Categorias
Mundo

A batalha das pessoas trans contra falácias da ultradireita

Comunidade trans na Alemanha enfrenta cada vez mais desinformação promovida pela ultradireita, que usa o tema para alimentar divisões; Bola da vez é um projeto de lei que facilitaria a mudança legal de gênero.

O projeto da Lei de Autodeterminação de Gênero foi inicialmente anunciado como uma peça importante da legislação progressista da coalizão do governo federal alemão, formada por sociais-democratas, verdes e liberais. “Queremos somente facilitar um pouco a vida de um pequeno grupo para o qual isso tem grande importância”, disse o ministro da Justiça alemão, Marco Buschmann, à emissora pública alemã ZDF.

Mas o texto, que tornaria mais fácil para pessoas transgênero, intersexuais e não binárias mudarem legalmente de gênero, provocou debates acalorados na Alemanha, alimentados por discursos de ódio e desinformação de radicais de direita e de grupos conservadores que buscam aproveitar a questão para promover suas próprias agendas.

“Não há dinheiro para aposentados, escolas e linhas de trem sob a coalizão governamental, mas o governo agora quer introduzir centros de aconselhamento sobre identidade de gênero em todo o país para todos aqueles que não sabem se são homens ou mulheres”, disse a vice-líder do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD), Beatrix von Storch, no Parlamento alemão em novembro passado.

Esses ataques são uma “decisão estratégica consciente” da ultradireita, diz Sascha Krahnke (nome fictício), especialista em transfobia e extrema direita da Fundação Amadeu Antonio em Berlim, que faz campanhas contra a ultradireita, racismo e antissemitismo.

Krahnke diz que os atores da ultradireita na Alemanha estão olhando para o exterior, especialmente para as guerras culturais dos EUA, em busca de novas narrativas de desinformação para usar contra as pessoas trans, como parte de uma estratégia mais ampla para mobilizar os eleitores em apoio à sua agenda autoritária e nacionalista. “Não é nada novo. Já tivemos isso em resposta ao movimento pelos direitos dos homossexuais”, disse Krahnke à DW.

“Todos esses são mecanismos que sempre funcionaram em grupos e comunidades específicos, e você pode ver que eles são fundamentais para mobilizar as pessoas, criar medo e politizar questões sem que elas realmente digam respeito a esses grupos.”

Desinformação para criar divisão

O Southern Poverty Law Center, um grupo de defesa jurídica sem fins lucrativos dos EUA, relatou que os palestrantes de uma cúpula organizada pelo lobby evangélico de direita Family Research Council em 2017 falaram abertamente sobre sua estratégia para enfraquecer os grupos que lutam pelos direitos dos transgêneros, separando-os de aliados tradicionais como, por exemplo, feministas, usando uma “retórica progressista” na qual os direitos dos transgêneros eram descritos como “antifeministas, hostis às minorias e até mesmo desrespeitosos com os indivíduos LGB”.

Krahnke diz que isso também está acontecendo na Alemanha. “Alcançamos um certo nível de emancipação com o casamento para todos e a vida de gays e lésbicas em geral, essas questões não radicalizam mais, então agora [a ultradireita] tem que atacar uma comunidade ainda menor, onde a solidariedade pode ser quebrada mais facilmente”, disse Krahnke.

“Em última análise, a ideia é: ‘se você lhes der mais direitos, será às custas daqueles que já lutaram por seus direitos, por exemplo, mulheres e pessoas sujeitas ao racismo’.”

Uma análise realizada pelo Observatório Europeu de Mídia Digital (Edmo) em 2023 constatou que a desinformação direcionada à comunidade LGBTQ+ é uma das “mais presentes e consistentes na União Europeia”.

Um briefing recente para o Parlamento Europeu também alertou que as pessoas LGBTQ+ na UE estavam sendo escolhidas como alvos de desinformação por agentes estrangeiros – principalmente o governo russo – como um meio de semear atrito e desunião entre os países-membros da UE. O problema está piorando, de acordo com Krahnke, à medida que o discurso de ódio e as narrativas de desinformação nas mídias sociais chegam à imprensa convencional.

Narrativas antitrans na ideologia da ultradireita

Uma pesquisa do Else Frenkel Brunswik Institute (EFBI), que monitora atitudes antidemocráticas, e da Fundação Amadeu Antonio analisou canais e grupos de Telegram de ultradireita no estado da Saxônia, no leste da Alemanha. Descobriu-se que os debates sobre a Lei de Autodeterminação de Gênero “caracterizados pela hostilidade queer e trans” ganharam impulso nos grupos e canais do Telegram depois que os planos para o projeto de lei foram anunciados em junho de 2022.

