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A República de todos, ou uma capatazia dos mercados?

Por Saul Leblon

É desconcertante, mas a voz mais estridente da barbárie hoje no mundo fala o idioma português.

Jair Bolsonaro – ‘talquei?’

Mas não só ele.

Nem apenas os seus filhos, os amigos deles, os parentes e agregados que os circundam ou os cinturões extremistas que orbitam no seu obscuro entorno institucional e clandestino.

A barbárie também desponta em múltiplas instâncias de poder da sociedade neste momento.

O governador do Rio de Janeiro, Wilson José Witzel, é uma cruz maltina em ascensão.

Ex-juiz federal, ex-fuzileiro naval, aplica na administração da segurança pública os métodos de Rodrigo Duterte, o presidente filipino que disputa o ranking do pesadelo mundial na ameaça aos direitos humanos.

Ao celebrar sua vitória em 2016, como relatou então a BBC, Duterte encorajou civis armados a matarem traficantes que resistissem à prisão. ‘Fiquem à vontade para nos ligar. Ou faça você mesmo’, afirmou em cadeia nacional.

“Eu lhes darei uma medalha”.

Semanas depois, 2 mil pessoas supostamente vinculadas ao tráfico haviam sido assassinadas.

Mirar a cabeça de supostos traficantes e disparar é também a solução Witzel para uma equação social cujo saldo em vidas inocentes denuncia a mal disfarçada guerra contra jovens pretos e pobres.

Há, ainda, derivações medievais que dirigem o Estado como se fosse uma igreja, exortando a uma guerra fria entre fiéis e hereges.

Nos porões, uma organização clandestina de juízes e procuradores tortura o Estado de Direito em delações que se nivelam a chantagens e extorsões para liquidar adversários políticos.

O fato de nenhum membro honrado do judiciário brasileiro ter reunido força e consentimento até agora para dizer basta à polícia política de Moro, Dallagnol & Cia. é significativo da deriva institucional que avulta aos olhos do mundo.

A relevância ambiental –e geopolítica– do Brasil para o destino do planeta explica a inquietação adicional com Bolsonaro em relação a Duterte.

O Presidente brasileiro condensa múltiplos medos que assombram a democracia acossada do século XXI.

Por que é tão difícil detê-lo se as próprias elites consideram o seu trabalho concluído, mencionando-o com frequência cada vez maior como uma fonte de ‘ruído ‘ contraproducente?

Parte da resposta remete à disjuntiva que dá título a esse texto.

Uma República do bem comum, ou uma capatazia a serviço dos mercados?

O peso dessa carta condensa toda a história do jogo.

No golpe de 2016, o Brasil viu a sua elite –e a mídia- se aliar à escória do submundo político e religioso.

Ao mirar o desmonte da Constituição de 1988, ela se descomprometeu de vez de compartilhar uma República de todos, com o Estado democrático e os fundos públicos correspondentes.

Com Bolsonaro pisando a jugular do PT – e Moro sangrando e salgando suas vísceras–, os punhos de renda liberais e o dinheiro grosso viram a possibilidade de colocar a sociedade de joelhos, inteiramente a serviço dos mercados.

Uma capatazia política –Moro, Bolsonaro, mídia & CIA– para subjugar a nação integralmente aos mercados estava ao alcance das mãos.

Um ciclo de desenvolvimento havia se esgotado; outro teria que ser construído.

Era agora ou nunca.

A radicalidade da exclusão arquitetada dificulta agora mover a peça que se tornou o seu corolário político e ideológico.

Os punhos de renda abriram o canil para colocar o cachorro louco a seu serviço mas não sabem mais como reconduzi-lo ao cercado depois que o enforcador e a focinheira foram afrouxados.

Pode-se cortar com uma faca a espessa malha de incertezas, desconfiança, medo e incapacidade que recobre essa encruzilhada.

A alta voltagem da tensão decorre de uma ambiguidade clássica nos ciclos de radicalização política ao longo da história: como descartar criaturas que escaparam ao criador, sem pôr a perder o conjunto da obra?

No caso desse Termidor canhestro, o que se teme perder é a faxina em curso na Carta progressista de 1988, ademais das conquistas nacionais e civilizatórias já levadas à guilhotina, que vão de Vargas (CLT, Petrobrás, bancos públicos etc.) à Princesa Isabel (abolição do trabalho escravo).

Aos poucos, a aliança golpista de 2016 está descobrindo, a exemplo de Macri, na Argentina, que a história não aceita roteiros imaginativos.

Derrubar Dilma, encarcerar Lula, processar Cristina não elimina as contradições dilacerantes do processo de desenvolvimento na periferia de um sistema ameaçadoramente desregulado.

