Por Luis Nassif
No período áureo do chamado jornalismo de esgoto, Veja se incumbia das fake news, Globo dava dimensão nacional às matérias, mas sem sujar as mãos: limitava-se a repercutir no Jornal Nacional todas as capas da Veja.
Anotei, na época, que a Globo era a melhor não apenas por ser a maior, mas por ter a melhor visão estratégica da instrumentalização do jornalismo.
Corrijo: a Globo cavou sua própria sepultura com a estratégia do impeachment, de se aliar a Eduardo Cunha e acelerar a queda de Dilma Rousseff. O epitáfio está na matéria de hoje, da Folha, sobre os planos de expansão da Amazon no Brasil. O Pacote Prime, a R$ 9,90 por mês, dará acesso a filmes, música, livros, jogos, revistas. Mas não apenas isso: a frete grátis para todo o país, na compra de produtos da Amazon.
O modelo de negócios da Time, nos anos 50, incluía catálogo de vendas, se não me engano de produtos da Sears. Era uma maneira de aproveitar o fator público e a rede de distribuição para expandir o catálogo de produtos seu serviço de logística para toda sorte de produto.
A Amazon nem precisa de parceria. Já faz as vendas de livros eletrônicos, montou um eficientíssimo sistema de logística, tem catálogo de filmes, paga as editoras à vista, em vez do consignado. E há um mês contratou João Mesquita, executivo que dirigia a Globoplay, principal projeto da Globo para enfrentar a Netflix, a Amazon e outras empresas OTT (de streaming de vídeo). Também deu início às co-produções exclusivas.
Não é a única frente no caminho da Globo. Em publicidade, Google e Facebook já ultrapassaram a Globo no Brasil. Cada uma delas, incluindo a Amazon, vale 30 Globos em faturamento e 200 em valor de mercado. Os grandes grupos internacionais de mídia estão se juntando aos de comunicação, casos como Comcast/Universal ou AT&T/HBO, Time Warner. E, internamente, enfrentará cada vez mais a aliança Bolsonaro com Record e SBT.
A Globo terá que se juntar ao Magazine Luiza se quiser enfrentar a Amazon e dificilmente terá condições de comprar o próximo Brasileirão sem um parceiro internacional.
Em 2015, um acordo com PT e com Dilma poderia ter sido a salvação da Globo. Toda a lógica econômica de Dilma era de fortalecimento de empresas nacionais. Não haveria maiores dificuldades para aceitar uma política similar às dos países europeus, regulamentando e controlando as gigantes de tecnologia americana, como Google, Facebook e Amazon.
Do mesmo modo, a Globo nunca aceitou uma Lei Geral das Telecomunicações, confiando em seu poder de lobby individual. Uma Lei da Mídia protegeria a Globo. Dificilmente haveria TVs de bispos ou uma SBT devendo mais de R$ 4 bilhões no CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais).
Agora, a Globo está sozinha, com os Bolsonaro e seu internacionalismo raso tratando-a como inimiga e pretendendo abrir todas as facilidades para a entrada de grupos estrangeiros. Assim como a Lava Jato, a Globo tornou-se vítima de seu excesso de poder.
Mas era tão poderosa que podia se permitir ser defendida pelo seu então advogado, Luis Roberto Barroso, com um dos pareceres mais ridículos jamais escritos sobre o fenômeno da globalização das mídias:
“A primeira questão a ser enfrentada diz respeito ao fato de que as empresas genuinamente brasileiras que atuam nesse mercado não podem ter mais de 30% de capital estrangeiro, por imposição constitucional. Admitir-se empresas com 100% de capital estrangeiro fazendo jornalismo ou televisão no Brasil não apenas viola a Constituição como cria uma competição desigual. Imagine se um jogo de futebol em que um dos times devesse observar as regras tradicionais e o outro pudesse pegar a bola com a mão, fazer faltas livremente e marcar gols em impedimento. A injustiça seria patente.”
Existem (…) razões mais substantivas para que as regras sejam mantidas e respeitadas. O Brasil é um país cioso de suas tradições culturais, que incluem uma belíssima música popular, o melhor futebol do planeta, novelas premiadas mundo afora e cobertura jornalística acerca dos fatos de interesse nacional.
Entregar o jornalismo e a televisão ao controle estrangeiro poderia criar um ambiente de surpresas indesejáveis. No noticiário e na programação, teríamos touradas ou jogos de beisebol. Ou, quem sabe, de hora em hora, entraria em tela cheia a imagem do camarada Mao, grande condutor dos povos. Como matéria de destaque, uma reportagem investigativa provando que Carlos Gardel era uruguaio e não argentino. Pura emoção. À noite, um documentário defenderia a internacionalização da Amazônia.”
*Do GGN