Na crônica política e criminal do Brasil, escândalos e processos anulados são a regra.
O caso das rachadinhas e o fascínio da família de Jair Bolsonaro por operações em dinheiro vivo um dia merecerão um estudo antropológico. Por enquanto, o que temos é uma crônica política e criminal típica do Brasil. Desde o primeiro mês do mandato de Jair Bolsonaro até hoje, a novela segue ganhando novos capítulos.
Primeiro, soubemos que um sujeito chamado Fabrício Queiroz movimentou R$ 1,2 milhão em salários devolvidos por funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro quando era deputado estadual. Desde então, o Ministério Público do Rio reuniu evidências de que o dinheiro desviado ajudou a pagar mensalidades escolares das filhas de Flávio e a financiar a compra de imóveis.
Graças a investigações de vários repórteres, mas principalmente por Juliana Dal Piva, soubemos depois que a ex-mulher de Jair Bolsonaro Ana Cristina Valle empregou pelo menos 17 parentes em gabinetes do capitão e de seus filhos; e que o próprio Jair ameaçou demitir um cunhado que se recusou a entregar parte de seu salário ao esquema.
Agora, uma reportagem publicada pelo UOL dá a dimensão da importância do dinheiro em espécie na trajetória dos Bolsonaros. Segundo Dal Piva e Thiago Herdy, desde os anos 1990, o presidente, irmãos e filhos negociaram 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram pagos parcial ou integralmente em espécie. Em valores corrigidos pela inflação, teriam sido gastos R$ 26,5 milhões em cash.
A compra de imóveis com dinheiro vivo é uma das formas mais manjadas de lavar dinheiro, porque os dados repassados ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) pelo setor imobiliário não são transparentes, e há muitos contratos de gaveta que dificultam o rastreamento dos recursos. No entanto a revelação sobre o rico patrimônio imobiliário dos Bolsonaros provavelmente não terá nenhuma consequência política ou jurídica.
Quem acompanha a novela sabe: desde que o Coaf produziu o primeiro relatório listando as movimentações atípicas, o Ministério Público do Rio de Janeiro investigou e denunciou Fabrício Queiroz, Flávio Bolsonaro e outras 15 pessoas por crimes como organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita.
O juiz da primeira instância autorizou diligências e mandou prender Queiroz. A partir daí, sucessivas decisões do Tribunal de Justiça do Rio, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) derrubaram, um a um, os pilares da investigação.
Primeiro, o ministro do STF Dias Toffoli suspendeu não só o inquérito da rachadinha, mas todos os outros que tivessem usado relatórios do Coaf sem prévia autorização da Justiça — algo que nunca havia sido colocado em xeque, porque se entendia que a função do Coaf era justamente produzir relatórios de inteligência para alertar os órgãos de fiscalização.
Ao longo de 2021, o ministro do STJ João Otávio Noronha também mandou soltar Queiroz e ainda suspendeu toda a investigação por entender que o MP usara prova “nula” (o tal relatório do Coaf que Toffoli considerou inválido). No final do ano, Flávio ainda ganhou o direito de ser julgado no STF, que driblou sua própria jurisprudência para atendê-lo. Ao julgar o recurso impetrado pelo MP do Rio, o ministro Gilmar Mendes deu ganho de causa a Flávio, alegando que os promotores fluminenses tinham perdido o prazo para recorrer no TJ — e nisso foi acompanhado pela maioria da Corte.
Nenhum desses magistrados disse que não houve rachadinha, que não havia indícios de lavagem de dinheiro ou que os Bolsonaros não se beneficiaram do desvio de recursos públicos. Fixaram-se, todos, em questões processuais.
Ao reduzir a pó as investigações, desobrigaram Flávio e os outros investigados de responder a processos, da mesma forma que fizeram com diversos outros casos envolvendo corrupção e desvios de recursos públicos entre 2019 e 2021.
Era uma época em que os interesses do governo se casavam com os da oposição, mutilada pela Lava-Jato. Juntos, os dois lados trabalharam firme para desmontar o aparato institucional de combate à corrupção.
A pretexto de corrigir abusos — alguns dos quais ocorreram e precisavam ser reparados —, abriu-se a porteira para toda uma boiada passar. Nada disso foi feito às escondidas, pelo contrário. Todos sabiam o que faziam e, cada um a seu tempo, colheram os benefícios.
Nesse contexto, seria de se espantar que os bolsonaristas enxovalhem tanto o Supremo, enquanto a oposição reclama que as investigações sobre a rachadinha dos Bolsonaros não tenham dado em nada. Só não espanta mesmo porque estamos no Brasil.
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