Discussão envolve decidir quem receberia tratamento convencional ou atendimento paliativo em caso de colapso hospitalar.
No pior momento da pandemia de Covid-19, o conselho de secretarias municipais de Saúde debateu na sexta (26) um modelo de triagem para definir quais pacientes terão tratamento convencional e quais receberão atendimento paliativo em casos de colapso hospitalar.
A médica Lara Kretzer afirmou na reunião que o ideal seria não precisar fazer uma escolha que, ao extremo, pode significar decidir quem vive e quem morre, mas que é obrigação ética estar preparado para isso.
“Idealmente, a gente não gostaria de usar triagem. O que a gente gostaria é que tivesse dado conta de fazer o atendimento de cada brasileiro que precisa de um serviço de saúde”, disse a médica no encontro.
Na apresentação, ela afirmou que os hospitais devem criar comissões de triagem com três profissionais experientes e, de preferência, um representante da área da bioética e da comunidade local.
O conselho de secretarias elaborou um modelo do tipo no pico da pandemia em 2020, que recebeu críticas por incluir como critério a idade do paciente. A médica explicou que esse parâmetro foi excluído. A pontuação agora se dá, entre outros fatores, pela gravidade e pela existência de doenças crônicas.
O paciente que não passa na triagem para um recurso escasso, como um leito de UTI, deve receber “o melhor cuidado disponível para alívio dos seus sintomas e, na eventualidade da morte, que ele possa receber os cuidados de final de vida e sedação paliativa”, disse Lara.
Em São Paulo, desde o início da pandemia, o Hospital Municipal do M’Boi Mirim, na zona sul da capital, segue o protocolo criado pela equipe do Hospital Albert Einstein para o contexto de escassez de recursos durante a pandemia, que estabelece uma espécie de pontuação pelas vagas de UTI.
Como mostrou a Folha, o local virou referência para casos da doença na região. A UTI saiu de 20 para 220 vagas, e um novo setor foi erguido em menos de um mês com dinheiro da iniciativa privada.
O hospital tem uma ala para pacientes com cuidados paliativos. O estabelecimento adotou práticas de visitas de despedida para ajudar o processo de luto das famílias e para tentar trazer conforto aos pacientes em seus últimos momentos de vida.
País volta a bater recorde de média móvel de óbitos, 2.548, e completa 66 dias com índice acima de 1.000.
Após semana de recordes trágicos, o Brasil registrou 3.368 mortes por Covid neste sábado (27), além de 81.909 novas infecções. O país chegou a 310.694 óbitos e a 12.489.232 casos da doença desde o início da pandemia.
Os dados brasileiros são os aferidos pelo consórcio de veículos de imprensa integrado por Folha, UOL, G1, O Estado de S. Paulo, Extra e O Globo e coletados até as 20h com as secretarias de saúde dos estados.
Nesta sexta-feira (26), o país bateu o recorde de mortes em um único dia, com 3.600 óbitos. Mas, apesar de a situação ser gravíssima, ao menos parte desse elevado número de mortes registradas se deve a um represamento de dados que ocorreu durante a semana.
O estado de São Paulo, por exemplo, registrou mais de 1.000 mortes pelo segundo dia seguido: foram 1.051 nas últimas 24h.
A média móvel de mortes no país voltou a bater recorde e chegou a 2.548 mortes por dia. Esse é um instrumento estatístico para amenizar grandes variações de dados, como as que ocorrem aos finais de semana e feriados. Ela é calculada pela soma das mortes dos últimos sete dias e divisão por sete.
A média recorde anterior era de 2.400 mortes por dia e ocorreu nesta sexta.
Até terça-feira (23), o país completava 25 dias seguidos de valores máximos da média. A sequência foi quebrada justamente no dia em que o Ministério da Saúde mudou a forma de registro das mortes, o que provocou dificuldade na documentação por alguns estados e fez o número de óbitos cair artificialmente. A medida gerou críticas, que levaram a pasta a suspender a mudança.
Ainda assim, o país completa 66 dias com média móvel de mortes acima de 1.000.
VACINA
O consórcio de imprensa também atualizou as informações repassadas sobre a vacinação contra a Covid por 22 estados.
Foram aplicadas no total 19.927.298 doses de vacina (15.248.847 da primeira dose e 4.678.451 da segunda dose), de acordo com as informações disponibilizadas pelas secretarias de Saúde.