As pessoas trans eram descritas em grupos de bate-papo como “seres híbridos”, “doentes”, “degenerados”, revelando, segundo os autores do estudo, “anseios neonazistas e racistas por um corpo humano puro, (sexualmente) sem ambiguidade e saudável”. A ideia de “seres híbridos” também é uma expressão da propaganda antissemita.

A AfD na Saxônia tem mais de 30% das intenções de voto e é considerada um dos diretórios estaduais mais radicais do partido, e vem sendo monitorada desde 2021 pelo Departamento de Proteção da Constituição (BfV), o serviço de inteligência interna alemão, por suspeita de ser uma ameaça extremista ao Estado democrático de direito.

O BfV afirma que a misantropia LGBTQ+ é um componente fundamental da ideologia e agitação da ultradireita, com sua rejeição de entendimentos modernos de modelos de gênero e família em favor de uma visão de mundo “caracterizada por racismo e nacionalismo”.

“Afirma-se que as pessoas trans são uma ameaça não só para mulheres e crianças, mas também para a sociedade como um todo. Grupos radicais de direita podem agir como protetores nesse contexto”, disse à DW Gabriel Nox Koenig, porta-voz da Federação Trans* na Alemanha (Bundesverband Trans*).

As questões de gênero são repetidamente abordadas por grupos de extrema direita porque repercutem no centro político, diz Koenig. “Isso influencia os termos do debate: atualmente estamos discutindo se as pessoas trans têm direitos humanos, e não como esses direitos podem ser implementados”, disse Koenig.

Temores de reversão no progresso contra discriminação

Os debates sobre a Lei de Autodeterminação de Gênero continuam a se arrastar na Alemanha, onde grupos de direitos trans expressaram preocupação de que a lei possa fornecer a base para a exclusão legal de pessoas trans de várias partes da vida pública.

O ministro alemão da Justiça, Marco Buschmann, disse ao jornal Die Zeit no início do ano passado que a votação da lei havia sido adiada devido a preocupações com as consequências legais da mudança de gênero, citando o exemplo de como visitantes de uma sauna feminina poderiam se sentir incomodadas com a presença de uma mulher trans.

O número de crimes antiqueer e antitrans relatados na área de “identidade de gênero/sexual” aumentou de 340 em 2021 para 417 (classificados sob a recém-introduzida rubrica “diversidade de gênero”) em 2022, de acordo com dados do Ministério do Interior alemão. Como muitas pessoas trans e não binárias não relatam esses incidentes às autoridades estaduais por medo de discriminação, a Federação Trans* na Alemanha estima que os números reais sejam muito maiores.

Num momento em que a AfD é o segundo partido mais popular no país, Gabriel Nox Koenig é claro sobre as implicações não apenas para pessoas trans e não binárias, mas também para outros grupos marginalizados. “Todo o progresso que foi duramente conquistado contra formas de discriminação como sexismo, homofobia, transfobia ou racismo nas últimas décadas seria revertido pela AfD. A situação de todos os grupos que são discriminados se deterioraria significativamente”, disse Koenig.

*Opera Mundi

Categorias
Uncategorized

Dados de emprego do Caged comprovam falácia do discurso de Guedes em Davos

Na Suíça, governo abre mão de ferramentas para impulsionar economia forte e sustentável enquanto mercado só da conta de criar empregos de baixa renda.

Na última sexta-feira (22), o Ministério da Economia divulgou os números de 2019 do Caged, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados. O governo e a imprensa tradicional comemoraram o resultado de criação de 644 mil novas vagas no mercado de trabalho, o melhor desempenho em seis anos. O que pouca gente destacou foi que não houve saldo positivo de crescimento em postos de trabalho com rendimento acima de 2 salários mínimos. Ou seja, seguimos fechando mais empregos de maior renda e qualidade e gerando, lentamente, empregos de baixa remuneração. Deste total, cerca de 106 mil postos foram nas chamadas modalidades de contrato intermitente, estabelecida pela Reforma Trabalhista de Michel Temer, ou parcial/por período determinado, no setor de serviços e comércio.

No mesmo dia, o ministro Paulo Guedes voltava de sua viagem ao Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, onde anunciou a adesão do Brasil ao Acordo sobre Compras Governamentais (GPA), da Organização Mundial do Comércio (OMC). Pelo GPA, os países signatários ficam obrigados a tratar empresas nacionais e estrangeiras com isonomia para aquisição de bens, serviços e obras. Qualquer medida de proteção às empresas nacionais deixa de ser permitida. Aos jornalistas, Guedes declarou que a adesão ao acordo permitirá ao Brasil “receber maiores fluxos de investimentos e se integrar às cadeias globais de negócios”. Na avaliação de economistas ouvidos pela CARTA MAIOR, a medida pode aprofundar os problemas registrados nos números do Caged.

