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Vídeo: Os kids pretos: O papel da elite de combate do Exército nas maquinações golpistas

Allan de Abreu – Piauí*

O assessor da Secretaria-Geral da Presidência da República, Mario Fernandes, general da reserva do Exército, estava indignado com a derrota de Jair Bolsonaro na eleição. Em meados de novembro, quando centenas de bolsonaristas clamavam por um golpe reunidos em frente aos quartéis pelo país afora, Fernandes decidiu fazer uma conclamação. No grupo de WhatsApp que reunia colegas militares, mandou uma carta endereçada ao então comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, que não estava no grupo, mas recebera a mensagem do próprio Fernandes minutos antes. Ele escreveu:

– É agora ou nunca mais, comandante, temos que agir! E não existe motivação maior do que a proteção e o futuro desta grande nação e de seus filhos… Os nossos filhos!

A ação que o general pedia era um “evento disparador” capaz de deflagrar a virada de mesa. Ele não diz com todas as letras o que vinha a ser o tal evento, mas explica que deveria ocorrer “a partir da ação das forças de segurança contra as massas populares, com o uso de artefatos como gás lacrimogêneo e granadas de efeito moral” e, em seguida, dá sugestões de local. “Tudo isso bem próximo ou em nossas áreas militares!” No Brasil, não é raro aparecer generais de pijama, como são chamados os aposentados que não têm comando de nada, desfraldando bandeiras golpistas, com uma verve meio amalucada.

O apelo de Mario Fernandes, no entanto, recorria a um elo comum: ele e o então comandante são “kids pretos”, o apelido dado aos especialistas em operações especiais do Exército, que são altamente treinados, entre outras técnicas, em ações de sabotagem e incentivo à insurgência popular – as chamadas “operações de guerra irregular”. Os kids pretos são, também, chamados de “forças especiais”. Eles compõem a elite de combate do Exército. Em sua mensagem, Fernandes sempre se refere a Freire Gomes como comandante, em letras maiúsculas. Mas, no final do texto, reforçando a camaradagem, chama-o de kid preto, também com maiúsculas.

Essa turma forma o grupo preferido de Bolsonaro na corporação. Nos tempos de Academia Militar das Agulhas Negra (Aman), Bolsonaro queria ser um força especial, também conhecidos como FE. Fez o curso de paraquedismo, a primeira etapa da formação, e submeteu-se à prova de ingresso duas vezes – foi reprovado em ambas. Três décadas depois de amargar uma expulsão branca do Exército, em razão de ter planejado um atentado a bomba no sistema de abastecimento de água do Rio, Bolsonaro chegou ao poder em Brasília e cercou-se dos kids pretos – única força em que Bolsonaro dizia confiar plenamente.

Um deles era o general Luiz Eduardo Ramos, que foi ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência e, também, da Casa Civil. Outro era o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro que se encontra preso e, certamente, é o militar mais enrolado nas falcatruas do governo, do contrabando das joias sauditas à falsificação da carteira de vacinação contra a Covid, passando por toda sorte de manipulação com dinheiro vivo dentro do palácio. (Na operação pega-joia, houve o envolvimento de outros dois kids pretos: Cleiton Henrique Holzschuk, que tentou registrar as joias como bem privado de Bolsonaro, e Marcelo da Costa Câmara, que gerenciava o acervo particular do ex-presidente.)

Em quatro anos, a gestão de Bolsonaro convocou pelo menos 26 kids pretos. Além do general Ramos e do coronel Cid, nomeou o general Eduardo Pazuello, que fez a desastrosa gestão do Ministério da Saúde na pandemia. Seu principal auxiliar era o coronel Elcio Franco Filho, outro kid preto. O coronel ficou conhecido por não ter respondido ao e-mail da Pfizer oferecendo vacinas ao Brasil, depois por ter autorizado a compra de vacina superfaturada e, mais recentemente, por aparecer num áudio em que se discutia a mobilização de 1,5 mil soldados para dar um golpe e devolver o poder a Bolsonaro.

