Brasil preparou guia a chilenos sobre como lidar com protestos

O governo brasileiro preparou, depois de receber um pedido da polícia chilena, orientações sobre como lidar com manifestantes e reprimir protestos, assim como atuou em órgãos diplomáticos internacionais para apoiar o governo de Santiago, considerado como um aliado.

Documentos obtidos pelo UOL revelam que membros das forças de segurança do Chile, sob pressão por conta do elevado número de feridos causados pela ação da polícia, estiveram na embaixada do Brasil em Santiago para solicitar a ajuda do país sobre atos de manifestantes.

O governo brasileiro produziu um informe no qual lista uma série de protestos no país nos últimos anos e explica de que forma lidou com as manifestações, assim como apresentou a doutrina usada pelo Brasil nesses casos.

Em outubro, a reportagem do UOL revelou que oficiais chilenos solicitaram que os militares brasileiros ativassem a sua inteligência para tentar identificar se organismos estrangeiros estariam incitando os protestos que mergulharam o governo de Sebastián Piñera numa crise sem precedentes.

Em reunião reservada realizada em Brasília, militares chilenos reclamaram aos colegas que os governos civis desmontaram o aparato de inteligência estatal. Militares brasileiros, por sua vez, levantaram a hipótese de que a Open Society, fundação do bilionário húngaro George Soros, o Foro de São Paulo, organização de partidos de esquerda da América Latina, ou um tal “movimento globalista” poderiam estar por trás dos protestos em Santiago. O assunto, então, foi encaminhado para o Centro de Inteligência do Exército,

Dias depois que o UOL revelou o encontro, deputados do PSOL fizeram uma solicitação ao Ministério das Relações Exteriores, ao Gabinete de Segurança Institucional, ao Ministério da Justiça e ao Ministério da Defesa sobre a cooperação entre os dois países.

No dia 11 de dezembro, a chancelaria respondeu aos parlamentares. Por meio de carta assinada pelo ministro Ernesto Araújo, a diplomacia indicou que não existem documentos sobre tal cooperação e nem sobre a possibilidade de uma atuação de entidades brasileiras nos protestos ou orientações expressas por parte do presidente Jair Bolsonaro.

Mas, ainda de acordo com o Itamaraty, em novembro de 2019, “a Embaixada do Brasil em Santiago foi procurada por oficial da corporação policial “Carabineros de Chile” interessado em conhecer a experiência brasileira em atividades de controle da ordem pública, em particular as características da munição de elastômero eventualmente utilizada no controle de manifestações violentas no Brasil”.

O pedido chileno foi enviado para Brasília em 21 de novembro e, sete dias depois, o Itamaraty solicitou ao Ministério da Justiça “elementos técnicos sobre o tema”.

A chancelaria explicou à pasta comandada naquele momento por Sergio Moro que os policiais chilenos estavam sendo criticados por conta da utilização de munição de elastômero nas atividades de controle de multidão. Em apenas um mês, 222 pessoas teriam sofrido lesões oculares como resultado da repressão.

A munição acabou sendo suspensa, diante de constatações de que apenas 20% de sua composição era borracha, contra 80% de “minerais e metais”.

“À luz do que precede, a embaixada (do Brasil no Chile) foi procurada por oficial dos carabineros interessado em conhecer a experiência brasileira em atividades de controle da ordem pública, em particular as características de elastômero eventualmente utilizadas em manifestações violentas em nosso país”, diz a carta do Itamaraty em 28 de novembro do ano passado.

“Operações de Choque”

A resposta do Ministério da Justiça e da Segurança Pública foi dada através de um texto sob o título “Operações de Choque”, em que integrantes da Força Nacional de Segurança (FNS) detalham técnicas e táticas desse tipo de atividade.

“As Operações de Controle de Multidões no Brasil segue (sic) a doutrina que tem por base a escola alemã, que visa à dispersão dos manifestantes através da utilização de diversos meios que produzam demonstração de força e causem impacto psicológico necessário para persuadi-los a não resistirem”, diz o texto.

Quando a persuasão não funciona, segue-se o combate, explica o documento. “Uma distância mínima de segurança entre as forças de segurança e o público manifestante é imprescindível, o que minimiza os danos a integridade física da tropa de choque, bem como a dos manifestantes”, prossegue.

O texto relaciona também as principais manifestações em que a FNS foi empregada: Copa das Confederações de 2013, Jornada Mundial da Juventude de 2013, leilão do Pré-Sal de 2013, Copa do Mundo de 2014 e motins no sistema penitenciário, em 2015. O documento termina dando detalhes sobre as munições de menor poder ofensivo usadas pela Força Nacional, inclusive com detalhes do tipo de borracha nos projéteis.

É uma espécie de guia “sobre aspectos técnicos relacionados à atuação de forças de choque em contexto de policiamento público”. No dia 3 de janeiro de 2020, as informações foram encaminhadas para a embaixada do Brasil em Santiago.

Procurado pela reportagem, o Itamaraty indicou que, depois dos fatos registrados nos documentos, “não houve outra interação com o Chile sobre o assunto”.