A liberdade econômica dos mercados, à qual os publicitários do golpe atribuíam poderes de fada madrinha da redenção nacional, está em xeque.

Era só tirar Dilma. A sabedoria intrínseca aos livres mercados cuidaria de alocar recursos ao menor custo, com a maior eficiência.

Os investimentos voltariam no dia seguinte, era a promessa.

Nas semanas seguintes…

Nos meses seguintes…

Nos anos…?

Fatos.

Na Argentina, a taxa de investimento que era de 20% do PIB em 2007, caiu para 13,5% às vésperas do esfarelamento eleitoral de Macri.

No Brasil ela rasteja no nível mais baixo dos últimos 72 anos.

A fornalha da insatisfação junta vapor e a caldeira política começa a apitar.

Depois dos lucros registrados em 2018, em grande parte por conta da base de comparação deprimida, a república dos acionistas se impacienta no Brasil.

No país do desemprego e dos estoques sem demanda, a espiral descendente começa a puxar os balanços também para baixo.

A ‘Oi’ teve R$ 1,4 bi de prejuízo no 2º trimestre (ações caíram 24%); o Grupo Ultra perdeu R$ 1,8 bi em Bolsa; ações da Sabesp caíram 6%…

A mágica falhou.

Aqui, a plateia se enerva ainda em voz baixa; na Argentina, o nervosismo explodiu em uma avalanche de votos que enterrou a receita ultraneoliberal com uma diferença de 3,8 milhões de votos, num total de 25 milhões de eleitores (mais de 15% de diferença em favor da chapa Alberto-Cristina).

Das 23 regiões argentinas, Macri só ganhou em duas.

O monólogo político do antipetismo e do anticomunismo indigente não dá conta de equacionar a realidade não prevista que bate à porta do país.

O deslizamento da pedra angular da recuperação rápida –e sua precificação pedagógica na Argentina- está abrindo gretas.

Uma sombra de desolação recobre a montanha desordenada de ruínas à qual se reduziu a economia do país.

Mais que isso, começam a perceber os que ainda tem olhos para ver e ouvidos para escutar.

Não são ruínas congeladas. Elas se retroalimentam.

Abrindo novas frentes de demolição.

A criminosa interrupção de obras públicas e de programas habitacionais – obra coletiva de Moro e Guedes— rebate na derrocada do setor que mais emprega no mercado.

O de obras e construção civil.

A seca do investimento nessa área só foi pior em 1948, no atribulado cenário do pós-guerra mundial.

Não é um ponto fora da curva.

Mesmo a capacidade produtiva já existente encontra-se subutilizada em outras frentes.

O hiato médio entre aquilo que o país poderia estar fabricando e a realidade do PIB é da ordem de 6%.

Na indústria é pior.

Em junho, 22,8% da capacidade fabril estava desperdiçada (0,5 ponto pior que em 2018).

Nem assim os estoques escoam.

Níveis altos são informados nas áreas de metalurgia, química, metal, têxtil, celulose, farmacêutica etc.

O empobrecimento esfarela os deserdados e arrasta a classe média para o fundo do endividamento: ele hoje é recorde e atinge 44% da população.

Escolas particulares assistem a um movimento coordenado de mensalidades atrasadas e revoada de alunos para a rede pública.

Muitos que foram às ruas convocados pela Globo para derrubar Dilma agora não conseguem mais sair delas.

Desempregados, subempregados, desalentados, empreendedores de marmita, motoristas de Uber (só aqui são 600 mil) compõem uma massa superior a 50 milhões de pessoas.

Metade da população economicamente ativa está na soleira da porta, do lado de fora do mercado e da cidadania.

Quase 3,5 milhões estão desempregados há mais de dois anos.

Nunca se viveu aqui um ciclo tão longo de agravamento das disparidades sociais como o atual. A advertência está inscrita em pesquisas recentes da FGV.

A fenda que regrediu por mais de uma década, desde 2003, durante os governos Lula e Dilma, voltou a se abrir com o cerco golpista a partir das eleições de 2014.

Não parou mais de crescer.

Entre 2015 e 2017, a população pobre aumentou de 8,3% para 11,1% do total.

Em dois anos, o Brasil passou a ter mais 6,2 milhões de pobres.

Hoje são 23,3 milhões de cidadãos que subsistem com menos de R$ 233,00 por mês.

Há 17 trimestres consecutivos (4 anos e 3 meses) a roda da desigualdade gira impiedosamente impulsionada pelas ‘reformas’ e tesouradas fiscais.

A metade mais pobre da população já perdeu 17% da renda nessa maratona; o 1% mais rico ganhou 10%.

Na Argentina, a insistência de quatro anos na mesma receita jogou 32% da população para um desvão abaixo da linha da pobreza.

