Três filmes e um argumento que caiu no gosto do povo porque representa os anseios da nossa sociedade. O que há em comum entre os filmes Bacurau, Coringa e Parasita?
Vamos nos despedindo das telas de 2019 que est%u001o fechando suas cortinas para um cinema que, ao que parece, vai fazer história.
Um filme do Brasil, outro da Coreia do Sul e um dos Estados Unidos: todos têm em comum um mesmo argumento: a profunda desigualdade social que está levando nossa humanidade ao colapso.
Bacurau ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, enquanto Parasita foi o grande vencedor da Palma de Ouro. Já Coringa foi aclamado pela crítica e um sucesso de bilheteria que tem muita chance de render ao ator Joaquin Phoenix o Oscar na categoria Melhor Ator.
Qual o valor que fez desses três filmes tão exitosos? A linha condutora deles se desenvolve a partir do colapso social provocado pela desigualdade social.
Veja as sinopses de cada um deles:
Bacurau – Brasil
Os moradores de um pequeno povoado do sertão brasileiro, chamado Bacurau, descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa. Aos poucos, percebem algo estranho na região: enquanto drones passeiam pelos céus, estrangeiros chegam à cidade. Quando carros se tornam vítimas de tiros e cadáveres começam a aparecer, Teresa, Domingas, Acácio, Plínio, Lunga e outros habitantes chegam à conclusão de que estão sendo atacados. Falta identificar o inimigo e criar coletivamente um meio de defesa.
Coringa- EUA
O comediante falido Arthur Fleck encontra violentos bandidos pelas ruas de Gotham City. Desconsiderado pela sociedade, Fleck começa a ficar louco e se transforma no criminoso conhecido como Coringa.
Parasita – Coreia do Sul
Toda a família de Ki-taek está desempregada, vivendo em um porão sujo e apertado, mas uma obra do acaso faz com que ele comece a dar aulas de inglês a uma garota de família rica. Fascinados com a vida luxuosa destas pessoas, pai, mãe e filhos bolam um plano para se infiltrarem também na família burguesa, um a um. No entanto, os segredos e mentiras necessários à ascensão social custam caro a todos.
A união contra o colapso social
Atenção – contém SPOILERS
Talvez em Bacurau o colapso social não seja tão evidente, porque, ainda que Bacurau seja uma cidade desprovida de infraestrutura, há uma coesão social que permite à comunidade local lidar com o caos que se instala por lá.
Em Bacurau, os moradores do pequeno vilarejo interiorano aprendem a viver à margem de qualquer governo, desenvolvendo suas próprias regras de convívio e soluções para os seus problemas, como a falta de abastecimento de água.
Para uma das atrizes do elenco, Karine Teles:
“O filme está nascendo em um momento em que o mundo está pensando muito nas questões que são abordadas nele. Acho que isso ajuda. As pessoas estão querendo discutir esse assunto. Há uma urgência em pensar sobre a forma com que a gente lida com a violência”, comenta para o G1.
O maior problema de Bacurau, que parecia ser a questão da água, se dissolve quando um grupo de forasteiros chega à cidade com intenções sinistras, fazendo com que ela desapareça, literalmente, do mapa.
A professora Giselle Beiguelman disse ao Jornal da Usp que os diretores do filme conseguiram mostrar as diferentes formas de a violência no Brasil se expressar.
“A história se passa em Bacurau, que desapareceu do mapa. E isso não é força de expressão. A cidade subitamente deixou de ser registrada nos serviços de geolocalização, como se houvesse sido deletada do Google Maps. Nesse lugar perdido no tempo e na história, ocorre um confronto entre invasores, brancos e americanos, liderados por um chefe neonazista, e a população local, que decide recorrer a Lunga, uma figura andrógina interpretada magistralmente pelo ator Silverio Pereira, que é uma espécie de mistura de cangaceiro e bandido social do século 21”.
