Um dos ministros mais eloquentes do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes afirma que Brasil voltou para o rumo da estabilidade e defende controle sobre big techs e redes sociais.
O ministro Gilmar Mendes, decano do STF, deu entrevista ao site Público, de Portugal. “No geral, me parece que o governo Lula tem sido extremamente positivo, e o toque decisivo é a defesa da normalidade, da institucionalidade, das relações civilizadas entre os Poderes. O Brasil voltou a um quadro de normalidade, inclusive no cenário internacional”, diz.
Gilmar destaca ainda que os imigrantes, especialmente nas economias mais desenvolvidas, têm sido transformados em bodes expiatórios pelo populismo de direita. Ele defende a necessidade de maior controle sobre as big techs e as redes sociais. Além disso, reconhece que os crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil devem ser julgados, um tema que ganhou destaque com o filme “Ainda Estou Aqui”, que recebeu três indicações ao Oscar.
Alguns trechos:
Como o senhor viu essa questão dos brasileiros deportados dos Estados Unidos chegarem algemados, acorrentados, ao Brasil?
Tem um pouco desta fantasia americana, de justiça e ordem. Já faz algum tempo, um piloto de stock car, se não me engano brasileiro, foi acusado nos Estados Unidos de ter problema com o Fisco. E veio lá uma ordem e, em pouco tempo, ele estava algemado e acorrentado. No momento seguinte, descobriu-se que ele não tinha nada a dever e se retirou [Em 2009, Hélio Castroneves foi absolvido pelo júri de todas as acusações de sonegação fiscal, no Tribunal em Miami. O piloto, dono de uma mansão em Coral Gable, era acusado junto com sua irmã Katiucia e seu advogado americano Allan Miller de ter montado um esquema para fraudar o fisco em US$ 5,5 milhões (cerca de R$ 12 milhões) entre 1999 e 2004, quando competia pela Penske Team]. Isso não faz o menor sentido. Talvez algum cuidado se tivesse que ter, diante de tanta gente dentro de uma aeronave, mas não se tratava disto (ter criminosos). Então, me parece que acabam ocorrendo esses exageros, talvez para efeito de demonstração. Por isso, inclusive, o Governo brasileiro emitiu protestos em relação a isso. É claro que quem está ilegal num dado país, suporta a possibilidade de deportação. Em princípio, isto ocorre em todos os lugares. (…)
Como o senhor vê esse movimento da extrema-direita liderado por Trump? Qual o impacto que isso pode ter no Brasil?
Eu não atribuiria este movimento necessariamente ao Trump ou a sua liderança. É muito cedo para prognosticar como isso vai se desenvolver. Toda hora nós estamos a ver anúncios de medidas (nos Estados Unidos) e também a sua desautorização. Então, é preciso ter muito cuidado para que a gente separe o ruído do sinal. Mas, de qualquer forma, não podemos menosprezar toda a evolução que se tem tido nesse campo. O próprio movimento que ocorreu nos Estados Unidos, o 6 de janeiro (invasão do Capitólio), que foi um fato absolutamente inédito. Ninguém imaginava, com a tradição democrática americana, que aquilo pudesse ocorrer. Mas antes já tínhamos movimentos assemelhados na própria Europa do leste, com Hungria, Polônia, problemas sérios de desinstitucionalização, na Turquia também. Agora, na Itália, embora com um viés moderado, na Áustria. Há sinais de descontentamento que carrearam para este campo. A Alemanha, com a Alternativa para a Alemanha (AfD). São dados preocupantes, que mostram uma grande insatisfação. No caso alemão, é até uma curiosidade que o crescimento do populismo se deu fortemente no território da antiga Alemanha Oriental (que era comunista).
Para o Brasil, qual é o impacto do populismo de direita?
No geral, me parece que o Governo Lula tem sido extremamente positivo, e o toque decisivo é a defesa da normalidade, da institucionalidade, das relações civilizadas entre os Poderes. O Brasil voltou a um quadro de normalidade, inclusive no cenário internacional.
Nós tivemos uma situação meio caricatural disto com o governo Bolsonaro. O que me parece é que, ao longo dos anos de democracia, começados em 1985, depois consolidados em 1988, nós conseguimos ter governos de perfil centrista. Aqui, acolá, com um viés um pouco de centro-esquerda ou de centro-direita, mas dentro de um perfil moderado. Isto ocorreu com Fernando Henrique (Cardoso), que fez uma aliança à direita com os partidos representativos, PFL, MDB, pessoas de centro, liberais clássicos, mas ele também defendendo o Estado social que já está na Constituição. Esses dias, um professor de Manchester me falava que o Brasil é um país singular, porque buscou realizar um Estado social sem ter passado por nenhuma guerra. É diferente dos Estados europeus, em que o Estado social, de alguma forma, advém desta situação.
