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A grande ameaça

A democracia dos EUA provavelmente entrará em colapso durante o segundo governo Trump, no sentido de que deixará de atender aos padrões para a democracia liberal: sufrágio adulto completo, eleições livres e justas e ampla proteção das liberdades civis.

O colapso da democracia nos Estados Unidos não dará origem a uma ditadura clássica em que as eleições são uma farsa e a oposição é presa, exilada ou morta. Mesmo no pior cenário, Trump não será capaz de reescrever a Constituição ou anular a ordem constitucional. Ele será limitado por juízes independentes, federalismo, militares profissionalizados do país e fortes barreiras à reforma constitucional. Haverá eleições em 2028, e os republicanos podem perdê-las.

Mas o autoritarismo não requer a destruição da ordem constitucional. O que está por vir não é uma ditadura fascista ou de partido único, mas um “autoritarismo competitivo” — um sistema em que os partidos competem nas eleições, mas o abuso de poder do titular inclina o campo de jogo contra a oposição.

A maioria das autocracias que surgiram desde o fim da Guerra Fria se enquadra nessa categoria, incluindo o Peru de Alberto Fujimori, e os contemporâneos El Salvador, Hungria, Tunísia e Turquia. Sob o ‘autoritarismo competitivo’, a arquitetura formal da democracia, incluindo eleições multipartidárias, permanece intacta. As forças de oposição são legais e abertas, e disputam seriamente o poder. As eleições são frequentemente batalhas ferozmente disputadas, nas quais os incumbentes têm que suar muito. E de vez em quando, os incumbentes perdem, como aconteceu na Malásia em 2018 e na Polônia em 2023. Mas o sistema não é democrático, porque os incumbentes manipulam o jogo ao aparelhar a máquina do governo para atacar oponentes e cooptar críticos. A competição é real, mas injusta.

O autoritarismo competitivo transformará a vida política nos Estados Unidos. Como a onda inicial de ordens executivas duvidosamente constitucionais de Trump deixou claro, o custo da oposição pública aumentará consideravelmente: os doadores do Partido Democrata podem ser alvos do IRS; empresas que financiam grupos de direitos civis podem enfrentar maior escrutínio tributário e legal ou encontrar seus empreendimentos bloqueados por reguladores. Veículos de comunicação críticos provavelmente enfrentarão processos de difamação custosos ou outras ações legais, bem como políticas de retaliação contra suas empresas controladoras. Os americanos ainda poderão se opor ao governo, mas a oposição será mais difícil e arriscada, levando muitas elites e cidadãos a decidirem que a luta não vale a pena. Uma falha em resistir, no entanto, pode abrir caminho para o entrincheiramento autoritário — com consequências graves e duradouras para a democracia global.

O ESTADO APARELHADO

O segundo governo Trump poderá violar as liberdades civis básicas de maneira a subverter inequivocamente a democracia. O presidente, por exemplo, pode ordenar que o exército atire em manifestantes, como ele supostamente queria fazer durante seu primeiro mandato. Ele também poderá cumprir sua promessa de campanha de lançar a “maior operação de deportação da história americana“, atacando milhões de pessoas, em um processo repleto de abusos, que inevitavelmente levará à detenção equivocada de milhares de cidadãos dos EUA.

Mas muito do autoritarismo vindouro assumirá uma forma menos visível: a politização e aparelhamento da burocracia governamental.

Os estados modernos são entidades poderosas.

O governo federal dos EUA emprega mais de dois milhões de pessoas e tem um orçamento anual de quase US$ 7 trilhões. Autoridades governamentais servem como árbitros importantes da vida política, econômica e social. Eles ajudam a determinar quem é processado por crimes, quem terá seus impostos auditados, quando e como regras e regulamentos são aplicados, quais organizações recebem status de isenção de impostos, quais agências privadas obtêm contratos para credenciar universidades e quais empresas obtêm licenças, concessões, contratos, subsídios, isenções tarifárias e resgates críticos.

Mesmo em países como os Estados Unidos, que têm governos relativamente pequenos e laissez-faire, essa autoridade cria uma infinidade de oportunidades para os líderes recompensarem aliados e punirem oponentes. Nenhuma democracia está totalmente livre dessa politização. Mas quando os governos aparelham o Estado usando seu poder para sistematicamente prejudicar e enfraquecer a oposição, eles minam a democracia liberal. A política se torna como uma partida de futebol em que os árbitros e seus auxiliares trabalham para um time sabotar seu rival’‘.

Este é um trecho de recente artigo publicado na Foreign Affairs, por Steven Levitsky e Lucan A. Way, intitulado The Path to American Authoritarianism. Steven publicou, junto com Daniel Ziblatt, o famoso livro “How Democracies Die”.

Esclareço que tanto Levitsky quando a Foreign Affairs são de tendência conservadora, o que mostra que a preocupação com Trump estende-se ao establishment tradicional dos EUA.

Segundo os autores, a democracia sobreviveu ao primeiro mandato de Trump porque ele não tinha experiência, plano ou equipe. Ele não controlava o Partido Republicano quando assumiu o cargo em 2017, e a maioria dos líderes republicanos ainda estava comprometida com as regras democráticas do jogo. Trump governou com republicanos e tecnocratas do establishment, e eles o restringiram amplamente. Nenhuma dessas coisas é mais verdade. Desta vez, Trump deixou claro que pretende governar com quadros leais a ele e ao MAGA.

Deve-se destacar que o aparelhamento do Estado norte-americano estava já previsto no Projeto 2025, da Heritage Foundation, think tank de extrema direita.

Não há dúvida de que esse aparelhamento político está seguindo a pleno vapor, nos EUA.

Portanto, a ameaça citada por Levitsky e Lucan A. Way é real.

Mas não é apenas uma ameaça à democracia estadunidense; é também uma ameaça às democracias do mundo, pois Trump pretende articular a extrema direita, em nível internacional.

Para tanto, conta não apenas com o apoio do novo aparelho de Estado dos EUA, mas também com o decisivo suporte das Big Techs norte-americanas.

Hoje mesmo, o vice-presidente JD. Vance deu “bronca” nos europeus por combaterem os partidos de extrema direita daquela região, alguns francamente nazistas.

Essa ameaça à democracia mundial virá de duas formas:

1- Pelo enfraquecimento da multipolaridade e pelas agressões e paralisações das instituições multilaterais (OMS, OMC etc.), o que comprometerá ainda mais uma governança mundial inclusiva e eficaz, que leve em consideração os interesses do Sul Global. Multilateralismo nada mais é que democracia em nível global.

2- Pelas tentativas de inviabilização de democracias progressistas, principalmente aquelas que não se dobrem aos imperativos geopolíticos e geoeconômicos do novo Império.

Nesse sentido, acredito que a guerra híbrida contra o governo Lula já foi deslanchada, com o objetivo de desequilibrar o BRICS e recolocar a América Latina sob a hegemonia exclusiva dos EUA.

A resposta a essas ameaças globais não pode ser isolada. Será necessário concertação internacional para defender as regras civilizatórias que permitem, ainda que com muitos limites, a construção de uma ordem internacional pacífica, previsível, simétrica e democrática.

O Brasil, na presidência do BRICS, pode contribuir com essa resistência à ordem mundial hobbesiana que Trump intenta implantar.

Como já observei anteriormente, muitos trágicos ditadores começam como risíveis bravateiros.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais/Viomundo

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Antropofagista”.

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