Na busca por se aliar aos interesses dos países ricos, de atender demandas de Donald Trump e em seu sonho de entrar na OCDE, o governo de Jair Bolsonaro foi contra a proposta feita pela Índia ainda em 2020 para que patentes sobre vacinas fossem abolidas. Um dos resultados seria permitir que a produção dos imunizantes pudesse ocorrer em laboratórios distribuídos pelo mundo.
Agora, Nova Delhi diz que é justamente a falta de uma maior distribuição para a produção de versões genéricas da vacina que impede o abastecimento global.
Nesta terça-feira, numa reunião fechada na Organização Mundial do Comércio em Genebra, Nova Delhi foi explícita em constatar que o “pior dos pesadelos” se confirmou diante da incapacidade de se encontrar um acordo: não há vacinas para todos.
O Brasil comprou sua vacina da Oxford/AstraZeneca. Mas o produto é fabricado na Índia. O problema é que, com um governo nacionalista, Nova Delhi dificultou a exportação dos imunizantes para permitir que sua campanha de vacinação fosse iniciada.
Além disso, os indianos indicaram que vão começar a exportar as doses. Mas, num primeiro momento, para seus aliados na região e vizinhos, num gesto geopolítico calculado.
O primeiro lote de exportações será enviado para o Butão, ainda na quarta-feira. Um dia depois, dois milhões de doses da vacina também serão enviadas para Bangladesh. Não há uma data para o fornecimento ao Brasil.
Na OMC, o governo da Índia tomou a palavra para voltar a defender a ideia de uma suspensão das patentes do produto.
Para a Índia, “os piores temores de escassez e fornecimento se tornaram realidade, com programas de lançamento de vacinas de quase todos os países do mundo sofrendo atrasos devido à fabricação insuficiente e não disponibilidade do número necessário de doses de vacinas”.
Enquanto isso, porém, Nova Delhi alerta que “um grande número de instalações de fabricação em muitos países com capacidade comprovada para produzir vacinas seguras e eficazes são incapazes de utilizar essas capacidades devido a novas barreiras de propriedade intelectual”.
Esta é a prova, na opinião da Índia, de que o atual sistema de patentes não é suficiente para atender a enorme demanda global de vacinas e tratamentos.
Segundo a Índia, o que os países desenvolvidos disseram sobre a suficiência de tais acordos de licenciamento para aumentar as capacidades de fabricação provou ser insuficiente. As licenças voluntárias, mesmo quando existem, estão envoltas em segredo, os termos e condições não são transparentes e o escopo é limitado a quantidades específicas, ou para um subconjunto limitado de países, encorajando assim o nacionalismo.
Nova Delhi ainda colocou dúvidas sobre a capacidade de o mecanismo da OMS de distribuir vacinas poder ser uma solução.
Países como África do Sul, Afeganistão, Paquistão, Zimbábue, Egito, Mongólia, Chade, Indonésia, Nepal, Bangladesh, Sri Lanka, Camboja e Venezuela também falaram em apoio à proposta. A OMS também é favorável à ideia indiana.
Brasil abandona sua posição tradicional e passa a defender patentes
Mas o projeto conta com uma forte rejeição por parte dos países ricos, detentores das patentes. O Brasil foi o único país em desenvolvimento a declarar abertamente que era contra a proposta, abandonando anos de liderança internacional para garantir o acesso a remédios aos países mais pobres.
Há 20 anos, foi a ação internacional do Brasil que levou a OMC a estabelecer regras para permitir um maior acesso a remédios. Naquele momento, a luta era para enfrentar a Aids. A liderança se transformou em um dos maiores ativos da política externa de FHC e Lula.
A quebra de patentes acabou ocorrendo num caso, sob a gestão do então ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Mas foi o papel assumido pelo governo nas negociações que catapultou o país para um outro patamar no debate internacional.
Para rebater os indianos, Europa, EUA e Japão insistiram que a quebra de patentes não resolveria a questão do abastecimento de matérias-primas.
Eles também enfatizaram que o atual sistema contém ferramentas suficientes para resolver quaisquer problemas relacionados à propriedade intelectual e que a implementação da proposta de renúncia minaria os atuais esforços para combater a pandemia. Um dos impactos seria afastar investimentos do setor privado.
Esses países observaram que embora haja financiamento público para pesquisa e desenvolvimento, a produção e distribuição das vacinas continua sendo um risco de investimento para o setor privado.
*Jamil Chade/Uol
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