Mas veio o desgaste que tivemos com a sucessão de governos do PT. Diante dos problemas, das crises, pensou-se, talvez, que a resposta pudesse estar num certo populismo, que, inicialmente, se traduziu num populismo judicial, do Ministério Público que alimentou a ascensão de Bolsonaro ao poder, com a eliminação praticamente de todas as lideranças políticas mais expressivas, de alguma forma atingidas por todo o processo da Lava-Jato. É um pouco isto que permitiu a ascensão de Bolsonaro, que nós não saberíamos prever, um ano antes, que iria ocorrer. E isto vira um pouco também a caricatura desse movimento no mundo, é o antivax, é o negacionismo pelo negacionismo. Mas não acredito que, mesmo as forças políticas que o apoiaram, possam ser timbradas como de extrema-direita. A gente percebe hoje um movimento no sentido forte de pessoas que não comungam do chamado esquerdista ou esquerdizante, mas que também não subscrevem as pautas agressivas da extrema-direita. Então, a mim, parece que talvez hoje o próprio Congresso se traduza numa maioria conservadora, mas não de extrema-direita. Acho até que, na verdade, os personagens que possam ser no Congresso timbrados como tais, seriam em número reduzido.
O regime semipresidencialista seria o ideal para o Brasil? O Congresso ganhou muito poder sobre o Orçamento federal, deixando o Executivo a reboque.
Nós temos discutido isso, inclusive, vocês já acompanharam, no Fórum de Lisboa, esse debate. Algo teremos que fazer em termos de reforma do sistema de Governo, porque estamos vivendo uma anomalia. Isto tem a ver um pouco com a debilitação do poder do Executivo, acentuada a partir da administração de Dilma (Rousseff). O Congresso transformou as chamadas emendas propositivas em emendas orçamentárias impositivas. Isso virou lei. Além desse passo, as emendas foram crescendo, atingindo, no último ano, alguma coisa como R$ 50 bilhões. Portanto, daquilo que sobra para investimentos, uma boa parte é feita por meio das emendas parlamentares e, talvez, muito disto se perca em projetos locais, paroquiais, sem uma visão ou uma projeção estratégica. Isso se tornou um grave problema. O Congresso delibera sem qualquer responsabilidade.
Então, se caminhássemos para um modelo parlamentarista, em que a maioria congressual governaria, e teria responsabilidade governamental, certamente isso seria positivo. Mas é claro que envolveria outras reformas. Agora, temos de resolver esse dilema. Não podemos viver esta situação a que estamos nos acostumando, de uma série de confusões de atribuições. Precisamos organizar esse maracatu e buscar uma reforma que seja razoável. Ninguém é contra, considerando a complexidade política do Brasil, que o Congresso participe, inclusive com a indicação de emendas. A questão é saber qual é o valor adequado e que isso seja completamente transparente. Nós estamos falando de verba pública, de dinheiro público, que tem que ser destinado a finalidades públicas.
Não é razoável que uma questão de alta indagação política, e uma tarefa complexa, do ponto de vista político-administrativo, se transforme daqui a pouco num caso policial. Ninguém almeja isso.
O STF, inclusive, entrou nisso, por meio das decisões do ministro Flávio Dino.
Antes disso, o processo era da relatoria da ministra Rosa Weber. Veio para o ministro Dino por sucessão. E o que o Supremo está dizendo é mais ou menos óbvio: que as emendas parlamentares têm que ser rastreáveis, transparentes, que os autores sejam identificados e que haja fiscalização da aplicação dos recursos. Criou-se uma opacidade, uma névoa em torno disto, que, na verdade, é perigosa para o próprio Congresso Nacional. Não é razoável que uma questão de alta indagação política, e uma tarefa complexa, do ponto de vista político-administrativo, se transforme daqui a pouco num caso policial. Ninguém almeja isso. (…)
A popularidade do presidente Lula está em queda. O índice de desaprovação já supera o da aprovação. Como o senhor avalia o Governo hoje?
