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O ataque à Venezuela é um ataque ao Brasil

Venezuela sob ataque, Brasil sob ameaça: a escalada de Trump no Caribe é um risco para toda a região

perspectiva de uma desestabilização da Venezuela, já concretamente posta no horizonte pelo ensaio de bloqueio naval que o governo Donald Trump impõe ao país, com navios de guerra e submarinos nas proximidades da costa venezuelana, além de milhares de soldados de prontidão, não é uma questão que diz respeito só à natureza do regime venezuelano, nem unicamente ao futuro dos venezuelanos – ela diz respeito ao futuro de toda a região, e assim deveria ser tratada pelos líderes latino-americanos.

As ações criminosas do governo norte-americano, que até aqui mataram quase uma centena de pessoas no Mar do Caribe, já têm impacto regional, na medida em que servem de ameaça e intimidação não só contra a Venezuela, mas contra todos os países da região, incluindo o Brasil. A atual campanha de desestabilização contra o país se sustenta em dois vetores retóricos: por um lado, a mentirosa tese de que o país seria um “narcoestado”; por outro, o de que seria uma ditadura.

Como demonstram diversos relatórios, inclusive da ONU e do próprio Departamento de Estado dos EUA, a Venezuela não só não é um corredor relevante do narcotráfico – a principal rota de tráfico para os EUA passa pelo Pacífico, não pelo Caribe – como também conseguiu, nos últimos quinze anos, se consolidar como um território livre do cultivo de folha de coca, maconha e processamento de cocaína.

Por outro lado, o uso do manto da “guerra contra as drogas” para encobrir ações militares criminosas e unilaterais por parte dos EUA deveria preocupar os brasileiros: ao contrário de nosso vizinho, o Brasil é uma das principais rotas de tráfico de drogas da América do Sul para a Europa, África e Ásia, e suas organizações criminosas, como o PCC e o CV, têm relações importantes com cartéis internacionais que operam ao menos parcialmente nos EUA.

De fato, cresce a pressão por parte dos EUA para que o Brasil classifique suas organizações criminosas como organizações terroristas, e há um projeto de lei (PL 1283/2025) no Congresso para expandir a conceituação de “terrorismo” na lei brasileira, incluindo nela a atuação de organizações criminosas e milícias privadas – o que ampliaria o espaço para o intervencionismo norte-americano em nosso país. Se a Venezuela, um país de pouca relevância no narcotráfico global, pode ser atacada sob a desculpa do combate ao narcotráfico, por que não poderia também o Brasil, que tem organizações criminosas muito mais relevantes a nível global que seu vizinho?

Além disso, os últimos meses demonstraram aos brasileiros, de forma inédita desde o golpe de 1964, tanto como o imperialismo utiliza a “democracia” para seus impulsos intervencionistas como o quanto a extrema-direita está disposta a aliar-se objetivamente aos interesses imperialistas nas suas disputas pelo poder interno – mesmo quando isso signifique tomar postura abertamente antinacional. Nesse sentido, sim, descobrimos que o Brasil “se tornou uma Venezuela” – não pela natureza do governo, mas pela natureza de sua oposição.

A atuação bolsonarista nos Estados Unidos por sanções e tarifas contra o Brasil e a adoção dessas medidas pelo governo norte-americano, buscando pressionar o governo brasileiro e o STF, foram uma constante por parte da oposição venezuelana nos últimos anos. Assim como os bolsonaristas atuaram nos últimos meses, junto ao governo Trump, pela aplicação de tarifas contra o Brasil, também fez a Assembleia Nacional opositora na Venezuela em 2016: em 23 de outubro daquele ano, declarando-se “em rebelião” contra o governo, o Poder Legislativo do país oficialmente fez um pedido a todos os organismos internacionais para que aplicassem sanções contra o próprio país.

É como se a infame campanha por tarifas contra o Brasil por parte de Eduardo Bolsonaro nos EUA não fosse uma campanha de um deputado, mas do Congresso brasileiro inteiro. Nunca é demais recordar que os efeitos das sanções não são focalizados nos líderes que elas em tese buscam atingir: um estudo da respeitada revista acadêmica The Lancet calculou em 38 milhões o número de mortos por sanções norte-americanas e europeias entre 1970 e 2021; também publicado na The Lancet, um outro estudo aponta que as sanções matam aproximadamente 564 mil pessoas por ano no mundo todo; e na Venezuela, somente entre 2017 e 2018, elas podem ter matado 40 mil pessoas. É dizer: Venezuela e Brasil têm em comum o fato de se enfrentarem com uma extrema-direita disposta a aliar-se ao imperialismo para matar seu povo.

Chama à atenção também como a crise de poderes na Venezuela em 2016, com a disputa entre Executivo, Judiciário e a Assembleia Nacional, é semelhante à recente crise de poderes no Brasil em torno do tema da anistia: como escrevia Monica Yanakiew então, “a nova Assembleia Nacional, de maioria opositora, aprovou uma lei de anistia e reconciliação nacional para libertar mais de 100 de seus líderes acusados de conspirar contra o governo ou incentivar a violência.

