O arsenal empregado contra as populações nos protestos que ocorreram recentemente no Equador, na Bolívia e no Chile foi fabricado no seguinte endereço: Rua Armando Dias Pereira, 160 – Adrianópolis, Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Ali, a fábrica que exporta “artefatos não letais” para o mundo, atende pelo sugestivo nome de “Condor Tecnologias Não-Letais”. Seria uma referência/homenagem à Operação Condor, de triste lembranças, que operou nos países da América do Sul, sequestrando brasileiros resistentes à ditadura e desaparecendo com os seus corpos? – Vai saber.
A jornalista Denise Assis traz à tona a denúncia de que o arsenal empregado contra as populações nos protestos que ocorreram recentemente no Equador, na Bolívia e no Chile foi fabricado em um endereço de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. “Foram contabilizadas mais de 200 pessoas atingidas pelas ‘balas de borracha’ que perderam a visão de um dos olhos ou dos dois em conflitos recentes no Chile”, lembra a colunista.
Fato é que em matéria-denúncia do repórter do Jornal “La Tercera” Victor Rivero, publicada no Chile há poucos dias, é descrito que todo um estoque de gás lacrimogêneo, gás de pimenta e “balas de borracha” saíram de Nova Iguaçu, para cegar e ferir duas centenas de chilenos, bem como causar danos semelhantes nos demais países citados acima.
Rivero descreve que “segundo dados que a Direção Nacional da Ordem e Segurança dos Carabineros, enviou ao Ministério do Interior até 24 de novembro, em 6.100 eventos violentos – no Chile – se haviam utilizado 161.849 cartuchos de escopeta, 18.032 granadas de mão e 98.223 bombas lacrimogêneas. Depois de 40 dias de manifestações corria um segredo pelos quartéis. Estava se acabando o estoque de gás lacrimogêneo e seria necessário encomendar às pressas uma partida do produto ao Brasil”.
De acordo com Vitor Rivero, “foram adquiridos à Condor S.A. único e CS GL – 203 – T projétil triplo, Brasil, cartuchos CS GL – 203 T de 95mm de comprimento e de 130 a 165m de alcance. E, ainda, cartuchos de 28mm de comprimento e 3cm de largura”.
Na definição da OTAN, “armas não letais são as especificamente projetadas e empregadas para incapacitar temporariamente pessoal ou material, ao mesmo tempo em que minimizam mortes e ferimentos permanentes, danos indesejáveis à propriedade e comprometimento do meio-ambiente”.
Há controvérsias. Foram contabilizadas mais de duzentas pessoas atingidas pelas “balas de borracha” que perderam a visão de um dos olhos ou dos dois em conflitos recentes no Chile, onde essas armas foram fartamente utilizadas pelos carabineros, nos enfrentamentos de rua, conforme a reportagem do jornalista chileno.
A esta altura, talvez fosse interessante destacar que a prática de atirar nos olhos com balas de borracha, destinadas às pernas – apenas para imobilizar e assustar os manifestantes – é atribuída à Polícia de Israel, que poucos meses antes dos conflitos na região, instalou um posto avançado dentro do Consulado de Israel, em São Paulo.
Armas nem tão não-letais assim
O uso do termo “não letal” foi examinado pela mídia local depois que estudos feitos pela Universidad de Valparaíso analisou a composição das bombas de gás atiradas contra a população, bem como a Universidad de Chile fez o mesmo com os cartuchos classificados como “balas de borracha”, disparadas contra os manifestantes.
A equipe que estudou as bombas de gás concluiu que é impossível determinar quais os tipos de componentes químicos são utilizados nelas, tornando difícil a classificação “não letal”.