Isso significa que somente 7,20% dos brasileiros maiores de 18 anos tomaram a primeira dose e só 2,21%, a segunda.
Nas últimas 24 horas, 365.627 pessoas tomaram a primeira dose da vacina e 41.191, a segunda.
A iniciativa do consórcio de veículos de imprensa ocorreu em resposta às atitudes do governo Jair Bolsonaro (sem partido), que ameaçou sonegar dados, atrasou boletins sobre a doença e tirou informações do ar, com a interrupção da divulgação dos totais de casos e mortes. Além disso, o governo divulgou dados conflitantes.
Levantamento em 1.593 unidades mostra que o percentual de mortes passou de 13,1% para 38,5%.
O percentual de mortes de jovens entre 18 e 45 anos por Covid-19 nas UTIs brasileiras triplicou, segundo dados compilados de 1.593 unidades de terapia intensivas públicas e privadas do país.
O levantamento é do projeto “UTIs brasileiras”, da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) e compara um período de relativa calmaria na UTIs, entre setembro e novembro de 2020, com esse momento de colapso, entre 1º de fevereiro até sexta (26).
Os dados mostram que o percentual de jovens mortos passou de 13,1% para 38,5%, um aumento de 193%.
Se observado só o grupo de jovens sob ventilação mecânica, o aumento é de 31%: subiu de 43,2% para 56,6%. A mortalidade geral de pacientes intubados, de todas as faixas etárias, é de 53%.
Ao mesmo tempo que houve um crescimento de 11% nas internações de pacientes com menos de 45 anos nas UTIs, as de pessoas com mais de 80 anos caíram 27,6%.
No período anterior, os mais jovens representavam 18% dos admitidos; agora são 20%. Os mais velhos, eram 13% e hoje são 9,7%.
Os dados da Amib convergem para a última edição do Boletim Observatório Fiocruz Covid-19, divulgado nesta sexta (26), que mostra que a epidemia de coronavírus rejuvenesceu no Brasil.
Para o médico intensivista Ederlon Rezende, coordenador do projeto, os números derrubam de vez a suposição que se tinha no início da pandemia de que os jovens não desenvolviam a forma mais grave da Covid e não morriam em razão dela. “Agora estamos vendo o contrário”, diz ele.
E por que esses jovens estão morrendo mais? Para Rezende, eles estão chegando mais graves aos hospitais ou porque retardaram a ida ou porque tiveram problemas de acesso por falta de vagas nas UTIs.
“Esse gravidade se reflete no fato de que eles estão precisando mais ventilação mecânica, mais prona [técnica que deixa o paciente de barriga para baixo], mais diálise, mais Ecmo [equipamento que funciona como pulmão e um coração artificiais para pacientes que estão com os órgãos comprometidos]”, conta.
Outra hipótese é que a nova variante do vírus, conhecida como P1, possa estar associada às formas mais graves.
Segundo ele, é sempre bom lembrar também que muitas UTIs não estão funcionando em suas condições normais, uma vez que houve um aumento exagerado de leitos para a capacidade das equipes.
“A mortalidade está sendo maior em todas as faixas etárias. É o nosso pior momento de mortalidade dentro das UTIs”, diz ele.
O deslocamento da incidência da Covid grave para as faixas mais jovens contribui para o cenário crítico da ocupação de leitos de UTI neste momento de colapso.
Por se terem menos comorbidades, a evolução dos casos é mais lenta, e a permanência em leitos de UTI, maior.
Apesar do discurso do governo federal de que o país não passa, nem passará, por um colapso na saúde, a realidade em quase todos os estados aponta para uma situação dramática, em uma semana marcada por recorde de mortos, falta de vagas em UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) e escassez de medicamentos.
Segundo levantamento feito pelo UOL com base nos registros das secretarias estaduais, há pelo menos 40 mil pessoas internadas em leitos de UTI com covid-19 nas 27 unidades da federação.
Apesar da omissão de dados de muitos locais, a fila chega a pelo menos 4.500 pessoas em 15 estados mais o Distrito Federal.
Dos pacientes internados, quase um terço —12.588— está em terapia intensiva em São Paulo. O estado do Rio não informa o total de leitos, só a ocupação, o que impede saber o número de pessoas internadas.
Por conta da falta de sedativos, pacientes intubados estão acordando no processo de ventilação mecânica, segundo profissionais da saúde.
