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Matéria Opinião

Por que é necessário questionar a versão dominante de “acidente” sobre a explosão no Líbano?

A tragédia em Beirute no Líbano marcou esta primeira semana de Agosto em um ano já marcado por uma série de fatos insólitos de enorme gravidade como a pandemia do novo Coronavírus, a crise financeira global e o acirramento do conflito EUA x China.

Entretanto, em que pese o fato do problema no Líbano ser um fato lamentável por si só, um fato crucial precisa ser problematizado e pegou até mesmo analistas de renome de “calças curtas”. É comum na pressa analisar determinados fatos sem levar em consideração categorias de análise fundamentais como as questões do poder de difusão de informações e de apropriação dos fatos.

No mesmo dia do incidente, em vários círculos de análise política (tanto a da grande Imprensa monopolista quanto na chamada “Blogosfera” independente) houve uma pressa curiosa em concluir que a explosão em Beirute se tratava de um “desígnio divino”, ou seja, um azar muito grande que se abatia sobre os libaneses.

Esta postura chamou a atenção porque em que pese o fato de não haver uma investigação ainda minuciosa dos acontecimentos, as imagens da explosão não se encaixam no perfil de uma explosão convencional. Por mais que um acidente com nitrato de amônia seja um risco verificado em outras partes do Mundo – inclusive no Brasil – a explosão no porto de Beirute teve características muito próprias que suscitam no mínimo questionamentos diversos. Além do mais, o fato da explosão ter ocorrido no Líbano cria certamente um ar de suspense porque afinal de contas estamos nos referindo a uma região em disputa no coração do mar Mediterrâneo em um país vizinho da Síria e imbricado diretamente no conflito de interesses de superpotências globais. Se a explosão tivesse ocorrido na Samoa Americana ou na Polinésia francesa, sem querer desmerecer os habitantes destas ilhas do Pacífico, a linha de investigação poderia não suscitar tanta polêmica assim. Mas não é exatamente isso que quero retratar aqui e sim o problema da apropriação do fato e sua difusão.

Duvidar das versões dominantes é papel constante dos núcleos progressistas. O motivo de se valorizar a criticidade é simples: quem controla os instrumentos de comunicação de massas consegue subordinar todo o hall das coberturas posteriores em uma voz unificada, ou seja, o fenômeno do monopólio da informação. Cerca de 1 hora e meia após a explosão, já circulava nas principais redes de notícias do Mundo a tese de “acidente” ou “obra do destino”, um “azar” muito grande recaiu sobre Beirute, “rezemos todos pelos libaneses”, ou seja, a coisa já ganhava até tons místico-religiosos. Entretanto, para bons analistas, a leitura sentimental de natureza religiosa não costuma satisfazer – em especial se temos em mente os fatos históricos na mão. Como historiador, sei a importância desta Ciência para a leitura do presente. Em suma, o discurso preponderante sobre a explosão em Beirute foi tomado de um frenesi pouco contextualizado, em especial se tratarmos dos fatos que ocorrem no Mundo de 2008 pra cá (para usarmos uma prazo analítico menor). Eu me pergunto quem consegue tirar um diagnóstico de “azar do destino” menos de duas horas após o evento sem que uma investigação ocorra? Entenda que todo o conjunto de informações que se seguiram caminharam nesta direção como principal vetor de investigação. Por que devemos ser obrigados a acreditar? Até mesmo o Lejeune Mirhan, conhecidíssimo professor e analista dos temas árabes no Brasil e que se coloca no campo dos analistas críticos aderiu com extrema facilidade o discurso de acidente no mesmo dia do evento (na mesma noite). Sua alegação partia da observação da própria imprensa do Hezbollah que não se manifestou em torno de questionar a natureza da explosão nas primeiras horas.