Sob a orientação do Dr. Aníbal Vivaceta, do quadro da universidade, 12 acadêmicos de Medicina publicaram o resultado de suas pesquisas sob o título: “Informe acerca del uso de gases lacrimógenos por agentes del Estado”, no final de novembro. O objetivo de tal estudo, de acordo com a descrição no documento entregue à imprensa, foi “apresentar um material de revisão geral sobre o assunto, que permita uma melhor abordagem por parte das organizações dos direitos humanos e uma melhor compreensão das implicações no campo judicial”.No laudo fazem a ressalva: “Note-se que encontramos dificuldades significativas na determinação de quais produtos, em quais apresentações, com que dosagem eles estão sendo usados ??no Chile, dadas as dificuldades já mencionadas por aqueles que tentaram acessar os dados de aquisição e distribuição por Carabineros (45). Portanto, assumimos a necessidade de revisar o efeito declarado pela Polícia (CS), sem descartar os de outros agentes. Recentemente, o uso de gás pimenta foi mencionado com frequência, portanto esse tópico foi incluído na análise”.O estudo destacou, ainda, as regras internacionais que normatizam o uso desses artefatos. “A Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção, Armazenamento e Uso de Armas Químicas e sua Destruição é um tratado internacional assinado por 193 estados, incluindo o Chile20 (38). Neste tratado, o uso de gás lacrimogêneo contra as tropas inimigas durante a guerra é proibido, no entanto, seu uso é permitido contra civis em tempos de paz.”Outro ponto destacado foi a proibição de uso em alguns países, por seu risco à saúde humana. “Esses países correspondem à Bélgica, Países Baixos e República Eslovaca, de acordo com o Manual de Operações Transfronteiriças preparado pela Comissão Europeia (39)”.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) registra em seu relatório de 2015:
“Devido às consequências que podem resultar do uso inadequado e abusivo de armas menos letais, é enfatizada a necessidade de elaborar disposições normativas, protocolos e manuais que incluam restrições e proibições (…) em contextos ou na frente de pessoas que possam envolver riscos maiores. Por exemplo, o gás lacrimogêneo não deve ser usado em ambientes fechados ou na frente de pessoas que não possuem uma rota de desconcentração ou evacuação. (Foi o que ocorreu, conforme relatos dos moradores, na comunidade de Paraisópolis, onde nove jovens morreram pisoteados por terem ficado encurralados num beco).Uma das medidas ignoradas onde quer que esses gases e artefatos têm sido utilizados, é a que recomenda: “O uso de armamento menos letal deve ser precedido por avisos formais, que dão às pessoas a oportunidade de evacuar a área sem causar situações de pânico ou debandada, e padrões de atribuição de responsabilidade devem ser construídos para seu uso incorreto ”(40). Um outro estudo foi feito a pedido da Unidade de Trauma Ocular do Hospital El Salvador, do Chile, desta vez desenvolvido na Universidad de Chile, intitulado: “Estúdio de Perdigón Informe Final (UTO)”, e elaborado pelos doutores em engenharia: Patricio Jorquera, e Rodrigo Palma H., do Departamento de Engenharia Mecânica da FCFM.
A análise tinha por objetivo determinar a composição das “balas de borracha” usadas pela Polícia e que vinham provocando traumas severos e um elevado número de casos de cegueira em alarmante proporção. Publicado no dia 15/11/2019, o estudo apresentou os seguintes resultados:
“Ao calcinar uma amostra, a borracha é perdida e apenas os compostos estranhos permanecem, principalmente metais ou cerâmica. Uma amostra é colhida, pesada e calcinada a 600 ° C e as cinzas deixadas no cadinho é pesado e a porcentagem de material que não corresponde à borracha é obtida. O material restante após a calcinação pode ser visto na foto abaixo:
Uma das líderes mundiais de exportação de “artefatos não-letais”, como o seu produto é denominado, a Condor S.A. atua no ramo há 25 anos, exporta para mais de 60 países e tem no seu portal institucional informações tais como: “Situada no Rio de Janeiro, no município de Nova Iguaçu, a Condor Tecnologias Não-Letais está instalada em uma área de aproximadamente um milhão de metros quadrados nas vizinhanças da reserva biológica do Tinguá, maior reserva de Mata Atlântica do Estado do Rio de Janeiro”. (Ela alardeia no seu texto institucional o caráter preservacionista, destinando 70% da área total para a preservação da mata nativa. A conferir).
Entre os produtos fabricados pela Condor, estão as armas elétricas (usadas pela Guarda Municipal do Rio), granadas de efeito moral, luz e som, bombas de gás lacrimogêneo, lançadores e munições de borracha patenteada nos Estados Unidos e considerada a bala mais precisa do mundo.
O proprietário
O proprietário da Condor S.A é Carlos Erane de Aguiar, o diretor do setor de Defesa da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). No início deste ano, (abril), Erane lançou um livro com o pomposo título: “Uma experiência em tecnologia não letais no Brasil – O Valor da Vida”.
Em uma das matérias anunciando o lançamento, ele conta os esforços que empreendeu para divulgar a Doutrina do Uso Proporcional da Força. “As pessoas sempre estranharam porque, em vez de oferecer armas, eu sempre apostei nos livros, na inteligência. A repercussão de episódios como o Massacre do Carandiru, em 1992, e Eldorado dos Carajás, em 1996, foram decisivos para convencer autoridades brasileiras para a necessidade de conter situações de conflito sem a perda de vidas humanas”.
O mesmo texto ressalta também que “o Valor da Vida fala ainda do emprego de armas não letais pelo Exército brasileiro na Missão de Paz do Haiti e narra, de maneira divertida, a aventura da primeira grande exportação da Condor para a Argélia, em 2001” (o que pode haver de divertido em exportar armas para reprimir povos? É forçoso perguntar).
Em 2018, Carlos Erane de Aguiar homenageou o general Walter Souza Braga Neto, chefe do Estado-Maior do Exército, na Firjan, com a maior medalha concedida pelo Sindicato Nacional das Indústrias de Materiais de Defesa, como personalidade do ano, por seu trabalho na intervenção do Rio.
Nunca é demais lembrar que a intervenção rendeu algumas manifestações, onde os produtos da fábrica de Carlos Erane rasgaram o céu carioca e foram parar no meio dos grupos que protestavam contra a presença das tropas do general. Não faltou gás lacrimogêneo, balas de borracha e gás de pimenta na intervenção comandada pelo homenageado. Um negócio e tanto.
*Por Denise Asis, para o Jornalistas pela Democracia/Desacato
*Foto destaque: O Globo