Com as internações em alta inédita, há um iminente risco de falta de insumos. Levantamento divulgado pela CNM (Confederação Nacional dos Municípios) apontou que, das 2.600 prefeituras ouvidas entre 23 e 25 de março, 50,4% afirmaram que podem ter de suspender atendimentos por falta de medicamentos do kit intubação.
Além disso, 27% alegaram risco de falta de oxigênio em hospitais ou centros de atendimento.
O Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) fez um alerta de que podem faltar medicamentos em UTIs.
A situação também é grave em unidades privadas. O Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (SindHosp) informou ontem que vai auxiliar hospitais a criar um consórcio para importar, de forma coletiva, medicamentos destinados à intubação.
A Santa Casa de São Carlos informou que, por falta de anestésicos, deixará de receber pacientes com covid-19.
São 24 estados, mais o Distrito Federal, das 27 unidades da federação, com ocupação de UTI igual ou superior a 80%, 15 deles com taxa igual ou superior a 90% de ocupação. É uma situação gravíssima. Se não é colapso, é o que então?
Fila de espera
Se a situação de quem está internado é de medo, a de quem está na fila de espera é de desespero. Na quinta-feira, segundo o Conass, eram 6.371 pessoas aguardando por uma vaga em UTI. O maior número é em São Paulo, onde esse número chega a 1.500 pacientes.
Levantamento do “Agora” mostrou que mais de cem pessoas morreram sem direito a leito. No estado, as internações estão 85% maiores que o pico de 2020.
Em Minas Gerais, esse número de pessoas em espera chega a 700 doentes. No Rio de Janeiro, ontem havia 634 pacientes esperando leitos de UTI —um recorde na pandemia.
No Ceará há mais de 400. No Distrito Federal, esse número ontem era de 353; e em Pernambuco havia 174 pacientes esperando um leito de terapia intensiva na noite desta sexta-feira.
Colapso leva a tragédias O colapso é uma realidade pelo país, e casos de mortes sem o devido atendimento se espalham pelo país.
Em Teresina, na semana passada, um caso consternou o país: um homem morreu atendido no chão em UPA (Unidade de Pronto Atendimento) que estava superlotada.
Sem vagas, muitos morrem sem atendimento adequado. No Espírito Santo, na segunda-feira, aos 34 anos, Vinicius Pin, eleito Mister Espírito Santo em 2013, morreu por complicações da covid-19 enquanto esperava por um leito de UTI em um hospital da região metropolitana de Vitória.
Na faixa de 40 a 49 anos, salto entre janeiro e março foi de 626%, passando de 626 internados para 4.548.
A pandemia do novo coronavírus rejuvenesceu no Brasil, e os dados são alarmantes: enquanto o aumento geral de casos foi de 316,68% entre o começo do ano e meados de março, ele saltou mais de 500% em faixas etárias de adultos mais jovens. As mortes, em consequência, também deram um salto.
Os dados são do Boletim Observatório Fiocruz Covid-19, finalizado nesta sexta (26). Ele mostra que a concentração de casos nas idades mais avançadas tem diminuído, com um deslocamento para idades mais jovens.
Na faixa etária dos 30 aos 39 anos, o aumento foi de 565,08% entre a primeira semana epidemiológica do ano, que vai de 3 a 9 de janeiro (440 hospitalizações) e a 10a semana epidemiológica, que vai de 7 a 13 de março (2.923 hospitalizações).
Entre os que têm de de 40 a 49 anos, o salto foi de 626%. Foram 626 pessoas internadas dessa faixa etária na primeira semana de janeiro, contra 4.548 na semana de meados de março.
Entre aqueles que têm entre 50 e 59 anos, o aumento chegou a 525,93% (saltou de 898 para 5.620 internações nas semanas estudadas).
Na faixa etária de 20 a 29 anos, o salto foi menor, mas também significativo: na primeira semana de janeiro, 302 pessoas estavam hospitalizadas, contra 1.074 na semana de março –um aumento de 255%.
Já as mortes tiveram um salto menor nas mesmas faixas etárias, ainda que ele seja expressivo: de 352,62% entre os que tem de 30 a 39 anos, 419,23% entre os que tem de 40 a 49 anos, e de 317,08% entre os que tem de 50 a 59 anos.
Os dados foram coletados no SivepGripe da Fiocruz, que registra as Síndromes Respiratórias Agudas Graves no Brasil. E foram analisados por uma equipe de nove pesquisadores coordenados por Carlos Machado, especialista em saúde pública com enfoque na área de emergências e desastres..