Mesmo antes da vitória de Bolsonaro, os kids pretos sabiam da predileção pelo grupo e já tinham planos de tutelá-lo. Em março de 2018, por exemplo, o general Luiz Eduardo Ramos participava de um jantar com outros militares brasileiros quando resolveu telefonar para o então deputado federal Jair Bolsonaro. Depois de uma rápida conversa, cujo conteúdo a piauí desconhece, Ramos desligou o telefone e confidenciou aos presentes: “Estão vendo? Esse cara está nas nossas mãos. Se ele for eleito, a gente vai governar por ele.” Coube ao general Ramos a articulação para que Bolsonaro colocasse no comando do Exército o general Freire Gomes, outro kid preto.

general Freire Gomes não atendeu ao apelo de Mario Fernandes no WhatsApp, mas a crônica do golpe inclui mais de uma tentativa de promover um “evento disparador”. Em 12 de dezembro, dia em que Lula era diplomado como presidente, bolsonaristas incendiaram cinco ônibus, três automóveis e uma viatura do Corpo de Bombeiros, e tentaram invadir a sede da Polícia Federal em Brasília, em protesto contra a detenção de um indígena xavante. Depois, em outro “evento disparador”, depredaram a sede dos três poderes da República, no dia 8 de janeiro.

Três dias antes do protesto de 12 de dezembro, a Agência Brasileira de Inteligência detectou que, entre os xavantes, havia três kids pretos infiltrados. Um agente da Abin, que conversou com a piauí sob anonimato por não ter autorização formal para se manifestar publicamente, disse o seguinte: “Tudo indica que os militares usaram esses indígenas como massa de manobra. Isso porque, em alguns casos, o Estatuto dos Povos Indígenas atenua a responsabilidade civil e criminal.” A informação não foi registrada em relatório e, assim, acabou sendo ignorada. (A prática de não produzir relatórios tornou-se mais comum durante a pandemia. Como Bolsonaro ficava irritado ao saber do avanço da Covid em informes da Abin, os agentes passaram a ignorar o assunto.)

No dia 8 de janeiro, o general da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, um kid preto que dirigiu o setor de Logística do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro, gravou a si mesmo na intentona golpista e divulgou as imagens nas redes sociais. “Quero dizer que eu tô arrepiado aqui”, festejou, enrolado numa bandeira do Brasil, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo com olhos irritados pelo gás lacrimogêneo da Polícia Militar, elogiava a corporação. “O pessoal tá aplaudindo a Polícia Militar, porque a gente sabe que eles cumpriram ordem. […] Tem que ser aplaudidos, sim.”

Outros dois kids pretos da reserva recorreram ao Twitter. O coronel José Placídio Matias dos Santos fez um apelo ao general Júlio Cesar de Arruda, então comandante do Exército (a Polícia Federal ainda não sabe se ele estava ou não na Praça dos Três Poderes): “O Brasil e o Exército esperam que o senhor cumpra o seu dever de não se submeter às ordens do maior ladrão da história da humanidade. O senhor sempre teve e tem o meu respeito. Força!!” Pouco depois, nova mensagem: “Brasília está agitada com a ação dos patriotas. Excelente oportunidade para as FA entrarem no jogo, desta vez do lado certo.” No dia seguinte, fez uma provocação: “Será que o pessoal sabe que na manifestação de ontem em Brasília havia centenas de militares da ativa?” De Portugal, onde vive, o coronel Fernando de Galvão e Albuquerque Montenegro, outro kid preto, também tentou insuflar os golpistas. “Patriotas brasileiros, ignorem a grande imprensa nacional e internacional. Qualquer manifestação contra o establishment será sempre apresentada como atos antidemocráticos. Façam o que deve ser feito.”