Consultados pelo UOL, ministros que já tiveram sob seu comando a FNS disseram que jamais fizeram esse tipo de intercâmbio. “Nunca autorizei algo parecido”, disse Raul Jungmann, que esteve à frente do Ministério da Segurança Pública entre 2018 e 2019, além de ter ocupado a pasta da Defesa entre 2016 e 2018.

José Eduardo Cardozo, que estava à frente do Ministério da Justiça entre 2011 e 2016, quando ocorreram a Copa das Confederações, a Jornada Mundial da Juventude e a Copa do Mundo, também estranhou. “Consulta com essas características nunca aconteceu enquanto eu estive lá”, garantiu. “É algo atípico”.

A reportagem apurou que, de fato, o governo chileno estava sob forte pressão, interna e externa. Uma semana antes do documento brasileiro ser enviado, uma missão da ONU investigou a situação no país sul-americano e num documento constatou que as forças armadas locais “descumpriram as normas e padrões internacionais sobre o controle de manifestações e uso da força”.

No informe, há relatos de tortura, maus-tratos, estupro e outras formas de violência sexual por parte dos Carabineros contra detentos, muitos dos quais foram presos arbitrariamente.

O informe mergulha também na avaliação do “uso desnecessário e desproporcional de armas menos letais, em particular armas de choque, durante manifestações pacíficas e/ou fora do contexto de confrontos violentos entre manifestantes e forças de segurança”.

O relatório ainda observa que as autoridades chilenas “tinham informações sobre a extensão dos ferimentos em 22 de outubro”. “Entretanto, nenhuma ação eficaz, rápida e oportuna foi tomada para impedir o uso de armas menos letais”, conclui.

Apoio do Brasil: setor diplomático

O apoio brasileiro não se limitou à dimensão bilateral. Ao responder aos deputados, o Itamaraty negou que tenha “alertado, pressionado ou dado apoio” a qualquer tipo de ação acerca dos protestos sociais ocorridos no Chile desde 2019. Mas o governo admite que, em 26 de novembro de 2019, houve uma reunião no Conselho Permanente da OEA para tratar da crise chilena. Nesse encontro, porém, os telegramas revelam que houve uma orientação expressa que criticava os atos de violência no Chile e elogiava os esforços do governo. Mas não havia qualquer referência às demandas dos manifestantes e nem sobre as causas do descontentamento social.

Os documentos indicam como a missão do Brasil junto à OEA recebeu instruções de Brasília para apoiar o Chile em um debate realizado no organismo regional. No discurso que deveria ser lido durante o encontro, o Itamaraty instruía os diplomatas ainda a condenar as manifestações violentas.

No texto, pode-se ler que o governo brasileiro critica os “atos violentos ocorridos na Republica do Chile, os quais causaram mortes e ferimentos, além da destruição de propriedades públicas e privadas”.

“O Brasil apoia os esforços envidados pelo governo do presidente Sebastián Pinera para manter a paz, a ordem pública, a segurança cidadã e as instituições democráticas, em conformidade com a Constituição e a lei”, diz.

O texto ainda aponta que “atos de violência e tentativas de desestabilizar o país são incompatíveis com o pleno exercício do direito à liberdade de expressão e reunião. Nesse contexto, são condenáveis todos os tipos de violência, destruição, pilhagem e vandalismo”, alertou.

O governo brasileiro ainda pedia que todos os atores políticos e sociais buscassem soluções por meio do “diálogo”.

Antes, num outro telegrama, de 26 de novembro de 2019, o embaixador do Brasil no Chile, Carlos Duarte, explicava que a ida do chanceler chileno, Teodoro Ribeira, à reunião da OEA tinha como objetivo um “controle de danos” e atuar de “maneira proativa” diante das críticas de grupos como Anistia Internacional e da missão da ONU, que dias depois concluiria suas investigações.

O telegrama foi transmitido a todos os postos do Brasil pela América Latina e para a missão do Brasil nas Nações Unidas.

Enquanto os telegramas percorriam as embaixadas, Bolsonaro comentou os protestos durante a viagem que fez à China. “Praticamente todos os países da América do Sul tiveram problemas”, disse o presidente. “O do Chile foi gravíssimo. Aquilo não é manifestação, nem reivindicação. Aquilo são atos terroristas”, alertou.

Questionado de que forma o Brasil avaliava a violência usada pela polícia chilena, o Itamaraty respondeu à reportagem que se limitaria à declaração do Prosul, em novembro de 2019. Naquela manifestação, os governos “apoiavam os esforços que o Governo do Chile tem feito para manter a paz, a ordem pública, a segurança cidadã e as instituições democráticas, usando os instrumentos legítimos concedidos pela Constituição e pela lei”.

“Condenamos veementemente os atos de violência e tentativas de desestabilizar o país e suas instituições democráticas durante as últimas semanas”, disseram.
“Exortamos o direito à liberdade de expressão e reunião pacífica, sempre excluindo todos os tipos de violência, destruição, pilhagem e vandalismo”, apontaram os governos, destacando a necessidade de “diálogos e acordos”.

*Chico Alves/Uol

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Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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