Eles chamam a atenção para o deslocamento da incidência para as faixas mais jovens e a manutenção da mortalidade concentrada nas faixas mais velhas. Dizem que a mudança ainda é inicial, mas contribui para o cenário crítico da ocupação de leitos hospitalares. Por se tratar de uma população com menos comorbidades, é mais lenta a evolução dos casos graves e fatais, e a permanência em leitos de UTI é maior.
Com os leitos ocupados por mais tempo, os problemas de lotação nas unidades de terapia intensiva se agravam.
No mesmo boletim, os pesquisadores apontam que o país se encontra em uma situação de colapso do sistema de saúde. E defendem a adoção do que chamam de “medidas em dois grupos conectados”.
No primeiro grupo, dizem, estão “as medidas urgentes, que envolvem a contenção das taxas de transmissão e crescimento de casos através de medidas de bloqueio ou lockdown (pé no freio), acompanhadas de respostas na ampliação da oferta de leitos com qualidade e segurança, bem como prevenção do desabastecimento de medicamentos e insumos. No segundo grupo, as medidas de mitigação, com o objetivo reduzir a velocidade da propagação (redução da velocidade”.
Eles reforça que as medidas devem ser combinadas em diferentes momentos, a depender da evolução da epidemia até que se tenha 70% da população brasileira vacinada.
A nova edição do boletim alerta ainda que “desde o início da pandemia os estudos científicos apontaram a necessidade de vacinação da maior parte da população, em combinação com a adoção de medidas não-farmacológicas prolongadas, envolvendo distanciamento físico e social, uso de máscaras e higienização das mãos, com ações intermitentes de bloqueio (lockdown) com restrição da circulação e de todos os serviços não-essenciais quando as capacidades de cuidados intensivos fossem excedidas”.
Os pesquisadores afirmam ainda que o “ritmo lento em que se encontra a vacinação contribuí para prolongar a duração da pandemia e da adoção intermitente de medidas de contenção e mitigação”.
A equipe coordenada por Carlos Machado é integrada por Christovam Barcellos, Daniel Antunes Maciel Villela, Gustavo Corrêa Matta, Lenice Costa Reis, Margareth Crisóstomo Portela, Diego Ricardo Xavier, Raphael Guimarães, Raphael de Freitas Saldanha, Isadora Vida Mefano.
Dentre as capitais brasileiras, Vitória (ES) foi a que recebeu a maior quantidade de cloroquina do governo federal, proporcionalmente à população. Foram 54 mil comprimidos de difosfato de cloroquina, quantidade que seria suficiente para medicar 15% dos habitantes da cidade ao menos uma vez.
O dado considera apenas as entregas feitas pelo Ministério da Saúde às capitais, sem levar em conta repasses e compras que possam ter sido feitos pelos governos estaduais e municipais. Em julho do ano passado, a prefeitura de Vitória – como tantas outras, estimuladas pelo governo federal – adotou o uso de cloroquina e ivermectina no tratamento à Covid. Os remédios não têm eficácia comprovada contra a doença.
Até o dia 18 de março, Vitória acumulava uma taxa de 200 mortes por Covid a cada 100 mil habitantes – número 47% maior que a taxa brasileira, que na mesma data havia chegado a 136 mortes por 100 mil habitantes.
Fonte: Dados abertos do governo federal; IBGE; Prefeitura de Vitória; Consórcio de veículos de imprensa.
Um estudo da UFF (Universidade Federal Fluminense) estimou que o Brasil ainda viverá o pico de mortes por covid-19 nos próximos meses. Entre abril e o começo de maio, o país pode registrar até 5 mil mortes pela doença em 24 horas. A pesquisa acredita nisso porque entende que a covid-19 segue uma sazonalidade. E só a vacinação pode evitar que o Brasil atinja essa marca de 5 mil mortes diárias.
“Aqui, o pico de óbitos será provavelmente em abril ou início de maio, com um valor estimado entre 3 mil a 5 mil óbitos diários. O valor real do pico dependerá da velocidade da vacinação nos próximos meses e das medidas de distanciamento adotadas”, alerta o professor do Departamento de Estatística, Márcio Watanabe, que desenvolveu o estudo.
Sobre a vacinação, Watanabe enxergou um problema no PNI (Plano Nacional de Imunização), que não dá prioridade para pessoas com 50 a 60 anos.