A popularidade vai e vem. Quando muito jovem, eu integrei o governo do Fernando Henrique Cardoso. Tenho muito orgulho disso, porque era uma equipe de pessoas muito qualificadas. Entre elas, tinha Pelé (risos). O Fernando Henrique dizia que a gente pode perder a popularidade, mas não pode perder a credibilidade. Então, acho que isso é fundamental. Muitas vezes, o Governo tem que tomar medidas que são à vista das pessoas, de imediato, impopulares. Por isso, pagará com o preço da impopularidade. Não me parece que isso seja decisivo, e me parece que a grande vantagem do Governo Lula é que ele devolveu ao Brasil um senso de normalidade. As instituições voltaram a dialogar e a funcionar. E é um governo difícil, talvez, seja até um governo de aprendizado, depois da inorganicidade, da desorganização perpetrada no Governo Bolsonaro, porque é praticamente a construção de um Governo de minoria.
Diante desse fenômeno das emendas parlamentares, um parlamentar da Câmara talvez disponha por ano, de emendas impositivas para destinar para o seu reduto, alguma coisa como R$ 50 milhões. Um senador, talvez, algo em torno de R$ 80 milhões. Isso pode variar de acordo com o ranking. Ao todo, estamos falando de R$ 50 bilhões. No modelo anterior, do chamado presidencialismo de coalizão, essas verbas eram distribuídas a partir de uma regra de fidelização, de quem apoiava ou não o Governo. Agora, não. Este é um outro modelo. Portanto, o Lula está governando sobre um outro estamento institucional e político, e precisa construir maioria nesse contexto. Também não basta distribuir ministérios. No modelo anterior era a fidelização via emendas propositivas, que eram liberadas ou não pelo Governo, discricionariamente, e a distribuição de ministérios para determinadas forças políticas. Hoje, muitos ministérios são extremamente débeis e dependem inclusive das emendas dos parlamentares.
Então, é um quadro muito singular. Não obstante, reformas importantes foram aprovadas, como a tributária. Tem-se construído soluções e, nesse sentido, eu avalio o Governo como positivo. É inevitável que, agora, com a retomada dos trabalhos do Congresso, certamente haverá uma nova formação ministerial. Mas, no geral, me parece que o Governo Lula tem sido extremamente positivo, e o toque decisivo é a defesa da normalidade, da institucionalidade, das relações civilizadas entre os Poderes. O Brasil voltou a um quadro de normalidade, inclusive no cenário internacional, como se pode avaliar.
Há uma queixa geral entre os parlamentares de que o Supremo legisla e tira poder do Congresso. O STF está extrapolando seus poderes?
Eu não vejo assim. É notório que o texto da Constituição de 1988 reforçou imensamente o poder do Supremo Tribunal Federal como corte constitucional, permitindo que um partido político, com um representante, leve ao Supremo a impugnação de leis votadas pelo Congresso Nacional. Mas isso foi uma opção do constituinte, considerando que, no passado, só o procurador-geral poderia fazê-lo. Entendeu que era necessário dar essa abrangência. Eu sempre digo que o Supremo não tem uma banca ali na frente pedindo que venham causas. As causas são provocadas, normalmente, pelo próprio sistema político, pelas suas dissidências. Por outro lado, o texto constitucional valorizou muito as situações de omissões inconstitucionais, casos em que a Constituição prevê um dever de legislar, que não foi satisfeito pelo Congresso Nacional. São casos em que o Supremo acaba por fazer a intervenção.
Se quisermos ficar num exemplo recente, vamos considerar a pandemia. Nós temos um sistema de saúde, o SUS, que é altamente complexo, porque exige a integração de União, estados e municípios. É claro que a cabeça do sistema é a União, inclusive provendo a maioria dos recursos. Com um Governo negacionista na pandemia, nós tivemos problemas seríssimos, porque era um Governo que, como os senhores sabem, recomendava a ivermectina ou a cloroquina para cuidar da Covid e avaliava que 3 mil pessoas ficariam doentes e haveria a imunidade de rebanho. E não era isto. Governadores e prefeitos de grandes cidades passaram a enfrentar o problema, porque eles administravam os hospitais, e foram ao Supremo pedindo para usar medidas que a OMS (Organização Mundial de Saúde) já recomendava: isolamento social, restrição de transporte, fechamento de atividades. E o Supremo, então, autorizou estados e municípios a tomarem essas medidas. Isso colocou o tribunal numa via de colisão com o Executivo federal.