“Trata-se de um processo de abertura que vai ajudar a liquidar as empresas brasileiras em nome de trazer pra cá empreiteiras estrangeiras. Nenhum país grande faz isso; ninguém abre mão do poder de Estado no desenvolvimento nacional para contratar empresas de fora. Primeiro as suas”, lembrou o economista Sérgio Mendonça, que foi Secretário Nacional de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento e Supervisor Técnico do Dieese e hoje coordena o projeto Reconta Aí (https://recontaai.com.br/). “Mas essa equipe é contra qualquer estratégia de desenvolvimento industrial a partir da ação do Estado. Acham que temos que abrir a economia e, com o choque de fora, vamos nos redimir de problemas de corrupção nas empreiteiras, como se não houvesse corrupção em empresas como a Alstom e a Halliburton. É uma visão darwinista e que acredita que o de fora é melhor do que o dentro. É o contrário. E isso vai nos destruir”, alerta.

Para a professora de Economia da Universidade de Brasília, Maria de Lourdes Rollemberg Mollo, quaisquer melhoras para o setor que possam vir de acordos internacionais não podem eliminar o cuidado e atenção com a demanda interna, porque é ela que afeta e beneficia a população brasileira. “Quando você faz um acordo de liberalização de compras governamentais, cria demanda lá fora e agrada o mercado externo em vez de criar aqui dentro e de estruturar um desenvolvimento menos excludente. Temos que aproveitar todas as oportunidades, mas isso não pode se dar à revelia de uma política econômica de desenvolvimento sustentável a partir da demanda interna. E o que importa é o desenvolvimento econômico atrelado ao social. Não só uma questão de números”, afirma.

A urgência da retomada de uma política econômica sustentável no médio e longo prazo é mostrada justamente pelos números divulgados pelo Caged. Em 2018, o trabalho intermitente respondia por 10% dos postos, agora subiu para 13%, e quem consegue voltar a ter carteira assinada passa a ganhar, em média, 10% a menos do que antes da demissão. Ao mesmo tempo, a indústria, responsável por vagas mais qualificadas, segue perdendo espaço no Produto Interno Bruto (PIB). Caiu de 28,5% em 2005 para 21,2% em 2018. Na prática, quem tem pouca qualificação migra pra informalidade e quem tem se vê obrigado a passar ao trabalho autônomo, como microempreendedores individuais (MEI) ou prestadores de serviço como motoristas de Uber – que em Davos se reuniu com o ministro para dizer que quer ampliar suas operações no país. O resultado comprovado é a queda da renda e, consequentemente, da demanda, o que, em médio prazo, impede a economia de decolar.

“A visão conservadora da equipe de Paulo Guedes é a de que a oferta é o que determina as condições de demanda e o crescimento da economia. Mas no capitalismo ninguém produz se não houver perspectiva de lucro, algo que depende da demanda. E todas as medidas do governo vão no sentido de reduzir a demanda, e não de aumentá-la”, explica Maria de Lourdes Mollo.

A economista enumera, em primeiro lugar, a Reforma Trabalhista, que precarizou o trabalho e derrubou a renda. Depois, a Reforma da Previdência, que vai ser responsável por uma pauperização enorme da população brasileira. Depois as mudanças nas regras de reajuste do salário mínimo, que não vai subir mais de acordo com o PIB. E a indústria brasileira, que está sendo destruída sem que tenha alcançado um patamar sustentável.

“Isso tudo resulta num mercado de trabalho que não está conseguindo absorver os empregos que tinha pouco tempo atrás nem gerar novos, diante dessas reduções de demanda. O governo tenta aumentar a demanda com a liberação do fundo de garantia. Mas isso dá impacto na hora e depois não se sustenta. O que sustentaria seria um crescimento de mais de 4%, para reincorporar as pessoas cujos empregos foram perdidos em condições melhores. E isso não virá com a política de austeridade, que reduz a capacidade do Estado, que é alta, de gerar demanda. É uma concepção que entrega as ferramentas do governo para implementar uma política econômica mais forte”, acrescenta, relacionando com a entrada do país no GPA.

Crescimento com desigualdade

Outro risco da política do governo Bolsonaro propagada em Davos é a de um crescimento que, além de baixo, pode trazer maior concentração de renda. Guedes destacou, em sua passagem pela Suíça, a reunião com o ministro britânico Sajid Javid e a construção de um possível acordo de livre comércio com o Reino Unido, após a saída do país da União Europeia. Guedes falou também de um possível acordo comercial com a Coreia do Sul, numa volta ao modelo bilateral de negociações estrangeiras.

