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Scania incluiu trabalhadores de greve liderada por Lula na ‘lista suja’ e colocou espião em assembleias

Greve de 12 de maio de 1978 na empresa sueca foi estopim de um ciclo de outros movimentos que marcariam definitivamente o curso do país.

A Scania será sempre lembrada pela greve de 12 de maio de 1978, quando os metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema iniciaram uma greve em plena ditadura militar (1964-1985) por reajuste salarial e melhores condições de trabalho que mudaria para sempre o rumo da história brasileira. A paralisação na empresa sueca foi o estopim de um ciclo de outros movimentos que marcariam definitivamente o curso do país e, para além da reivindicação salarial, abriria caminho para uma longa jornada rumo à volta da democracia. E escancarou também a colaboração da empresa para com a repressão militar e a perseguição aos trabalhadores.

A empresa, que desde 1964 apoiara a ditadura, oferecendo seus caminhões para a campanha “Ouro para o Bem do Brasil” e teve em sua presidência um dos fundadores do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS), entidade articuladora do movimento que culminou no golpe de 1964. Era João Baptista Leopoldo de Figueiredo, irmão do último presidente da República durante a ditadura civil-militar, João Baptista de Figueiredo, e conhecido como “Primo Rico”, conforme detalha o livro reportagem Repressão Sociedade Anônima, que mostra a estreita colaboração de empresas metalúrgicas multinacionais e bancos com a ditadura civil-militar. A obra de Eduardo Reina e Maria Angélica Ferrasoli será lançada nas próximas semanas pela Alameda Editorial.

Naquele ano de 1978, a empresa era vista como vanguarda do movimento operário e considerada elite da indústria automobilística. A categoria registrava média de 25% de trabalhadores sindicalizados, mas a Scania, com aproximadamente 3 mil pessoas, ostentava uma taxa de sindicalização de 50%. Com a inflação do ano a 39,9%, o Sindicato dos Metalúrgicos articulava com os operários um movimento interno para exigir aumento real no salário. Pediam 3% a mais do que a reposição da inflação.

Chegou haver um acerto entre os trabalhadores e a direção da empresa, com o sueco Inge Lunnerdal à frente, que pagaria os 3%, além dos 39,9% da inflação. Mas quando foi feito o pagamento, os 3% não estavam incluídos. Insatisfeitos, os trabalhadores na Scania cruzaram os braços no dia 12 de maio de 1978.

Greve deflagrada
A notícia que correu na fábrica foi a de que Lennerdal levara uma dura do delegado regional do trabalho: se desse um tostão de aumento acima dos 39,9% oficiais, a Scania seria submetida a pesadas multas e punições pelo governo, de acordo com o escritor Fernando Morais, no livro Lula – Biografia, Volume 1.

“[A greve na Scania] Foi a certidão de batismo [da redemocratização brasileira]. Somos de uma geração vitoriosa porque a volta da democracia foi um fruto daquele movimento”, afirmou Paulo Vannuchi, ex-ministro dos Direitos Humanos (2005 a 2010) e preso político entre 1971 e 1976 por seu envolvimento na resistência ao governo militar, durante solenidade que celebrou os 30 anos da paralisação.

Quem doava para campanha ‘Ouro para o Bem do Brasil’ recebia uma aliança de latão com a inscrição ‘Dei ouro para o bem do Brasil’
Reprodução

Com a greve deflagrada em maio de 1978, a Scania recorreu à Delegacia Regional do Trabalho. Mas paralelamente havia fechado um acordo verbal com os metalúrgicos, o que levou à suspensão da paralisação.

Entre os representantes da Delegacia Regional do Trabalho de São Bernardo presentes à reunião que instaurou o dissídio pedido pela empresa, segundo processo do Tribunal Regional do Trabalho, estavam Guaraci Horta (que seria interventor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo em março de 1979, na gestão do ministro do Trabalho Murillo Macêdo) e Guaracy Sousa Sampaio (interventor no sindicato dos Metalúrgicos de Santo André em 1981, também no período de Macedo no ministério).

O processo, que foi às instâncias superiores da Justiça do Trabalho, tem 201 páginas e pode ser consultado na íntegra no Centro de Memória Virtual da Justiça do Trabalho da 2ª Região. O direito irrestrito de greve só viria 10 anos depois, quando a Constituição Federal sacramentou a conquista em agosto de 1988.

