Conjur – A operação policial que deixou 28 mortos na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro, nesta quinta-feira (6/5), desrespeitou as decisões do Supremo Tribunal Federal que impuseram obrigações a ações de segurança e restringiram incursões em comunidades do estado a casos excepcionais enquanto durar a epidemia de Covid-19.
Em novembro de 2019, o PSB moveu arguição de descumprimento de preceito fundamental no Supremo contra a política de segurança implementada pelo então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC). O partido pediu que o estado promovesse medidas de proteção aos direitos humanos e reduzisse a letalidade policial. Diante da disseminação do coronavírus, o partido reforçou o pedido.
Em 5 de junho de 2020, o relator do caso, Edson Fachin concedeu liminar para limitar, enquanto durar a epidemia de Covid-19, as operações policiais em favelas do Rio a casos “absolutamente excepcionais”, sob pena de responsabilização civil e criminal em caso de descumprimento da ordem. As ações devem ser justificadas pela autoridade competente e imediatamente comunicadas ao Ministério Público, responsável pelo controle externo da atividade policial.
Nos casos extraordinários em que ocorrerem as operações, ordenou Fachin, os agentes estatais deverão adotar “cuidados excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária”. A decisão foi confirmada pelo Plenário do STF em agosto.
No mesmo mês, o Supremo impôs restrições adicionais para operações policiais em comunidades do Rio. Os ministros limitaram o uso de helicópteros, determinaram a preservação das cenas dos crimes e proibiram o uso de escolas e unidades de saúde como bases operacionais das polícias militar e civil.
Em coletiva de imprensa nesta quinta, o delegado Rodrigo Oliveira, da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil, afirmou que a operação no Jacarezinho observou “todos os protocolos” estabelecidos pelo STF. Mas também disse que “por força de algumas decisões, e de algum ativismo judicial que se vê hoje muito latente (…), a gente foi de alguma forma impedido, ou minimamente foi dificultada a atuação da polícia em alguma localidades”.
O advogado Daniel Sarmento, que representa o PSB na ação, afirmou à ConJur que a operação desrespeitou as decisões do Supremo. Uma das razões diz respeito à justificativa apresentada para a incursão na favela. A Polícia Civil explicou ao MP-RJ que a operação visava cumprir mandados de prisão contra acusados por associação ao tráfico de drogas.
Contudo, o delegado Felipe Cury, diretor do Departamento Geral de Polícia Especializada, responsável por descrever a investigação à imprensa, afirmou em entrevista coletiva que as investigações mostraram crimes graves “conexos ao tráfico de drogas” como homicídios, aliciamento de menores, sequestros de composições da Supervia e roubos. Nenhum desses delitos é mencionado na denúncia, segundo o jornal Folha de S.Paulo.
A peça acusatória, conforme o veiculo, é baseada em fotos de 21 homens publicadas em redes sociais, com suas investigações. De acordo com Sarmento, investigar pessoas acusadas de tráfico na rede social não é uma situação de “absoluta excepcionalidade” que justifica uma operação durante a epidemia. Nesse período, diz o advogado, apenas situações extremas, que colocassem risco a vida ou a liberdade de pessoas (como em um sequestro), poderiam motivar uma ação policial.
Além disso, os agentes estatais não adotaram nenhuma medida para assegurar os direitos dos moradores do Jacarezinho, aponta Daniel Sarmento, que também é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Em inspeção, a Defensoria Pública enxergou indícios de “desfazimento da cena do crime”. Com isso, houve desrespeito à primeira liminar do STF, que proibiu tal prática, mencionou o advogado.
Sarmento disse que não houve irregularidade na comunicação da operação ao MP. O problema, a seu ver, é que o órgão tem feito um controle meramente formal das ações policiais, aceitando todas as justificativas para as incursões.
Em março, o MP-RJ extinguiu o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp). A decisão foi criticada por defensores dos direitos humanos. No mês seguinte, a Promotoria criou um grupo temático temporário para promover ações estratégicas e coordenadas para atender às determinações de redução da letalidade e da violência policial.
O jurista Lenio Streck também entende que a operação no Jacarezinho desrespeitou as decisões do Supremo. E opina que o fato pode gerar o impeachment do governador do Rio, Cláudio Castro — ele foi definitivamente empossado no cargo no sábado passado (1º/5) após seu antecessor, Wilson Witzel (PSC), ser condenado pela prática de crimes de responsabilidade.
“Trata-se um caso de ‘desrespeito chapado’! Resta agora saber se a parte da decisão em que o ministro diz ‘sob pena de responsabilização civil e criminal’ será também desrespeitada. Com o que estará completado o quadro de explícita provocação! Resta também saber se o Ministério Público ainda controla a atividade da polícia. A ver! E se ficar comprovado que o governador autorizou ou ficou sabendo, é caso de impeachment”, declarou Lenio.
Dessa maneira, ressalta Sarmento, o Ministério Público Federal pode investigar as autoridades fluminenses pelo crime de desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito, estabelecido pelo artigo 355 do Código Penal. O dispositivo estabelece pena de detenção, de três meses a dois anos, ou multa para quem “exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicia”.