“Indivíduos de 50 a 60 anos são responsáveis por uma expressiva parcela das internações e óbitos, mas não estão relacionados como grupo de risco no plano nacional de imunização-PNI. Enquanto o país não vacinar esse grupo de pessoas, e também os idosos e aqueles com comorbidades, ainda teremos um grande número de óbitos”, ressalta Wattanabe.
Enquanto a vacinação em massa não ocorre, só as restrições e medidas de distanciamento social são vistas como soluções. Wattanabe alerta para uma possível falha nos planos dos governadores. “É essencial reduzir aglomerações como ônibus lotados, que têm sido ignorados pelo poder público ao longo da pandemia”.
O estudo da UFF também apresenta uma perspectiva sobre o futuro e aponta que é preciso entender a sazonalidade da doença para fazer um planejamento público de combate. Mas Wattanabe entende que mesmo assim a covid-19 deve ficar endêmica na sociedade.
“Poderemos conviver com a COVID-19 da mesma forma que convivemos com outras doenças respiratórias, como a pneumonia, quando vacinarmos a grande maioria da população. Mas mesmo com a vacina, a doença será endêmica, ou seja, sempre haverá casos. Assim, um ponto fundamental para o futuro é a ciência encontrar algum tratamento que seja significativamente eficaz para pacientes hospitalizados com coronavírus”, concluiu o pesquisador.
Médicos de centros de referência como hospital das Clínicas, Albert Einstein e Emilio Ribas explicam que efeitos colaterais de medicamentos sem eficácia estão prejudicando o tratamento de doentes graves
Defendido pelo presidente Jair Bolsonaro como estratégia de combate ao coronavírus, o chamado “kit covid” ou “tratamento precoce”, na verdade, contribui para aumentar o número de mortes de pacientes graves, disseram à BBC News Brasil diretores de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de hospitais de referência.
Mais de um ano depois de a pandemia chegar ao Brasil, Bolsonaro continua defendendo a prescrição de medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina, embora diversas pesquisas científicas apontem que esses remédios não têm eficácia no tratamento de covid-19.
“Muitos têm sido salvos no Brasil com esse atendimento imediato. Neste prédio mesmo (Palácio do Planalto), mais de 200 pessoas contraíram a Covid e quase todas, pelo que eu tenha conhecimento, inclusive eu, buscaram esse tratamento imediato com uma cesta de produtos como a ivermectina, a hidroxicloroquina, a Azitromicina”, disse o presidente no início do mês.
Mas evidências científicas apontam que esses remédios não têm efeito de prevenção ou tratamento precoce de covid. E médicos de hospitais de referência ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a defesa e o uso do “kit covid” contribuem de diferentes maneiras para aumentar as mortes no país.
O médico intensivista Ederlon Rezende, coordenador da UTI do Hospital do Servidor Público do Estado, em São Paulo, destaca que entre 80% e 85% das pessoas não vão desenvolver forma grave de covid-19. Para esses pacientes, usar o “kit covid” não vai ajudar em nada. Também pode não prejudicar, se a pessoa não tomar doses excessivas, não desenvolver efeitos colaterais, nem tiver doenças que possam se agravar com esses medicamentos.
Governo Bolsonaro investiu R$ 90 milhões em remédios sem eficácia comprovada contra covid-19.
“A preocupação maior é com os 15% que desenvolvem forma grave da doença e acabam vindo para a UTI. É nesses pacientes que os efeitos adversos dessas drogas ocorrem com mais frequência e esses efeitos podem, sim, ter impacto na sobrevida”, diz Rezende, que é ex-presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira.
E o “Kit covid” também mata de maneira indireta, ao retardar a procura de atendimento pela população, absorver dinheiro público que poderia ir para a compra de medicamentos para intubação, e ao dominar a mensagem de combate à pandemia, enquanto protocolos nacionais de atendimento sequer foram adotados, disseram médicos intensivistas do Hospital das Clínicas, Albert Einstein e Emilio Ribas.
“Alguns prefeitos distribuíram saquinho com o ‘kit covid’. As pessoas mais crédulas achavam que tomando aquilo não iam pegar covid nunca e demoravam para procurar assistência quando ficavam doentes”, diz Carlos Carvalho, diretor da Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, em São Paulo.
