Em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera nesta quarta-feira (21), o presidente Lula (PT) ressaltou a participação de Jair Bolsonaro (PL) na instalação de um clima golpista no Brasil, culminando na tentativa real de golpe de estado em 8 de janeiro deste ano, com os atentados às sedes dos Três Poderes por bolsonaristas, em Brasília.
O presidente da República disse que “quem planta vento, colhe tempestade” e, no caso, Bolsonaro plantou “ódio” ao discursar contra a democracia e as instituições. “Nunca ninguém no Brasil usou o estado de forma tão desavergonhada para tentar se eleger, distribuindo empréstimos para quem não poderia pagar, criando auxílios para taxistas que chegaram até a quem não tinha carteira de motorista. E depois das eleições seus seguidores pediram um golpe militar. Absurdo. Agora ele responde na Justiça. Espero que ele tenha a presunção da inocência, direito de defesa e um julgamento justo”, declarou.
Abaixo, a entrevista na íntegra:
O senhor se propôs como mediador entre a Rússia e a Ucrânia. Acha que o senhor e o Papa Francisco têm visões semelhantes?
Presidente Lula — Em 2020, quando o encontrei, conversamos sobre a desigualdade no mundo, a busca de uma economia mais solidária. Logo depois veio a pandemia e a campanha eleitoral no Brasil. Agora encontro o Papa com esse conflito na Europa. Mandei um enviado especial, Celso Amorim, para Moscou e Kiev. Os dois países acreditam que podem vencer o conflito militarmente: eu discordo disso. Acho que tem pouca gente falando de paz. A minha angústia é que com tanta gente passando fome no mundo, com tantas crianças sem ter o que comer, ao invés de cuidar de resolver as desigualdades, estamos cuidando de guerra. É urgente que a Rússia e a Ucrânia encontrem o caminho da paz.
Meloni o criticou por não ter extraditado Cesare Battisti e não enviou nenhum representante para sua posse em janeiro.
Presidente Lula — Espero conhecê-la melhor hoje e que os encontros que faremos reforcem a relação entre nossos países, que sempre foi tão forte. Somos o segundo país com mais italianos e descendentes do mundo, atrás apenas da própria Itália. Temos 30 milhões de descendentes italianos no país. Eu tenho uma relação excelente com o movimento sindical daqui, com os intelectuais, as empresas. E certamente teremos uma relação muito produtiva com as autoridades italianas, porque a relação econômica entre os dois países está aquém do seu potencial e precisamos trabalhar muito para ter uma relação bilateral à altura do tamanho das nossas economias.
O senhor também vai se encontrar com Elly Schlein. Acha que é mais difícil para as mulheres governar?
Presidente Lula — Será uma satisfação conhecê-la. Ainda há muito machismo na política. Meu partido é presidido por uma mulher, a deputada Gleisi Hoffmann, e tenho orgulho de ter apoiado Dilma Rousseff, a primeira presidenta brasileira. O golpe que ela sofreu em 2016 teve também um forte componente machista. O Bolsa Família dá o dinheiro para a mulher, não para o homem. E os títulos das casas dos nossos programas de moradia também vão para as mães. As mulheres são, em geral, mais responsáveis. Com mais mulheres governando teríamos menos guerras e mais atenção ao social.
O senhor acha que Bolsonaro tem responsabilidades semelhantes às de Trump pelos eventos em Brasília? Ele será julgado por abuso de poder.
Presidente Lula — Temos uma expressão que diz “quem planta vento, colhe tempestade”. O meu antecessor nem vento plantou, plantou ódio. Discursava contra a democracia, contra as instituições. Nunca ninguém no Brasil usou o estado de forma tão desavergonhada para tentar se eleger, distribuindo empréstimos para quem não poderia pagar, criando auxílios para taxistas que chegaram até a quem não tinha carteira de motorista. E depois das eleições seus seguidores pediram um golpe militar. Absurdo. Agora ele responde na Justiça. Espero que ele tenha a presunção da inocência, direito de defesa e um julgamento justo.
O senhor tem um bom relacionamento com Xi Jinping e com a China, que é seu principal parceiro comercial, mesmo que continue sendo um país não-democrático.
Presidente Lula — O Brasil é um país que não tem contencioso com nenhum país do mundo e temos uma excelente relação com a China, que nas últimas décadas tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza e contribuiu muito para a economia mundial. Meu diálogo com a China tem sido sempre muito positivo e na direção de uma maior paz, harmonia, crescimento do comércio e da cooperação no mundo. A China é tão importante que até a Itália já aderiu à Iniciativa da nova Rota da Seda, à qual o Brasil não aderiu ainda.
No dia 22 de agosto, na África do Sul, haverá uma cúpula do BRICS. É um passo à frente para um mundo multipolar?
Presidente Lula — A cúpula do BRICS é importante para todos. Essa coalizão de economias emergentes mostrou a importância de acrescentar vozes diversas à discussão das questões globais. Acreditamos que um mundo multipolar seja melhor do que uma supremacia unipolar ou uma disputa bipolar. A criação de diferentes redes, diferentes arranjos de países, pode ajudar a equilibrar e contrabalançar as tendências e as tensões conflitantes. Por exemplo, o Conselho de Segurança da ONU é uma estrutura a reformar. Ele representa o equilíbrio de poder do mundo em 1945. Quase 80 anos depois, muita coisa mudou e precisamos de um Conselho mais amplo, mais representativo, com vozes da América Latina e da África, para que realmente contribua para a paz e a segurança no mundo.
A Amazônia é um ponto crucial da sua política. Como pretende conciliar o crescimento econômico da região com a proteção da floresta?
Presidente Lula — A preocupação internacional com a Amazônia aumentou durante o último governo, que negava a mudança do clima e incentivava abertamente os crimes ambientais. Retomamos o combate ao desmatamento, com a meta de zerá-lo até 2030 e estamos também enfrentando o garimpo ilegal e outras atividades criminosas que destroem o meio ambiente na região. Expulsamos mais de 20 mil garimpeiros ilegais das terras indígenas Yanomami. Ao mesmo tempo, queremos falar de uma nova visão de desenvolvimento sustentável para a região, que abriga 25 milhões de brasileiros. Investimos em pesquisa científica, indústrias limpas, turismo, para fazer a floresta valer mais para quem mora lá, pelo seu papel ambiental, e por seus produtos. As pessoas que vivem na região precisam de renda, trabalho, proteção social, saúde e educação, justamente para serem os maiores protetores da Amazônia. É por isso que, dia 8 de julho, encontrarei o presidente colombiano Petros, em Letícia, na fronteira dos nossos países. E em agosto sediaremos Cúpula da Amazônia, e a COP30 em 2025.
A Itália é o segundo parceiro comercial do Brasil na Europa, depois da Alemanha. Há projetos em desenvolvimento?
Presidente Lula — O Brasil e a Itália têm uma longa história de parceria tanto no comércio quanto nos investimentos. Temos cerca de 1.400 empresas italianas no Brasil e mais de 20 grandes empresas brasileiras na Itália. Hoje também estamos nos concentrando em energia renovável. 87% da nossa eletricidade vem de fontes renováveis, bem acima da média mundial de 28%. Em outras palavras, a atividade industrial no Brasil emite pouco carbono. Queremos ampliar a produção de energia solar e eólica, o potencial do Nordeste brasileiro é enorme. Podemos ser um grande produtor de hidrogênio verde, com capacidade de apoiar o mundo na transição energética.
*Com 247
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