“ A lógica de Guedes é anti-multilateral. É de se submeter ao que o império manda e ao que os interesses bilaterais determinam. É uma lógica colonial, em vez de fortalecer emergentes e economias em desenvolvimento que tem características um pouco semelhantes às nossas, como pobreza, desigualdade e concentração de renda. Questões estruturais não se resolvem com quem quer tirar vantagem de acordos unilaterais feitos com você. São acordos lesivos, que não vão potencializar o desenvolvimento econômico social porque são baseados na lógica do crescimento com concentração de renda”, acredita Regina Camargos, pesquisadora da Unicamp.

Ela lembra do chamado “milagre econômico”, durante a ditadura militar, quando o Brasil chegou a crescer até 11% ao ano, mas concentrou renda absurdamente. Além desses patamares de crescimento serem impensáveis na atual conjuntura, até para países como a China, que tem um gigantesco mercado interno, o crescimento proposto pela equipe de Guedes seria um crescimento para poucos. “Se, com muito esforço o Brasil chegar a 2% de crescimento, vai ser algo que vai favorecer 1% da população, mantendo a economia funcionando para os mesmos, enquanto a maioria vai continuar com subempregos ou subocupada. Podemos ficar três anos assim, mas essa economia não se dinamiza e não se sustenta. O que dinamiza é o agravamento da desigualdade e da pobreza”, acrescenta Regina.

Para a pesquisadora, o foco deve ser na questão estrutural, “senão, segue sendo voo de galinha, que diante do primeiro espirro da economia central, no elo mais forte desses acordos bilaterais, impacta no elo mais fraco”. A meta do governo de gerar 1 milhão de empregos em 2020 está condicionada a um crescimento de 3% da economia nacional. Mas a previsão da Secretaria de Política Econômica para o PIV este ano é de 2,4%.

Na avaliação de Sergio Mendonça, quanto menos peso temos, mais devemos jogar no sistema multilateral, porque ali é possível diluir o peso das grandes economias. Mas Bolsonaro estaria seguindo o caminho de Trump, de enfraquecer os sistemas multilaterais. “Óbvio que os Estados Unidos não querem se submeter a regras multilaterais, mas para o Brasil isso é um erro. O comércio externo daqui depende muito mais de ter estratégia interna de desenvolvimento para se relacionar com outros países do que achar que vamos mudar a economia de fora pra dentro. Mas Guedes foi a Davos para reduzir ainda mais o papel do Estado e deixar para o mercado definir esses fluxos financeiros”, critica.

E o meio ambiente?

De alguns anos pra cá, Davos deixou de tratar de questões estritamente corporativas para analisar outros fatores e riscos que podem influenciar os negócios e o capitalismo em geral. Foi o que aconteceu quando o Fórum Econômico Mundial debateu os efeitos degenerativos da perda de controle do mercado financeiro pelos governos, quando começou a discutir desigualdade e, agora, a agenda ambiental. São temas que passaram a figurar no relatório de riscos globais, lançado anualmente no encontro. Mas, em Davos, Guedes não se mostrou muito preocupado com a agenda. Declarou em uma das mesas de que participou que é a pobreza a responsável pela destruição do meio-ambiente, bastando combatê-la – como se o governo Bolsonaro estivesse fazendo algo neste sentido – para evitar a destruição da natureza. Foi necessário o ex-vice presidente dos EUA Al Gore para desconstruir a fala.

Depois da passagem pela Casa Branca, Al Gore integra o conhecido grupo dos defensores do capitalismo civilizado, e tem sido consultor de grandes empresas que prospectam negócios na área da chamada economia verde, que pode movimentar 70 bilhões de dólares em investimentos nos próximos anos. A fala de Guedes na Suíça, além de não se sustentar por qualquer dado científico, desagradou assim quem pretende fazer negócios nessa área.

“São negócios muito lucrativos e o Brasil é, para o mundo capitalista, uma nova fronteira de negócios na área da biodiversidade, da água, da exploração sustentável. Como o governo brasileiro fez lambanças ambientais enormes nos últimos anos, Guedes tomou um pito lá. Como assim você vai queimar a galinha dos nossos ovos de ouro? O recado de Davos pra ele foi: ‘concordamos em quase tudo com o que você diz e podemos colocar dinheiro no Brasil, mas calma aí com a questão ambiental’. Se dependesse de Bolsonaro, o cuidado ambiental seria zero, porque ele tem fatura para pagar quem financiou sua campanha. Mas foi cobrado pelos fundos de investimento e empresas de olho na economia verde”, analisa Regina Camargos.

Paulo Guedes tampouco estava preocupado com isso em Davos. Foi reafirmar sua política neoliberal, mostrar currículo e tentar viabilizar a reeleição de Bolsonaro. Mas tem limites que até o Fórum Econômico Mundial não mais ultrapassa, mostrando que este é realmente um governo fora de seu tempo – no que há de pior e mais atrasado.

 

 

*Com informações da Carta Maior