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Há um movimento de militares que já percebeu que Bolsonaro não é o que esperavam

A pesquisadora Suzeley Kalil Mathias avalia os primeiros meses do governo Bolsonaro e frisa que o projeto do presidente para o país “fica cada vez mais claro”.

Depois de nove meses do início do governo Jair Bolsonaro, se havia alguma expectativa por parte dos militares de que eles “emprestariam alguma racionalidade” ao presidente, eles “já não alimentam expectativas”, diz a pesquisadora Suzeley Kalil Mathias à IHU On-Line. Segundo ela, “há ainda um outro movimento que já percebeu que o governo Bolsonaro não será aquilo que esperavam, que os militares não chegaram ao poder como acreditavam e agora esperam manter-se profissionais”. Ela lembra que a “natureza da atuação das Forças Armadas – FFAA (não no governo), especialmente do Exército, é corporativa: querem garantir seus interesses, com a reforma que está no Congresso em primeiro plano”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a pesquisadora comenta a atuação dos militares nos governos passados e pontua que “houve pouco ou nenhum interesse de FHC e Lula em estabelecer autoridade sobre as FFAA. Ambos buscavam ao mesmo tempo, utilizar as FFAA como funcionários do Estado para funções que não são de defesa (atividades subsidiárias) e reduzir sua presença política”. O governo Dilma, explica, buscou “transformar as FFAA em uma instituição como outra qualquer do Estado, numa burocracia eficiente. Ela entende, talvez ingenuamente, que se está em um processo de consolidação democrática e, portanto, as FFAA estão subordinadas ao poder civil”.

Ela menciona ainda que “há uma crença” no país de que os militares são nacionalistas, mas “o nacionalismo jamais foi hegemônico nas FFAA”. A pesquisadora também critica o uso indevido das FFAA como forças policiais na fronteira. “Sumariamente, as forças armadas não são polícias e, portanto, não estão preparadas para o combate ao crime organizado. Por outro lado, o uso delas como polícias tem trazido para dentro da instituição o próprio crime, como exemplificado pelo sargento que carregava cocaína no avião presidencial”.

Suzeley também avalia os primeiros meses do governo Bolsonaro e frisa que o projeto do presidente para o país “fica cada vez mais claro: a desestruturação do Estado, com afrouxamento de todas as instituições, criando o que a literatura chama de “Estados falidos”, para que se espalhe para o Brasil a forma de administração própria das milícias, que é o grupo representado pelo bolsonarismo”.

Suzeley Kalil Mathias é graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente leciona na Universidade Estadual Paulista – Unesp, no curso de graduação e pós-graduação em Relações Internacionais. É líder do Grupo de Estudos sobre Paz e membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional – GEDES.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Especialistas em estudos militares dizem que nos últimos anos houve uma mudança na formação dos militares brasileiros. Que aspectos têm caracterizado a formação dos militares nas últimas décadas e por que há uma mudança?

Suzeley Kalil Mathias – As mudanças no ensino militar são formais e de longo prazo. Não houve mudança substantiva na formação do oficial. Ademais, quem está hoje no Comando das Forças (generais da ativa) fez os cursos de Estado Maior até o final dos anos 1990. Houve alguma introdução de disciplinas/matérias na área de direito internacional e direitos humanos.

O sistema de ensino nacional é regulado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, de 1996. Nela se explicita (artigo 83) que o ensino militar constitui sistema próprio e que haverá equivalência de estudos. Assim, cada uma das Forças desenhou em Lei seu próprio sistema de ensino por meio dos seguintes diplomas: Aeronáutica – Lei 12.464/2011; Armada – 12 704/2012; Exército – 12 705/2012. Por meio dessas leis, as Forças Armadas – FFAA não podem mais discriminar o ingresso nas suas escolas por critérios próprios, valendo para as FFAA o mesmo que para qualquer concurso público.

No âmbito da pós-graduação, buscou-se maior aproximação com as escolas civis e na tentativa de adaptação das Escolas de Estado Maior (equivalente à pós-graduação) às regras da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, o que permitiu a certificação de cursos. Houve algum esforço no meio civil para criar linhas e áreas de pesquisa até bem pouco tempo exclusivas das FFAA. O mesmo não aconteceu nas escolas militares, que não são abertas a civis (apenas há contratação de professores, como sempre houve).

Qual é o perfil dos militares que estão no governo do presidente Jair Bolsonaro?