Maduro não só vetou a lei, como afirmou que o Parlamento carece de legitimidade porque desacatou uma ordem do Supremo Tribunal. O conflito de Poderes se deu quando três deputados oposicionistas, cuja eleição foi questionada pela Justiça, tomaram posse – apesar de a Justiça ter decidido o contrário. A oposição acusa o Judiciário de estar a serviço de Maduro e considera que a suspensão do referendo revogatório foi uma manobra para adiar a sua realização.” Hoje, os Estados Unidos, citando “preocupações com a democracia e a liberdade”, impõem tarifas ao Brasil, em conluio com a extrema-direita nativa, que as solicita. Se Trump pode movimentar navios de guerra e autorizar operações da CIA contra a Venezuela sob a fachada da defesa da democracia, porque não poderia fazê-lo também contra o Brasil? Mais importante do que dizer que os EUA mentem, seja sob a desculpa de “combater o narcotráfico e o terrorismo”, seja sob a fachada da defesa da democracia, é reconhecer que podem mentir sobre qualquer um.

Mas há mais razões pelas quais um ataque de Trump contra a Venezuela afetaria o Brasil. Qualquer ação militar contra a Venezuela imediatamente tensionaria os 2,2 mil km de fronteiras de nossos países, nos estados de Roraima e Amazonas – para que se tenha dimensão, trata-se de uma fronteira maior que a que separa Rússia e Ucrânia, de 1,9 mil km. A possibilidade de eventuais combates na proximidade das fronteiras dos países e especialmente o quase certo aumento do fluxo migratório obrigariam um reforço da presença militar brasileira na região – imaginar uma eventual operação de Garantia da Lei e da Ordem em tal cenário, e um fortalecimento da tutela dos militares frente ao governo, sempre auxiliada pelo atual ministro da Defesa, José Múcio, não é absurdo.

Na medida em que a guerra se instaurasse no país vizinho e a importância e peso das Forças Armadas aumentasse repentinamente na cena política brasileira, estaria desfeito todo o esforço do governo Lula, desde que tomou posse, para cozinhar a questão militar em banho-maria; ao mesmo tempo, o fato de não ter avançado nenhuma reforma relevante nas Forças Armadas restringiria, neste cenário, as opções estratégicas do próprio governo quanto a como atuar frente à agressão americana. Ou por acaso é lícito supor que os militares brasileiros aceitariam tranquilamente, por exemplo, reforçar as linhas logísticas de uma Venezuela sob ataque norte-americano, se esta fosse a decisão do presidente?

É provável ainda que uma agressão à Venezuela levasse a um cenário de guerra prolongada ou de guerra civil no país, tornando a necessidade de reforçar a presença militar do lado brasileiro mais perene.

O elemento mais importante da Defesa venezuelana do ponto de vista estratégico é a Milícia Nacional Bolivariana (MNB), braço de reserva e não-convencional integrado aos outros componentes da Força Armada Nacional Bolivariana, mas relativamente autônomo. Formada por voluntários, reservistas e civis, a MNB é voltada para o combate irregular num cenário de agressão ao país; é o componente responsável por tornar cada cidadão um possível combatente.

Como escreveu Euclides Vasconcelos nesta Revista Opera, “são grupos pequenos e destinados a funções concentradas, como a defesa de uma fábrica ou estrada de importância estratégica ou ainda, se necessário for, a destruição desta mesma fábrica ou estrada para evitar que caiam em mãos inimigas. Esse caráter concentrado equivale à noção de ‘vespeiro’ onde a população em armas é a responsável por importunar as forças inimigas onde quer que elas estejam. Assim, mesmo que as forças armadas do país sejam derrotadas, o processo de ocupação inimiga será por demais custoso.”

Em agosto, o presidente venezuelano Nicolás Maduro anunciou a mobilização de 4,5 milhões de tropas na MNB. O site venezuelano TalCual estimou o contingente em 700 mil; a CIA, entre 200 e 225 mil. Independentemente de qual seja a cifra real, estamos falando de centenas de milhares de venezuelanos comuns, dispostos e com preparo prévio para atuar no apoio às forças convencionais, como forças guerrilheiras ou clandestinamente em ações de sabotagem, assassinatos, atentados, etc.:

Significa dizer que qualquer um que busque ocupar militarmente o terreno venezuelano haverá de supor que sua retaguarda virtualmente está sempre prejudicada; que o inimigo pode ser qualquer um; o taxista, a aposentada, a camponesa, o indígena. Em resumo, a Milícia Nacional Bolivariana é quase uma garantia de que uma agressão em terra seria confrontada por uma guerra irregular de caráter prolongado. E mesmo que alcançasse o objetivo de implodir rapidamente o centro de poder do país, a perspectiva de uma guerra civil, possivelmente envolvendo grupos militares diversos, não seria tampouco descartável.