Os três foram procurados pela piauí. O general Ridauto Fernandes não quis falar de sua presença no meio da massa golpista e limitou-se a dizer que sempre pautou sua conduta “pela legalidade, que está embutida no conceito da disciplina”. O coronel Placídio negou que as postagens golpistas no Twitter fossem de sua autoria. “Eu não incentivei [o golpe]. Ao contrário, repudio veementemente as depredações que ocorreram naquele dia. Eu não estava em Brasília e soube do ocorrido pelas notícias. Além disso, havia várias postagens na minha conta [do Twitter] que definitivamente não foram de minha autoria.” O coronel Montenegro não retornou o contato da piauí.

As forças de segurança reagiram ao 8 de janeiro exatamente como previra o general Mario Fernandes na sua conclamação golpista no WhatsApp: com o uso de bombas de efeito moral em área cuja segurança é de responsabilidade militar – no caso, o Palácio do Planalto. “O objetivo desses radicais claramente era causar comoção social e pressionar as Forças Armadas a promover a intervenção militar”, diz Carlos Fico, professor de história do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de vários livros sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar. Procurado pela piauí, o general da reserva Mario Fernandes também preferiu não se manifestar. O Exército, por sua vez, informou apenas que quaisquer informações sobre o 8 de janeiro só serão repassadas aos órgãos que investigam os atos golpistas – no caso, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal.

Os vídeos da intentona golpista mostram ações próprias de quem teve treinamento militar. Antes de chegar à Praça dos Três Poderes, os bolsonaristas se depararam com uma longa fileira de gradis, unidos um ao outro, que os impedia de avançar. Não era possível derrubar os gradis com 1, 2 ou 3 homens. O que se vê na imagem é uma ação coordenada, com vários se postando em lugares diferentes ao longo dos gradis e empurrando-os ao mesmo tempo. “É pura tática militar”, diz um oficial do Exército ligado aos FE que preferiu não ser identificado para não se indispor com os colegas de farda. Depois, em outra tática militar, os gradis são convertidos em escada para que os baderneiros desçam do teto do Congresso até o Salão Verde da Câmara. Ao chegarem à Praça, os golpistas se dividem em três. Um grupo vai em direção ao Congresso, outro se dirige ao STF e um terceiro caminha para o Palácio do Planalto. “Isso denota planejamento. A tendência natural de toda multidão é caminhar unida, numa única direção”, diz o militar.

Em conversa com a piauí, um policial do Senado contou que os baderneiros estavam divididos em duas linhas. A primeira, formada só por homens, cuidava do enfrentamento direto com a polícia e do arrombamento de portas e janelas do Congresso. A segunda, composta principalmente por idosos, distribuía água mineral para que o “primeiro pelotão” reduzisse os efeitos do gás lacrimogêneo e do gás de pimenta no rosto. “Assim que invadiram o Senado, percebemos que eles logo procuravam as mangueiras anti-incêndio para espalhar pelo ambiente e minimizar os efeitos do gás”, disse o policial.

Pelos vídeos da quebradeira é possível notar que alguns dos vândalos usavam luvas de couro para atirar de volta as bombas de gás. “Enquanto expele o gás, esse dispositivo fica muito aquecido e só pode ser recolhido com luvas. Um civil sem treinamento dificilmente se prepararia para isso”, afirma o militar do Exército. As postagens dos golpistas antes do 8 de janeiro deram algumas dicas, mas não recomendaram o uso de luvas. Exemplo de uma postagem bastante popular que convocava para a manifestação: “Ao ver uma granada de gás lacrimogêneo, não corra para pegá-la. Espere o pino sair, aí sim, pode pegá-la e arremessá-la de volta.”

O caso potencialmente mais grave aconteceu na invasão ao prédio do Senado. Ali, os golpistas atiraram uma granada do tipo GL-310, apelidada de “bailarina” por saltitar no chão enquanto dispara o gás lacrimogêneo, evitando que o alvo a capture e lance o artefato de volta. “O estranho é que as polícias do Senado e da Câmara não têm esse tipo de granada. Então isso veio de fora”, diz o policial do Senado entrevistado pela piauí. Os portais da Transparência da Câmara e do Senado, de fato, não apresentam nenhuma compra desse tipo de granada. A outra força de segurança que participou da contenção dos bolsonaristas, a PM do Distrito Federal, também não usa esse artefato, segundo um oficial ouvido pela reportagem. Já o Exército, esse sim, utiliza a GL-310 em larga escala para treinamentos militares, inclusive nos cursos dos kids pretos. Até agora, os investigadores da Polícia Federal nem sequer estão investigando o aparecimento, em meio aos protestos, de uma arma usada pelo Exército.