O solvente de medo e dúvida trazido pela derrota antecipada de Maurício Macri tende a diluir mais rápido a higidez da frente golpista no Brasil.

A perspectiva de um desastre equivalente antecipa nos meios empresariais e políticos a busca de salvaguardas para custos correspondentes.

A contestação ao histrionismo de Bolsonaro e – cada vez mais— ao baixo retorno das reformas amplamente saudadas pelos mercados, promove o descolamento de bancadas e votos no Congresso.

Candidaturas conservadoras a sua sucessão podem ter lançamento antecipado já no final deste ano.

Não há linearidade na política.

O que hoje parece uma linha de passagem contida e gradual poderá assumir a tensão de um elástico esticado até o ponto de ruptura.

O empurrão pode vir de flancos internos.

Mas o ambiente econômico internacional, onde a contagem regressiva de uma nova recessão pisca nos monitores da Europa e dos EUA, pode funcionar como uma alavanca brusca.

A ameaça de um solavanco externo amplifica a insegurança em relação à consistência da agenda interna.

Paulo Guedes e seus Chicago’s boys e a turma de Moro podem ter empurrado o país para um abraço de afogados ao desguarnecer o Estado dos instrumentos contracíclicos – investimentos estatais banidos, bancos públicos amesquinhados, grandes empreiteiras destruídas– diante de um mundo tragado pela desordem neoliberal.

O afluxo de capitais prometido para o day after do golpe pode demorar muito mais que o previsto.

Ou não acontecer, antes de uma largada eleitoral precoce.

Basicamente, o fluxo do dinheiro global orienta-se nesse momento pelo instinto da autopreservação com preferência pela segurança acima de tudo.

O nome disso é títulos do Tesouro americano e não Macri, tampouco Bolsonaro que perdeu massa nesse quesito pelo efeito Orloff.

Um dado resume todos os demais: o mundo tem atualmente US$ 15 trilhões aplicados em títulos públicos e bônus que pagam taxas de juros negativas.

O volume equivale a 25% dos papéis emitidos por governos e empresas em todo o planeta. (Financial Times)

Que isso ocorra no momento em que as ações nos EUA encontram-se no segundo período mais caro em 150 anos, segundo o FT, dá conta das correntes submersas de medo e insegurança que se deslocam nas profundezas do capitalismo desregulado do nosso tempo.

Não há segurança sequer para investir em ações lucrativas nos EUA. Mas a escumalha parlamentar aqui acha que resolve o problema liberando trabalho aos domingos.

Os ventos uivam outra coisa.

Desmontar os instrumentos públicos de comando econômico – ademais de fragilizar abrigos de proteção social desde a educação pública ao auxílio desemprego etc— é assinar um contrato de rendição incondicional aos desígnios da tormenta em curso no horizonte.

Os críticos da intervenção do Estado se revezam na vigília de orações à espera de uma intervenção salvadora do investimento privado na economia brasileira.

Capitais não se movem por rezas ou cultos. Se a demanda patina, a pobreza cresce e os estoquem encalham, a ordem unida é manter a liquidez em renda fixa.

Há opção aos místicos da macroeconômica.

Mas tampouco é simples: inexiste fada madrinha progressista também.

O professor Luiz Gonzaga Belluzzo, um dos mais lúcidos intelectuais brasileiros, e um economista de ecumênico reconhecimento, faz uma advertência grave.

‘O que precisa ser feito é óbvio: centralização do crédito; corte de dívidas; soltar o gasto público – a inflação está no chão e não ameaça; obras de infraestrutura’.

Como fazê-lo, no entanto, envolve um lastro de força política equivalente ao que empurrou o New Deal, pondera com seriedade na voz.

A organização capilar da sociedade é o divisor de águas de um novo pacto de desenvolvimento para o país.

Nenhum outro ‘insumo’ é mais importante que esse.

Sem ele será impossível imantar outros interesses na coagulação política ampla de forças necessárias à reordenação do crescimento com a democracia social no século XXI brasileiro.

Essa é a disjuntiva que congela e ao mesmo tempo solapa o governo Bolsonaro: uma República do bem comum, ou uma capatazia a serviço dos mercados?

A educação pública para a cidadania, o desenvolvimento e a pesquisa, que esse pacto requer – sobretudo na sua frente de conversão ambiental e tecnológica– é uma trincheira fundamental à construção dessa capilaridade organizativa.

Perfilam no sistema educacional milhões de crianças, jovens, pais, professores, reitores, intelectuais, personalidades, entidades, bancadas suprapartidárias e segmentos empresarial; vozes que precisam ecoar mais fortemente para que a sociedade brasileira sinta-se encorajada a assumir o comando do destino nacional nesta encruzilhada da sua história.

 

*Da Carta Maior