A probabilidade da instauração de um desses cenários impõe, a partir do campo militar, um provável esgotamento dos objetivos políticos de uma agressão à Venezuela – isto é, a exploração de suas reservas de petróleo, as maiores do mundo, estimadas em cerca de 303 bilhões de barris –, na medida em que a estabilidade da produção e especialmente do escoamento da commodity estaria ameaçada. O Cinturão de Orinoco, onde o grosso da reserva de petróleo venezuelano está localizada, cobre uma área de 55 mil quilômetros quadrados, se estendendo por quatro estados venezuelanos, com uma área produtiva disposta em 11,5 mil quilômetros quadrados. Por sua vez, a menor distância entre o campo e a costa caribenha em linha reta se estende por cerca de 140-160 quilômetros, oferecendo amplas oportunidades para ações de sabotagem.

Mapa do Norte da Venezuela, mostrando a Faixa Petrolífera do Orinoco (em vermelho) e suas quatro principais áreas: Machete, Zuata, Hamaca e Cerro Negro. (Fonte: Definition of a 3D Integrated Geological Model in a Complex and Extensive Heavy Oil Field, Oficina Formation, Faja de Orinoco, Venezuela – Jean-Paul Bellorini, Jhonny E. Casas, Patrick Gilly, Philippe Jannes, Paul Matthews, David Soubeyrand e Juan Carlos Ustariz)

Mapa do Norte da Venezuela, mostrando a Faixa Petrolífera do Orinoco (em vermelho) e suas quatro principais áreas: Machete, Zuata, Hamaca e Cerro Negro. (Fonte: Definition of a 3D Integrated Geological Model in a Complex and Extensive Heavy Oil Field, Oficina Formation, Faja de Orinoco, Venezuela – Jean-Paul Bellorini, Jhonny E. Casas, Patrick Gilly, Philippe Jannes, Paul Matthews, David Soubeyrand e Juan Carlos Ustariz)

O Brasil como mediador
Não parece casuístico que a “química” entre Trump e Lula tenha surgido no mesmo momento em que as operações norte-americanas no Caribe avançavam, nem que Trump tenha reduzido as tarifas contra o Brasil ao mesmo tempo em que desloca o maior porta-aviões do mundo para o Caribe: a irresistível “química” parece ter outro nome; Venezuela. O ataque tarifário ao Brasil e o ensaio de cerco naval à Venezuela se coadunam em dois sentidos: num deles, os ataques ao vizinho relembram ao Brasil tarifado até onde os EUA podem ir, estimulando que o governo Lula se disponha à negociação; no outro, as tarifas servem de alavanca para que o Brasil adote uma postura mais amigável a Washington na questão venezuelana, com a retirada das tarifas servindo como estímulo.

Durante os governos Bush (2001-2009) e os dois primeiros mandatos de Lula (2002-2010), o Brasil se posicionou como um mediador nas relações entre EUA e Venezuela, buscando – e em boa medida conseguindo – restringir as tensões entre os países. Efetivamente, a diplomacia brasileira usava as posições antiimperialistas venezuelanas e seu ensejo integracionista, que avançava na forma de parceria com países latino-americanos, especialmente no Caribe e na América Central, como forma de se credenciar com os EUA como um parceiro alternativo na região – o que incluiu algum nível de coordenação do Brasil com os EUA sobre a Venezuela, com o Brasil atuando por vezes como garoto de recados de Washington. Lula manteve boas relações comerciais e diplomáticas com Chávez, mas buscou também se diferenciar e superar a influência do líder bolivariano na região, e houve episódios de tensão entre os países: como nas críticas venezuelanas às parcerias Brasil-EUA em torno do etanol e a convocação do embaixador venezuelano após Chávez criticar o Congresso brasileiro.

Hoje, o espaço para a mediação é muito menor. Não só pelas “tensões” já envolverem ações militares e a promessa de uma intervenção direta, mas também porque o Brasil, no terceiro mandato de Lula, vem fustigando a Venezuela com recorrência, como se viu na posição adotada pelo governo após as eleições venezuelanas e no veto à entrada do país no BRICS. Assim, qualquer mediação brasileira deverá ser vista pela Venezuela com um pé atrás, e com razão: o Brasil adotou tais posições, afinal, sem as pressões de Trump; que estaria disposto a fazer sob elas?

Ao fim, seja qual forma ele termine por tomar, o ataque à Venezuela é um ataque ao Brasil, não só na medida em que é uma demonstração do que o império poderia fazer contra nós, mas também na medida em que nos influencia direta e gravemente – inclusive com efeitos na cena política interna do Brasil.

O governo Lula até pode buscar agir como mediador, mas mesmo isso exige tomar uma postura clara de solidariedade prática com a Venezuela – o país agredido unilateralmente por Trump, não o agressor – e contra o intervencionismo que, afinal, também atinge o Brasil. Qualquer afabilidade com uma agressão imperialista a qualquer país da região, além de ser vista como a traição que efetivamente seria por todos os outros países, na prática estimulará o intervencionismo trumpista também contra o Brasil, quando o momento lhe convir.

*Pedro Marin/Opera Mundi


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