Ora, nada surpreendente! O próprio Lejeune faz questão de mencionar que o Hezbollah não costuma provocar ninguém, apenas reage e se protege em casos necessários, ou seja, mesmo um grupo considerado pelos ocidentais radical se coloca na defensiva na cobertura das informações. Isso entretanto não quer dizer muita coisa porque a análise da Geopolítica independe do Hezbollah. O Hezbollah por exemplo não previu em sua imprensa o despertar da Revolução colorida em 2011 na vizinha Síria e que culminou numa das mais brutais guerras do Oriente Médio em anos recentes.

Uma coisa que as esquerdas precisam compreender, sobretudo as reformistas é que desqualificar interpretações críticas e taxá-las de teorias “mirabolantes da conspiração” é um erro que a Burguesia deseja constantemente que se cometa. Se nós fossemos seguir esta lógica, o discurso crítico ao Golpe de Estado de 2016 no Brasil seria considerado “teoria” da Conspiração como a própria Burguesia se esforça diuturnamente em elaborar, num esforço que tem se provado inclusive difícil uma vez que não só as evidências como as provas do Golpe de Estado pululam por todos os poros, dentro e fora do Brasil. O tema do “Golpe de Estado no Brasil” já pertence até mesmo a cursos em Universidades no exterior!

Há quem discuta que Israel não tenha o interesse em agredir o Líbano no momento. De fato, não há indícios de que Israel esteja envolvido no caso por motivos que se provam óbvios, não há conjuntura política favorável local para uma agressão gratuita deste jeito. Mas isso não significa que o Imperialismo de conjunto não esteja interessado em bagunçar o Líbano. Um erro que vários analistas do Oriente Médio cometem é supervalorizar o papel de Israel no jogo de tabuleiro do Médio Oriente. Que Israel tem desempenhado um papel importante em servir de bucha de canhão dos interesses ocidentais na região não restam dúvidas mas o jogo vai além de Israel. E aliás, Israel é até vítima no caso porque assim como qualquer outra nação dominada, tem um governo completamente comprado pela rede de interesses estrangeiros e suas políticas, portanto, colocam os próprios habitantes de Israel em constante risco. Israel é vítima também, assim como os demais países da região.

Nada como o tempo para revelar que as coisas no Líbano vão muito além de azar. Tão logo a poeira da explosão abaixou e dias após, o próprio governo libanês colocou no hall de possibilidades interferência estrangeira. Mas, para muito além disso, quase que numa situação de auto-denúncia, manifestações tomam conta das ruas de Beirute contra o governo e com palavras de ordem ALTAMENTE controvertidas. Ao invés de “pão, terra e paz”, uma parte dos manifestantes exigem o retorno do controle do Líbano pela França! Isso mesmo que você acabou de ler! Uma das palavras de ordem como veiculado pela rede alemã de notícias Deutsche Welle deste sábado indica que uma parte significativa dos manifestantes protestam contra o governo central e exigem intervenção estrangeira no país. Se isso não é uma atuação de infiltrados que buscam incendiar uma “revolução colorida” no Líbano, o que é então? O povo libanês não quer ser colônia de ninguém. Será que a explosão mudou a opinião dos libaneses? Claro que não, estamos diante de uma tentativa de se emplacar uma “revolução colorida” no país aos mesmos moldes que levaram a Síria ao conflito civil em 2011. Em jogo, interesses estrangeiros abertos e explícitos na região no mesmo momento que uma crise global acontece onde EUA, União Europeia, Rússia e China se acotovelam no Oriente Médio sobre o controle de contratos tubulares de gás natural, jazidas de petróleo, rotas comerciais e mercados consumidores em uma clássica e corriqueira disputa Imperialista já vista inúmeras e inúmeras vezes na História recente. Devemos achar que tudo não passa de coincidência?

Mesmo que se prove por a + b = c que a explosão foi um acidente, nos livramos então da problematização política? De jeito nenhum. Não adianta fugir, todos os fatos do chamado Lebenswelt estão subordinados a relações sociais que por sua vez são pautadas por relações de poder. O caso Líbano não é um caso encerrado como a imprensa quis transparecer no mesmo dia. O caso Líbano é um caso político que a depender do desenrolar da situação pode revelar uma nova “Guerra Híbrida” na região.