Entre os efeitos da procura tardia por atendimento está a intubação, quando o pulmão já está muito lesionado pelo esforço para respirar. Pacientes que recebem máscara de oxigênio ou ventilação mecânica invasiva antes de chegar à insuficiência respiratória aguda têm mais chances de sobreviver, explicam os médicos intensivistas.
“A falta de organização central e as informações desconexas sobre medicação sem eficácia contribuíram para a letalidade maior na nossa população. Não vou dizer que representa 1% ou 99% (das mortes), mas contribuiu”, completa Carlos Carvalho, que também é professor da Faculdade de Medicina da USP.
Efeitos colaterais em pacientes graves
A pneumologista Carmen Valente Barbas, que atua no Hospital das Clínicas e no Albert Einstein, em São Paulo, diz que a maioria das pessoas que ela atende atualmente dizem, na consulta, que tomaram medicamentos do chamado kit covid.
“A maior parte está tomando essas medicações. Em toda videoconsulta que eu faço, as pessoas dizem que estão tomando e tomando em doses cavalares”, disse à BBC News Brasil.
A maior preocupação dos médicos intensivistas é o efeito colateral desses medicamentos em pacientes que evoluem para a forma grave da covid e que já estão com o funcionamento de órgãos vitais comprometidos.
“Esses remédios não ajudam, não impedem o quadro de intubação, e trazem efeitos colaterais, como hepatite, problema renal, mais infecções bacterianas, diarreia, gastrite. E a interação entre esses medicamentos pode ser perigosa”, completa Barbas, que é professora de medicina da USP e referência internacional em ventilação mecânica.
Entre os medicamentos mais defendidos por Bolsonaro para uso por pacientes com covid estão a hidroxicloroquina, a azitromicina e a ivermectina.
A hidroxicloroquina é um medicamento normalmente usado em pacientes com lúpus, artrite reumatoide, doenças fotossensíveis e malária. A ivermectina é um vermífugo usado para combater vermes, piolhos e carrapatos.
Já azitromicina é um antibiótico que, segundo os médicos, só deveria ser usado em caso de infecção bacteriana, não para prevenir um vírus.
Arritmia, delírios e problema renal
O médico intensivista Ederlon Rezende chama a atenção para o risco da hidroxicloroquina causar arritmia cardíaca, um dos efeitos colaterais possíveis do remédio.
Num paciente que evolui para quadro grave de covid, esse pode ser uma efeito adverso crítico, porque a doença causada pelo coronavírus também afeta o coração, ao promover inflamações do músculo cardíaco e trombose nos vasos e tecidos.
Rezende diz ainda que tem tido problemas com pacientes que precisam ser sedados para intubação e que acordam da sedação com confusão mental mais acentuada por causa do uso abusivo de ivermectina antes de chegar ao hospital.
“O paciente, ao acordar da intubação, pode apresentar delírio. Com pacientes com covid isso é muito frequente, porque o vírus atravessa a barreira hematocefálica e afeta o cérebro, principalmente a região frontal, causando inflamação”, diz.
“A invermectina é uma droga que também penetra no cérebro quando ele está inflamado, e ela deprime mais ainda o cérebro e piora a qualidade do despertar de um paciente intubado. Essa tem sido uma intercorrência frequente nos pacientes que usaram esse remédio antes chegar à UTI”.
A ivermectina, diz ele, também pode provocar lesão renal, outro componente que dificulta a cura de um paciente grave de covid, já que a doença tem potencial para provocar complicações nos rins e demandar hemodiálise.
Brasil vive pico de infecções e tem mais mortes diárias que toda a União Europeia e também América do Norte, segundo dados do Our World in Data.
“Em termos de risco de morte, eu daria destaque para a cloroquina e hidroxocloroquina, com potencial para provocar arritmias fatais. E ivermectina, como já comentei, com potencial de depressão do sistema nervoso central, lesão hepática, lesão renal, entre outros.”
Mais recentemente, Bolsonaro passou a citar a Nitazoxanide, conhecida como Annita, como candidata a integrar o kit covid. O problema, além de não haver qualquer evidência científica de eficácia, é que as pessoas passaram a tomar esse vermífugo junto com outro, a ivermectina, intoxicando o organismo, diz médica do Albert Einstein Cármen Valente Barbas.
“A interação desses medicamentos, tomados juntos, é perigosa. As pessoas estão tomando Annita junto com ivermectina e isso é um absurdo.”
