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É necropolítica que chama

Não faltam denúncias, imagens nem números a confirmar a escalada da violência de Estado nas favelas

Não há outra palavra para denominar o cotidiano de brutalidade ao qual as favelas do Rio de Janeiro estão expostas desde que Wilson Witzel aportou no Palácio Guanabara. O pensamento de Achille Mbembe, filósofo e pensador camaronês, é o que melhor resume a banalização de operações com blindados em terra, rasantes e disparos de helicópteros do céu. São ações que produzem pânico e morte nos morros — onde vive predominantemente a população negra e de baixa renda — sem traço de melhora na percepção de segurança no Estado do Rio. O nome é necropolítica.

“É basicamente uma política de morte, o poder de ditar quem deve viver e quem deve morrer. Ocorre cotidianamente em diversos territórios negros e periféricos, caso das favelas, identificados como territórios de inimigos que precisam ser combatidos. Fica estabelecido que aqueles corpos são matáveis, que essas vidas têm menos valor e são, portanto, descartáveis”, define Juliana Borges, pesquisadora em antropologia e autora de “O que é encarceramento em massa” (Pólen Livros).

A autora tratou do tema em artigo sobre as ações do então prefeito de São Paulo, João Doria, para dispersar frequentadores da cena de consumo de drogas na região central da capital paulista, a chamada Cracolândia. O raciocínio serve agora às intervenções que, no Rio, ganharam força como discurso eleitoral de um candidato desconhecido e materializaram-se no dia a dia das comunidades com a posse do governador.

Em agosto, seis jovens inocentes, cinco rapazes e uma moça, perderam a vida por bala perdida no Grande Rio. Esta semana, confrontos da polícia com traficantes interromperam por uma hora a circulação de trens e deixaram quatro mortos no Jacarezinho. Anteontem, no Complexo do Alemão, seis pessoas morreram, um policial ficou gravemente ferido e centenas de crianças não puderam ir à escola; na Maré, alunos tiveram de se abrigar no corredor de uma unidade de ensino.

De tão grave o cenário, membros da sociedade civil e representantes das comunidades estão recorrendo ao Ministério Público estadual e à Defensoria Pública. O Ministério Público Federal, por sua vez, está cobrando da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) a fiscalização dos helicópteros das forças de segurança do Rio. Seria atribuição do órgão monitorar estrutura, operação, gestão, treinamento, instalação da plataforma de tiros, transporte de armas, disparos a bordo e lançamentos de objetos.

Os números também confirmam a escalada da violência pela multiplicação dos confrontos. De janeiro a julho, houve 1.075 homicídios decorrentes de intervenções policiais no estado, informou o Instituto de Segurança Pública (ISP). Foi recorde histórico. Até agosto, a Rede de Observatórios da Segurança contou 1.697 operações com trocas de tiros.

Este ano, a plataforma Fogo Cruzado, que mapeia troca de tiros na Região Metropolitana, contabilizou 63 episódios de violência com três ou mais civis mortos; em 49 havia presença de policiais. As chacinas deixaram 235 vítimas fatais. Em relação ao mesmo período de 2018, houve aumento de 31% no total de casos, 58% na participação de agentes de segurança e 21% no número de mortos.

A partir das violências perpetradas no Rio, podemos enxergar uma política racista de extermínio e instrumentalização da vida, mobilizada pelo aparato estatal que impõe à população negra a morte e reforça a ideia de que a possibilidade de vida plena é atributo exclusivo da branquitude. A necropolítica não foi inventada no governo Witzel, mas tem na atual gestão uma exacerbação que não pode ser negligenciada ou simplificada”, resume Thula Pires, professora de Direito Constitucional da PUC-Rio.

 

*Flávia Oliveira/O Globo