Group, “Lula tentou desfazer o dano causado pelo governo de Jair Bolsonaro e recuperar o papel central do Brasil no mundo, mas deixando claro que o fará seguindo suas próprias regras”.

— O presidente brasileiro destacou uma agenda que tem dois temas muito próximos da esquerda internacional: a desigualdade e a necessidade de compromisso com a proteção do meio ambiente. Esse retorno triunfal veio acompanhado de uma forte crítica à ordem mundial — aponta Segura.

Para Hussein Kalout, ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e pesquisador da Universidade Harvard, o discurso de Lula foi “sóbrio, equilibrado, consistente e conjugado com os princípios da Constituição e os valores universais da política externa brasileira”.

— O Presidente Lula restaurou a dignidade ao discurso do Brasil na ONU após os calamitosos discursos do Presidente Bolsonaro nos 4 anos anteriores — acrescentou Kalout.

Para o especialista, os principais pontos da fala do chefe de Estado foram “a reforma da governança global política e econômica; a necessidade de cooperação para a mitigação de conflitos; a importância do meio ambiente e da crise climática; o combate à desigualdade”.

— Não faltou nada na minha visão. Ademais, foi perspicaz ao excluir da centralidade do discurso o conflito da Ucrânia e ao reiterar o compromisso do Brasil com o direito internacional. As responsabilidades e o envolvimento do Brasil e dos EUA diante do conflito na Ucrânia são assimétricos. O presidente Lula fez bem em não adotar o mesmo discurso que o Biden. E o Biden fez o lógico em seguir o discurso da forma como encaminhou — conclui Kalout.

 

Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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