Dados foram divulgados na manhã desta terça (23) no site da Secretaria Estadual da Saúde. Máxima anterior era de 679 mortes confirmadas em 24h no estado, registrada no dia 16 de março.
O estado de São Paulo registrou 1.021 novas mortes provocadas pela Covid-19 nesta terça-feira (23), o recorde em 24 horas desde o início da pandemia.
O estado agora totaliza 68.623 óbitos causados pelo coronavírus. Os dados foram publicados no site da Secretaria Estadual da Saúde nesta manhã.
O recorde anterior, registrado na semana passada, era de 679 mortes em um dia, e representava um óbito a cada 2 minutos nas últimas 24h.
Os novos registros não significam, necessariamente, que as mortes aconteceram de um dia para o outro, mas que foram computadas no sistema neste período.
As notificações costumam ser menores em finais de semana, feriados e segundas-feiras, por conta do atraso na contabilização.
Internados
O número de pacientes internados com Covid-19 subiu 113% no estado de São Paulo em apenas um mês. Nesta segunda (22), 29.039 pessoas ocupam leitos destinados à doença. No dia 22 de fevereiro, eram 13.606.
Do total pacientes internados atualmente, 16.871 estão em enfermaria e 12.168 em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).
O número de pessoas em UTI em São Paulo é mais de três vezes maior do que em toda a Argentina, que possui uma população semelhante ao estado com aproximadamente 44 milhões de habitantes.
As taxas de ocupação dos leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) do estado de São Paulo também já superaram os índices registrados no pico de 2020 da pandemia.
Nesta segunda, a ocupação média chegou a 91,9% no estado de São Paulo, contra 77,2% no momento mais grave da pandemia no ano passado, no final de maio.
O índice foi a 91,6% na Região Metropolitana da capital. Na Grande São Paulo, a taxa se aproxima do recorde registrado em maio de 2020, quando a ocupação chegou a 92,2%.
No dia 10 de março, o governo de São Paulo já havia alertado para a dificuldade de atender a população, uma vez que o ritmo de novas internações é maior do que o de altas.
São Paulo vem batendo recordes de casos, mortes e ocupação de UTIs
“Temos uma situação bastante dramática.” O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), reconheceu com estas palavras a gravidade sem precedentes da pandemia no Estado.
A declaração foi feita em uma coletiva de imprensa na quarta-feira (17/3), enquanto São Paulo bate recordes de casos e mortes, vê sua rede de saúde passar de 90% de ocupação e aplica as medidas de isolamento mais rígidas desde o início da crise para tentar evitar uma tragédia ainda maior.
“Não há nenhum Estado no Brasil em situação confortável. Todos estão à beira do colapso”, disse Doria.
No entanto, segundo epidemiologistas e cientistas ouvidos pela BBC News Brasil, o sistema de saúde paulista já colapsou — e a situação vai se agravar ainda mais nos próximos dias.
“Dizer que está à beira do colapso é uma licença poética”, diz Domingos Alves, responsável pelo portal Covid-19 Brasil, que monitora a pandemia, e pelo Laboratório em Inteligência de Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto.
Márcio Sommer Bittencourt, médico do centro de pesquisa clínica e epidemiológica do Hospital Universitário da USP, faz a mesma avaliação.
Ele se baseia nos dados divulgados pelo próprio governo paulista, que apontou que ao menos 280 pessoas estão aguardando por um leito de UTI no Estado.
“Se há lista de espera de pacientes que não conseguem ser internados, alguns deles esperando há dias, não faz sentido dizer que está com 90% de ocupação”, diz Bittencourt. “O sistema de saúde de São Paulo está em colapso, sem dúvida.”
Para a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), todos os Estados brasileiros já colapsaram.
“Quando fala que está com mais de 90% de leitos de UTI ocupados, não estão contando as cidades que já não têm mais leito, as pessoas que estão esperando por um leito de UTI no pronto atendimento. Se levar isso em conta, já passou de 100%”, diz Maciel.
Recordes de casos e mortes, com UTIs lotadas
São Paulo vem batendo diariamente recordes de pessoas internadas por causa da covid-19 desde o final de fevereiro.
Havia até terça-feira (16/3) 24.992 pacientes hospitalizados, dos quais 10.756 em UTIs e o restante em enfermarias, segundo os dados mais recentes.
É bem mais do que as 6.250 pessoas que estavam internadas em uma UTI no pior momento da primeira onda da pandemia no Estado, em julho do ano passado.