Ao contrário do que ocorre no Congresso e no STF, a segurança do Palácio do Planalto fica a cargo do Exército. Dois órgãos executam a tarefa: o Comando Militar do Planalto e o Gabinete de Segurança Institucional. No 8 de janeiro, o CMP estava sob a chefia do general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, um bolsonarista fiel. Já o GSI era comandado pelo general Marco Edson Gonçalves Dias, que trabalhou na segurança de Lula nos dois primeiros mandatos do petista. Por coincidência, os dois generais são kids pretos. O general G.Dias, como é conhecido, pediu demissão do cargo depois que a CNN Brasil divulgou imagens mostrando sua inação diante dos invasores do palácio. O general Dutra de Menezes foi afastado do Comando Militar do Planalto em fevereiro e exonerado em abril.

Os investigadores suspeitam que a ação dos kids pretos podem ter algum envolvimento com os ataques ocorridos depois do 8 de janeiro. Nos dias subsequentes, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) registrou uma série de sabotagens em torres de transmissão de energia elétrica pelo Brasil. Quatro torres foram derrubadas (3 em Rondônia e 1 no Paraná) e dezesseis, danificadas (6 no Paraná, 3 em São Paulo, 6 em Rondônia, 1 em Mato Grosso). Os ataques a instalações de infraestrutura fazem parte do treinamento das forças especiais, mas não é um ensinamento exclusivo deles.

Apesar da onipresença no governo e as suspeitas de ações subterrâneas, os kids pretos compõem apenas 0,25% do contingente do Exército.

filme Tropa de Elite, de 2007, trouxe a público o sadismo e a crueldade do treinamento dos soldados do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), no Rio de Janeiro. O curso do Bope, na verdade, foi inspirado no treinamento dos kids pretos do Exército, no Centro de Instrução de Operações Especiais, em Niterói. Ali, os sargentos e oficiais precisam demonstrar resistência física e psicológica extrema ao longo dos doze meses. Se aprovados, passam a integrar um dos quatro batalhões do Comando de Operações Especiais (COpEsp), todos eles instalados em Goiânia, ou a 3ª Companhia de Forças Especiais, em Manaus.

É por isso que as “brigadas de operações especiais em Goiânia” aparecem duas vezes nos áudios que vieram a público depois da apreensão do celular de Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que está preso desde o dia 2 de maio. Num diálogo obtido pela polícia, Ailton Barros, um ex-paraquedista expulso do Exército nos anos 2000 e muito próximo de Bolsonaro, defende que o golpe, bem como a prisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, são tarefas para os kids pretos. Diz ele: “Tem que ser dada a missão às Brigadas de Operações Especiais de Goiânia pra prender o Alexandre de Moraes no domingo na casa dele, como ele faz com todo mundo. E na segunda-feira ser lido o decreto de GLO [Garantia da Lei e da Ordem] e botar o Exército pra agir.”

Em outra conversa, dessa vez com Elcio Franco Filho, o militar enrolado com as vacinas da Covid, Ailton Barros volta a radicalizar e a evocar os kids pretos: “Esse Alto Comando de merda que não quer fazer as porras! É preciso convencer o comandante da Brigada de Operações Especiais de Goiânia a prender o Alexandre de Moraes. Vamos organizar, desenvolver, instruir e equipar 1,5 mil homens.” O comandante da Brigada de Operações Especiais de Goiânia era o general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel. Mas, em janeiro, o Exército escolheu outro militar para comandar um dos quatro batalhões de kids pretos em Goiânia. Seu nome: o coronel Mauro Cid. Como se sabe, essa indicação foi a gota d’água: o presidente Lula demitiu o comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda, e nomeou o general Tomás Paiva.

Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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