Petição ao Supremo
Com esses argumentos, o PSB e 16 amici curiae na ADPF pediram nesta sexta (7/5) que o Supremo defina, de modo mais preciso, os contornos do conceito de “absoluta excepcionalidade” em que podem ocorrer operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do coronavírus.
As entidades também requereram que se apure o crime de desobediência às liminares do STF no caso, bem como de outros ilícitos penais, administrativos e delitos conexos cometido pelas autoridades responsáveis pela operação no Jacarezinho.
Edson Fachin pediu, nesta sexta-feira (7/5), que o procurador-geral da República, Augusto Aras, investigue se houve abusos policiais, inclusive execuções, na operação na favela do Jacarezinho.
Ao encaminhar a Aras ofício e vídeos enviados a seu gabinete pelo Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular, ligado à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fachin apontou que “os fatos relatados parecem graves e, em um dos vídeos, há indícios de atos que, em tese, poderiam configurar execução arbitrária”.
“Certo de que vossa excelência, como representante máximo de uma das mais prestigiadas instituições de nossa Constituição cidadã, adotará as providências devidas, solicito que mantenha este relator informado das medidas tomadas e, eventualmente, da responsabilização dos envolvidos nos fatos constantes do vídeo”, disse o ministro.
Nota do MP-RJ
O Ministério Público do Rio informou, em nota, que instaurou procedimento para apurar violações de direitos na operação policial no Jacarezinho. A Promotoria também disse que disponibilizou equipe de médicos legistas e demais peritos para acompanharem as investigações.
O MP-RJ ainda declarou que estabeleceu mecanismos para colher relatos e outros elementos de prova. “No entanto, para se alcançar sucesso nas investigações, faz-se necessária uma efetiva participação das entidades sociais e da própria sociedade em geral, contribuindo com informações úteis à regular elucidação das noticiadas violações praticadas e fornecendo dados que efetivamente auxiliem na averiguação dos fatos e na própria identificação de seus autores”, destacou o órgão.
Entidades repudiam operação
Diversas entidades criticaram a operação policial. O Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça, se solidarizou com as famílias das vítimas da incursão no Jacarezinho.
“O Observatório acompanhará os desdobramentos das investigações no âmbito do Poder Judiciário sobre as circunstâncias em que se deu o enfrentamento. Consideramos que a perda dessas vidas deve ser apurada de maneira ampla e célere, para se assegurar uma efetiva garantia dos direitos fundamentais da inviolabilidade à vida, à liberdade e à segurança.”
A Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da seccional do Rio de Janeiro da OAB repudiou “o massacre perpetrado na carente e honrada comunidade do Jacarezinho” e questionou “a letalidade e a violência dessa macabra operação policial”.
Segundo a comissão da Ordem, agentes de segurança pública do Rio de Janeiro “promoveram verdadeira carnificina” e desrespeitaram a decisão do Supremo Tribunal Federal. “O comando da segurança pública fluminense, já notificado da decisão, afrontou a autoridade do STF, impondo à população carioca, em especial, aos moradores do Jacarezinho, tragédia sem igual, sendo imprescindível a apuração, identificação e responsabilização daqueles que naturalizaram essa barbaridade, tudo em conformidade com as normas que salvaguardam os direitos e as garantias constitucionais”.
A Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da OAB-RJ deixou claro que “cerrará fileiras ao lado de entidades da sociedade civil, das famílias enlutadas e da população” do Jacarezinho, visando à apuração célere e transparente dos fatos. A nota foi assinada pelo presidente da comissão, Luís Guilherme Vieira, e pelo integrante do órgão James Walker Jr.
A operação policial na favela foi classificada de “mortífera invasão”, executada por policiais que agiram como “grupo de extermínio”, pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia, Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia, Movimento da Advocacia Trabalhista Independente, Coletivo por um MP Transformador e Associação Juízes para a Democracia.
Conforme as entidades, tão grave quanto a ação policial foram as justificativas apresentadas por delegados na coletiva de imprensa, negando as execuções e criticando o que entendem ser “ativismo judicial” a inviabilizar maior presença do Estado nas comunidades.
“Com tais declarações, a Polícia Civil do Rio de Janeiro assume posição de hostilidade e confronto com o Supremo Tribunal Federal, ao questionar as medidas judiciais que visam a contenção do uso da força em tempos de pandemia com o fim de, por um lado, proteger a população civil e, por outro, limitar as incursões armadas aleatórias e indiscriminadas como as que fatalmente ocorrem quando os disparos são realizados a partir de helicópteros”, disseram as instituições.
Segundo elas, os representantes da Polícia Civil menosprezaram defensores dos direitos humanos e encorajaram agentes de segurança “ao arbítrio ilimitado” contra moradores de comunidades. Assim, transmitiram “a certeza da impunidade diante dos mais variados crimes, como execuções, invasão de casas, confisco de celulares, ameaças e humilhações como as relatadas por moradoras coagidas a limpar o sangue das vítimas com água sanitária para que as provas dos crimes pudessem desaparecer”.
A OAB-RJ e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais já haviam criticado a operação e cobrado investigações sobre as violações de direitos por agentes estatais.
*Sergio Rodas/Conjur
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