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‘Meu pai ajudou a criar o SNI nos primeiros momentos da ditadura’

Diferente do pai, o advogado José Silvio Jacome se define como progressista , brizolista e vota no PT.

Os ruídos vindos da cozinha acordaram o menino José, o Zezinho, no meio da madrugada. Esfregando os olhos, sonolento, ele saiu do quarto para ver o que estava acontecendo. Encontrou a mãe, Beatriz, acabando de servir às pressas um café ao seu pai, que já estava vestido para sair. Ela perguntou o que aquele garoto de 13 anos estava fazendo acordado às 3 horas da madrugada. Antes de ser levado por ela de volta para o quarto, quis saber onde o pai estava indo àquela hora. A mãe explicou que tinham ligado do trabalho para que ele fosse tratar de uma emergência. O menino voltou a dormir.

Essa cena, que ficou na memória de José Silvio Jacome, se desenrolou no apartamento em que morava, na Rua Dona Delfina, Tijuca, zona Norte do Rio de Janeiro, no início do dia 1° de abril de 1964. Somente dois anos depois, o garoto tomaria consciência de que seu pai, o advogado André Fernandes Silva Jacome, fora convocado naquela ocasião para uma tarefa grave: dar suporte ao golpe militar-empresarial que jogou o país em uma ditadura que durou 21 anos.

Hoje, com 74 anos, José Silvio tem convicção de que se tornou naquele momento, mesmo que indiretamente, uma das primeiras pessoas a ter a vida afetada pelo regime de exceção que subjugou a democracia no Brasil. Não pelo acontecimento prosaico de ter o sono interrompido pelos barulhos vindos da cozinha, mas porque a convocação feita naquela madrugada de 1964 mudaria para sempre a rotina de sua casa.

“Chamaram meu pai para que ajudasse na estruturação do SNI (Serviço Nacional de Informações)”, conta.

Trata-se do órgão criado oficialmente em junho daquele ano, destinado à espionagem e ao levantamento de informações sobre os adversários políticos da esquerda, ou mesmo da direita que tivessem boa relação com aqueles que a ditadura considerasse “subversivos”. Ao mesmo tempo, o serviço ajudou a encobrir os crimes dos integrantes do regime.

Chefiado pelo poderoso general Golbery do Couto e Silva, considerado um dos principais articuladores do governo ditatorial, o SNI absorveu o Serviço Federal de Informações e Contrainformação (criado em 1958) e a Junta Coordenadora de Informações (criada em 1959). Era o centro de decisão no qual se decidia quais pessoas, instituições e grupos deveriam ser reprimidos, e de que forma.

O jornal Correio da Manhã o definiu com essas palavras: “É um ministério de polícia política, instituição típica do Estado policial e incompatível com o regime democrático”.

Golbery criou o SNI. Posteriormente foi espionado pelo órgão: “Criei um monstro” (Domínio público / Acervo Arquivo Nacional)

Mesmo que tivesse uma proposta autoritária, tanto o general Castello Branco — o primeiro ditador do regime — quanto Golbery quiseram dar ao SNI uma aparência de legalidade. Essa foi a primeira tarefa do advogado André Fernandes Silva Jacome: ajudar a traçar parâmetros que pudessem dar aspectos “legais” ao trabalho do órgão.

“Em 1965, foi lançado o texto ‘A legislação brasileira e a segurança nacional’, do qual meu pai foi um dos autores (junto com Josias Argons)”, relata José Silvio.

O documento passou a circular no Estado Maior das Forças Armadas com o carimbo de “Reservado”. Em suas páginas, definiu o conceito de “ordem política e social”, que serviria como base ao governo militar, sugeriu o papel do “Conselho de Segurança Nacional” e deu interpretação própria a vários pontos da vida nacional, em capítulos cujos títulos são autoexplicativos: “Crimes de responsabilidade”, “Direito de greve”, “Liberdade de imprensa”, “Partidos políticos e legislação eleitoral” e outros.

A linha de raciocínio dos autores está explícita no tópico “Direito positivo”, em que definem “segurança nacional” como a “sensação de paz e tranquilidade que o governo propicia ao povo”, algo que “ocorre em todos os setores da vida nacional”. Partindo dessa premissa, o Estado deveria criar órgãos indispensáveis à “realização da política de segurança nacional”.

Apesar da participação do pai no regime autoritário, José Silvio, também advogado, se define progressista. Conta que repudiou a ditadura desde quando teve consciência do que estava acontecendo e aos 15 anos, aluno do Colégio Pedro II, começou a participar do movimento estudantil, que fazia manifestações contra o governo. O pai nunca soube.

“Nós não conversávamos sobre ideologia política. A certa altura, ele começou a me relatar os absurdos que aconteciam no SNI, muito desgostoso. Era como se eu fosse o confidente dele”, recorda.

Mesmo com o trabalho do pai tendo contribuído para a formação do órgão de repressão, José Silvio o considera um “democrata”. “Era uma época de uma divisão muito grande da sociedade. Ou você estava de um lado, ou estava de outro, não havia meio termo”, justifica.

Conta que o pai participou da Comição Geral de Investigação que revirou pelo avesso a vida de Leonel Brizola, acusado pelos militares de ser “comunista” e “corrupto”. Em uma das conversas, contou que não encontrara nada que justificasse essa classificação.

“O Brizola pode ser tudo, menos comunista e ladrão, pois é dono de milhares de cabeças de gado e suas fazendas ultrapassam três países e não ia se sujar por dez merrecas”, disse o pai, revoltado.

“Desde então, virei brizolista”, conta José Silvio, que tem votado há muitos anos nos candidatos do PT.

Outro motivo de decepção do pai, segundo conta, foi o resultado do Inquérito Polcial-Militar que cassou o coronel da Aeronáutica Rui Moreira Lima, um herói da Segunda Guerra Mundial, também classificado de subversivo. “Meu pai votou contra a cassação, mas dois generais votaram a favor, e por isso foi derrotado. Ele considerava Rui um homem íntegro, que foi vítima pela disputa de protagonismo entre Exército e Aeronáutica”, lembra.

Na opinião de José Silvio, esses dissabores levaram seu pai a uma tristeza profunda, que colaboraram para que tivesse uma isquemia em 1972. Passou a vegetar, com grandes dificuldades para se locomover e falar: “Passou a viver amarrado em uma cama, já sem raciocinar. Teve uma morte horrível em 1983”.

O filho progressista prefere lembrar do que chama de boas intenções do pai, que classifica como advogado competente e respeitado, traído pelos rumos que o regime militar tomou.

Sobre a reivindicação de volta da ditadura, que voltou a ser bandeira de grupos de uma ala militar, José Silvio sugere uma urgente mudança no currículo da caserna. “O problema é a doutrina. Até hoje há apostilas na academia militar que tratam o golpe de 64 como ‘revolução democrática’”, exemplifica. “É preciso ensinar democracia nessas escolas”.

Pela relação de décadas que manteve com militares, chegou a ser convidado para participar dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

“Por causa disso rompi amizades de quase 60 anos. Disse que votei no Lula e que não iria haver golpe. Fiz um relatório para o Xandão (ministro Alexandre de Moraes) relatando as reuniões desses conspiradores”, conta. “Sou anti-ditaduras”.

*Chico Alves/ICL

Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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