Imprensa censurada
Por outro lado, a própria empresa desenvolveu uma ação para evitar que repórteres brasileiros pudessem cobrir o movimento e expusessem a situação dentro da fábrica. Mas para a imprensa sueca não houve censura.

Gunnar Lindquist, diretor-superintendente da empresa, disse em entrevista ao jornalista sueco Bjorn Kumm que a greve era ilegal e “surpreendeu” [a direção da fábrica]. “O Sr Lindquist lembrou que ‘o salário médio do metalúrgico da Scania é de Cr$ 6 mil 200 por mês’, incluindo o 13º salário. Acrescentou que a empresa paga ‘melhor que as outras fábricas do setor, isso não é segredo’”, relatou Kumm. Este texto foi publicado em 16 de maio de 1978 pelo Jornal do Brasil.

A fúria da empresa sueca também se voltou contra os jornalistas brasileiros. Lindquist foi acusado de “discriminação étnica” pelo Jornal do Brasil, pois “expulsou os jornalistas brasileiros das instalações de sua empresa e só deixou entrar um jornalista sueco”. Eles foram expulsos pelo segurança da empresa, de nome David, segundo outra reportagem, do jornal Última Hora, da mesma data.

“Eu não quero nem aventar a hipótese de que o movimento deflagrado na última sexta-feira tenha alguma relação com o fato de o futuro presidente da República ser meu primo”, desconversava Leopoldo de Figueiredo, presidente brasileiro da fabricante sueca de veículos, na mesma edição do jornal Última Hora, de acordo com o livro Repressão Sociedade Anônima. Ele evitava o uso da palavra greve e alegava desconhecer “o motivo ou motivos” da “suspensão de atividades”.

Repressão e perseguição
Dentro da Scania, João Baptista Leopoldo de Figueiredo reagiu com mais vigilância, repressão e perseguição a seus trabalhadores em greve.

“Por ocasião da greve dos metalúrgicos na região do ABC, iniciada dia 15 de maio último pela SAAR SCANIA-VABIS (sic), foi desenvolvida uma ação em conjunto com o setor de Segurança da fábrica visando identificar possíveis elementos ligados a causas estranhas”, relata o informe 014 do Serviço Nacional de Informações (SNI) de 8 de junho de 1978. O documento não esclarece o que seriam essas causas estranhas. A ação implementada pelos seguranças da montadora de veículos incluiu a violação aos bens pessoais dos trabalhadores, a partir da vistoria nos armários de cada um dentro das dependências onde trabalhavam. A violação dos armários foi autorizada pela chefia das seções.scania – sni documento com timbre da montadora e indicação de vigilante espião 1

Gilson Menezes, à época diretor do Sindicato dos Metalúrgicos e funcionário da firma sueca, era uma das lideranças da greve de 1978. Relatou que antes mesmo de se reunir com os representantes da empresa para tentar negociar “eles perguntavam se eu não tinha medo de ser jogado em alto mar, assassinado, porque vivíamos na ditadura militar. Depois do encontro, vieram diretores da Secretaria de Estado do Trabalho e diretores do DOPS [a polícia política] para perguntar sobre lideranças. Mantive minha posição e não apontei ninguém”, contou, anos depois. Gilson, que faleceu em 2020, foi o primeiro prefeito eleito pelo Partido dos Trabalhadores, na cidade de Diadema, em 1982.

Em depoimento à Comissão da Verdade de Diadema, no ano de 2014, Gilson contou que a repressão era intensa dentro da fábrica: “naquele tempo não se podia nem falar a palavra ‘greve’. Se um grupo de pessoas se reunisse na rua para conversar, já era motivo de perseguição”, lembrou.

Ele chegou a ser preso em 1980, quando passou um mês no DOPS na capital paulista, mas não foi torturado, ao contrário de tantos outros opositores aos militares. “Fui convocado para me apresentar [ao DOPS] porque era presidente do fundo de greve do Sindicato dos Metalúrgicos [de São Bernardo e Diadema]”, ressaltou.