Isso é um reflexo do aumento expressivo de novos casos nas últimas semanas. A média móvel, que leva em consideração os sete dias anteriores, passou de 13 mil pela primeira vez na pandemia na terça-feira e continuou subindo na quarta-feira. Está em 13.472 óbitos diários. Há cerca de um mês, eram cerca de 8,5 mil.
São Paulo também bateu na terça-feira o recorde de óbitos. Foram 679 em 24 horas, o maior índice já registrado. Até então, o recorde era o de sexta-feira (12/3), com 521 mortes.
O Estado também teve sua maior média móvel de óbitos na quarta-feira, com 421 mortes diárias.
Isso elevou o total para 65.519 vítimas fatais. Em nenhum outro Estado brasileiro morreu tanta gente por causa da covid-19. O segundo com mais vítimas é o Rio de Janeiro, com pouco mais da metade dos óbitos em São Paulo (34.586).
‘Tem que fazer lockdown agora’
Desde segunda-feira (15/3), está em vigor no Estado a chamada “fase emergencial” do plano de combate à pandemia de São Paulo entrou em vigor na última segunda-feira (15/3).
Ela foi criada justamente por causa desse agravamento inédito da pandemia — até então, o nível com as medidas mais duras de restrição do plano de combate à pandemia em São Paulo era a “fase vermelha”.
A nova fase prevê um toque de recolher das 20h às 5h, período em que a população deve ficar em casa.
Também foram suspensas as celebrações religiosas e atividades esportivas em grupo. Parques e praias foram fechados, e mesmo setores e serviços que podiam abrir na fase vermelha, como as lojas de material de construção, agora não podem funcionar.
Essas medidas ficarão em vigor até o próximo dia 30, mas, até agora, não surtiram muito efeito sobre a circulação dos paulistas.
O índice de isolamento foi de 44% no Estado e de 43% na capital na terça-feira. Em ambos os casos, houve o aumento de só um ponto percentual em relação a uma semana antes, quando a fase emergencial ainda não estava em vigor. O governo paulista diz que o objetivo é chegar a um índice acima de 50%.
Outro problema é que as novas restrições só vão se refletir nos números da pandemia daqui a duas semanas a um mês. Este é o tempo que especialistas apontam que leva para as medidas levarem a uma queda de casos e mortes.
“Agora que tudo desabou, querem tentar resolver, mas não dá mais tempo. Vai piorar antes de melhorar”, diz Márcio Bittencourt.
O epidemiologista critica a forma como não só o governo paulista, mas o país em geral vem reagindo à pandemia.
“Ficam correndo atrás do vírus e tomando decisões tardias e de curto prazo em vez de pensar em uma estratégia de médio e longo prazo para evitar que piore. Do ponto de vista epidemiológico, vai ser preciso intensificar as medidas de controle ainda mais.”
Era especulado que um anúncio nesta linha fosse feito hoje pelo governo de São Paulo, mas isso não aconteceu.
“Precisamos de algum tempo para observar o impacto das medidas que tomamos e ver se há necessidade de outras medidas”, disse Paulo Menezes, coordenador do centro de contingência da covid-19 de São Paulo, que assessora o governo estadual no combate à pandemia.
Domingos Alves discorda frontalmente dessa decisão. “Querem esperar o quê? O caos? Deviam falar que ainda não é hora para as famílias das pessoas que morreram por falta de leito de UTI. Quanto caos é caos suficiente para eles?”
Alves destaca que, hoje o Estado tem uma média móvel de 2.790 internações por dia por causa da covid-19. “”Já não dá pra prever que o sistema de saúde não vai dar conta disso?”, diz pesquisador, que defende um lockdown, como é chamado o conjunto de medidas mais restritivas de circulação, com o confinamento da população em suas casas durante todo o dia.
“Está na hora de fazer um lockdown completo, não aquela palhaçada de fazer só no final de semana ou alguns dias, tem que ser por no mínimo 15 dias para ter efeito. Só com um lockdown São Paulo vai conseguir reverter essa situação”, afirma o cientista.
Ethel Maciel concorda que será necessário o confinamento. “Vai precisar de lockdown, sem dúvida”, afirma epidemiologista.
“O ideal é que fosse nacional, coordenado pelo governo federal, porque hoje estamos em uma situação em que nenhum Estado está em condição de ajudar o outro. A gente sabe que o governo federal não vai, mas temos que dizer que isso é necessário mesmo assim.”