Desamparo social. Desigualdade abissal parasite
Se a sociedade de Bacurau entende que é com unidade que ela pode enfrentar seus problemas, o mesmo se pode dizer da família Kim, cujos membros se mantêm unidos para lidar com o desamparo social a que estão submetidos. A família, constituída de um casal, uma filha e um filho adolescentes, vive de bicos até que o filho, Ki-taek, passa a ser professor de inglês da filha de um casal rico, os Park, também com a mesma composição familiar: pai, mãe, filha e filho.
Embora, numa primeira interpretação, a família Kim pareça ser parasita dos Park, apropriando-se de suas vidas, uma outra leitura propõe que, na lógica capitalista, aqueles que acumulam dinheiro é quem são os verdadeiros parasitais sociais.
Um crítica da revista Cult, feita por Fabiane Secches, revela uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que analisou a distribuição da renda de trabalho no mundo entre 2004 e 2017, em 200 países. O relatório divulgou que os 10% mais ricos recebem quase 50% da renda de trabalho gerada, sendo que os outros 49% são relativos à renda de capital, ou seja, destinada aos proprietários do dinheiro.
Um o relatório de 2018 da Oxfam mostrou que as 26 pessoas mais ricas do mundo detêm uma riqueza equivalente à metade mais pobre da humanidade somada em conjunto (3,8 bilhões de pessoas). Em 2017, a concentração de riqueza no mundo aumentou, visto que os bilionários tiveram sua renda ampliada para 12%, ao passo que a metade mais pobre teve uma diminuição de 11% de sua renda.
O que esses dados revelam? Que famílias como os Park têm a vida que têm porque vivem às custas do empobrecimento da maioria da população explorada, como a família Kim.
Não que os Park sejam maus e os Kim bons – aliás, o comentário da mãe da família Kim de que a mãe da família Park é extremamente “gentil” justamente é um exemplo de que o filme não busca construir uma mise-en-scène para bandidos e mocinhos – mas é que a própria lógica capitalista a que todos estão submetidos fazem de todos potenciais parasitas.
Arthur Fleck, o palhaço triste
Se os moradores de Bacurau e os Kim têm suas próprias relações de pertencimento, essa não é a condição de Arthur Fleck, um indivíduo completamente só na sua jornada, que faz dele um caso de patologia social.
Arthur é um homem de cerca de 35 anos, palhaço de profissão, que vive com a mãe em uma área marginalizada de Gotham City e tem um distúrbio mental que o faz rir de forma histriônica, uma condição paradoxal para um palhaço sem graça.
Arthur se transforma no Coringa, um sujeito que é o resultado de experiências sociológicas de um homem profundamente triste – um homem sem lar, membro de uma família e de uma sociedade adoecidas.
Coringa e Gotham entram em colapso quando os seus princípios éticos e morais viram ruína. Arthur passa a se sentir pertencente a algo quando se dá conta de que não está só em seu isolamento social: há uma multidão de gente sem nada, formada por invisíveis sociais, que vê no Coringa a chance de estar em comunhão.
Uma reflexão sociológica necessária
Os três filmes – Bacurau, Parasita e Coringa – ganharam o público e a crítica porque pareceram ser necessários para uma reflexão sociológica estetizada pelo cinema em um momento carente de princípios éticos humanitários, cuja construção vem sendo proposta pelo filósofo argentino Enrique Dussel como uma agenda urgente para o século 21.
Talvez por estarmos tão profundamente destituídos de tais princípios, sobretudo em um ano marcado por tantos eventos desalentadores no Brasil e no mundo, esses três filmes tenham despertado o pathos de públicos tão diferentes, mas com a mesma desesperança em comum.
É de se notar a globalização do problema… é como se não tivéssemos por onde escapar. É preciso acordar, se levantar e mudar. Ao menos, o sucesso desses filmes indicam para essa necessidade.
Estaríamos no começo de uma grande reviravolta?
*Publicado originalmente em greenMe/Com informações da Carta maior