Um bilhete manuscrito pelo então chefe do SNI, o general João Baptista Figueiredo, enviado a Heitor Aquino Ferreira, capitão da cavalaria em 1964, e que foi secretário particular de Golbery do Couto e Silva, de Ernesto Geisel e do próprio Figueiredo, informava que a “greve é super organizada, sem violência”, registrou Elio Gasparii no livro A ditadura acabada.

O bilhete data de 19 de maio de 1978 e consta de relatório do SNI classificado como secreto e rubricado pelo general Sebastião Ramos de Castro, de acordo com Gaspari. A informação contida no bilhete viera do “Primo Rico” de Figueiredo, João Baptista Leopoldo de Figueiredo, presidente do Conselho Administrativo da Scania.

Lista Suja
De acordo com levantamento apresentado no livro A Ditadura Acabada, de Elio Gaspari, a Scania demitiu 450 operários nos dois meses seguintes à greve e entregou ao DOPS uma lista de 344 nomes. Na “Lista Suja” cadastrada no DOPS em 21 de janeiro de 1981, produzida pelo Setor de Análise, Operações e Informações (SOI), inclui 17 de seus trabalhadores. Uma vez nessa lista, distribuída aos setores de relações humanas (RH) de outras empresas, o trabalhador não conseguia mais emprego.

Documentos do DOPS consultados no Arquivo Nacional mostram também a perseguição a metalúrgicos como João Bosco Arcanjo e José Henrique Mendes, trabalhadores da montadora e dirigentes sindicais. Há registros entre 1982 e 1985 relacionados a ações naquela ou em outras montadoras.

Outras comunicações, dentro dos arquivos do DOPS, comprovam a cooperação da direção da Scania com a polícia política. Um deles, que cita Mendes, foi feito em 1984, período em que ele já não trabalhava na fábrica: “Ref ao relatório fornecido pela Scania do Brasil S/A, anexo ao of 188/84 da DEL.SEC.POL ABCD, no qual consta que o epigrafado esteve presente nesta data, C/demais membros da ex-diretoria do Sind. dos Metalúrgicos de SBCampo e pediu que todos fizessem Operação Tartaruga, falando dos resultados do movimento da Ford”, registra a ficha nos itens 13-S-2-16/ 13-S-2-.185. Falecido em 1999, Mendes nem era mais operário nessa época do relatório da polícia política. Ele já atuava como assessor da Secretaria de Governo da Prefeitura de Diadema.

Outro documento a destacar é o acordo coletivo firmado entre a empresa e o Sindicato dos Metalúrgicos, reproduzido no informe 1546 do Serviço Nacional de Informações de 4 de julho de 1983. Ele registra a implantação de uma comissão de representantes dos empregados, a comissão de fábrica. Segundo o informe, o acordo celebrado seria “decorrente da interferência da Svenska

Metallindustriarbetareförbundet”, o sindicato dos metalúrgicos da Suécia. Outra montadora representada pelo Sindicato dos Metalúrgicos no ABC, a Ford, já havia conquistado sua comissão de fábrica em 1981.

Espiões
No ano de 1985, no informe 172 da Divisão de Segurança e Informações do Ministério do Trabalho, um documento com o carimbo da própria Scania – “Confidencial – Saab-Scania – Seção de Vig. e Segurança” – relata que a empresa mandava espiões às assembleias do Sindicato dos Metalúrgicos.

“Na data de hoje, por volta das 14h30min., designamos o vigilante Antonio Carlos Lemos Martins para acompanhar a assembleia que seria realizada no Sindicato dos Metalúrgicos do São Bernardo do Campo às 15h00 (…) Chegando ao sindicato, o vigilante entrou no auditório de palestras, onde seria realizada a primeira assembleia”. A data dessa assembleia é 22 de março de 1985, e estão nominados no relatório do araponga todos os participantes que se pronunciaram e os temas em debates.

O relato é apenas uma pequena parte de um amplo material de espionagem do período, incluindo nomes de trabalhadores e atividades de mobilização na fábrica, no sindicato, no Paço Municipal de São Bernardo, entre outros locais.

A Scania informou através de nota enviada por sua assessoria de comunicação que “a empresa repudia qualquer tipo de violação aos Direitos Humanos e reforça que atua alinhada às melhores práticas globais de governança corporativa”

*Opera Mundi

Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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