Suzeley Kalil Mathias – Os militares sempre se viram como uma casta à parte. Os que estão hoje no governo não são diferentes. São contemporâneos de Bolsonaro, da mesma geração, com um intervalo de cerca de cinco anos nas turmas de formação de oficiais. São militares formados ao longo do regime burocrático-autoritário, influenciados pelas divergências internas dos grupos militares no governo que atingia as próprias FFAA, mas que tinha na doutrina de unidade, do respeito à hierarquia e a disciplina, seu principal pilar. Esta pode ser traduzida em “não duvidar, não divergir, não discutir” (Rattembach, 1975). Foram formados no período pós-expurgo – é bom recordar que, logo após o golpe de 1964, o maior número de cassações e aposentadorias compulsórias aconteceu no interior das FFAA. Quando do processo de transição, estavam nos primeiros postos, como tenentes ou capitães. Viveram o desmonte da indústria de defesa e a penúria financeira nos quartéis, produto das diferentes crises econômicas. O grupo mais próximo a Bolsonaro é formado por comandantes da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti – MINUSTAH, que tiveram experiência em conflitos externos, mas em uma situação de ‘adaptação da lei’ para que pudessem atuar. Como a quase totalidade dos militares brasileiros não tem experiência em guerras – a exceção era Santos Cruz, que já saiu, que esteve na Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo – MONUSCO, no Congo. Por causa da atuação no Haiti, foram duramente criticados, ao que imputo seu ressentimento.

Há uma crença de que os militares são nacionalistas, e deveriam ser, pois são defensores da nação – e são parte da definição do Estado. No entanto, como os estudos dos teóricos da dependência mostram, em países como o Brasil, as classes e os grupos sociais se conformam (desenham) de maneira diferente, com características próprias. O nacionalismo jamais foi hegemônico nas FFAA. Hoje predomina uma visão, não muito distinta de outros grupos sociais, de corporação, de defesa de seus interesses, daí serem “entreguistas”.

A sua tese de doutorado tratou sobre a atuação das Forças Armadas na administração pública, em particular nas Comunicações e na Educação entre 1963 e 1990. Como se deu a participação das Forças Armadas na administração pública nessas áreas?

No livro construo um modelo de análise dividido em três categorias, cada uma conformada por um conjunto de variáveis que me permitem avaliar o grau de militarização do governo que aqui não tenho como reproduzir. Muito resumidamente, escolhi uma área técnica e uma social. Na área técnica (Comunicações), a participação militar era mais direta e melhor aceita. Por isso, era mais fácil fazer política. Já havia muitos militares, especialmente da Marinha, na área das Comunicações antes de 1964. Assim, eles foram os responsáveis pelas políticas públicas em mídias, informática e transportes. Na área social, a educação, a participação militar não foi muito grande em presença física, mas controlavam postos chave no desenho das políticas para educação. Acreditavam – as discussões hodiernas em educação parecem uma reedição daquelas do fim dos 1960 e 1970 – que havia uma ideologia comunista, antipatriótica, que estava destruindo as crianças e a família brasileira. Por isso, introduziram disciplinas “cívicas” – Educação Moral e Cívica (fundamental), Organização Social e Política do Brasil (médio), Estudo dos Problemas Brasileiros (Superior) –; fundiram disciplinas (como história e geografia, que se tornaram estudos sociais) e eliminaram outras – como filosofia e sociologia, que se restringiam aos cursos de nível médio que exigiam sua presença, como “normal” (formação de professores para o ensino fundamental) e administração de empresas (técnico – formação de auxiliar de escritório) –; criaram cursos profissionalizantes – de nível fundamental (ginasial, como atendente de enfermagem) e médio (como, por exemplo, auxiliar de enfermagem) e licenciatura curta (superior em dois anos, para formação de professores para o ensino fundamental) –; proibiram livros, estimularam a adoção de apostilas, mexeram nos planos curriculares, aumentaram/reduziram carga horária de cursos e disciplinas, etc.

Uma questão interessante, que não está no livro, é a do orçamento.

A partir de 1990, o que mudou na atuação das Forças Armadas na administração pública?

As mudanças começaram bem antes, com Geisel, que começou a “aparelhar” melhor os órgãos públicos com pessoas de confiança, independentemente de serem militares ou não. Com Sarney, houve, especialmente nas Comunicações (mídia), o uso de recursos e cargos como barganha e tentativas muito tímidas de mudanças na educação.

Por parte das FFAA, especialmente na passagem entre Sarney e Collor, houve uma espécie de retraimento, com as FFAA buscando cuidar de seus próprios interesses. Tanto assim que no processo constituinte, as FFAA foram bastante atuantes, montando um lobby especializado que garantiu na constituição o que elas queriam. No entanto, elas continuaram a ser afiançadoras do processo político, sendo ouvidas em cada possibilidade de crise que acontecia.

Outro movimento que pode ser percebido é que, regulamentada a entrada nos serviços públicos por concurso, muitos oficiais deixam as FFAA (o sindicalista Bolsonaro faz este movimento, mas por iniciativa da Justiça Militar, que o reforma – significa que ele ganha soldo) e ingressam em carreiras civis (iniciei uma pesquisa a respeito no início dos anos 2000, mas abandonei. Por isso, aqui é só uma informação, não tenho como comprovar). Isso implica em uma “militarização” da administração por transferência de ethos, de valores próprios da caserna para outros setores.

De uma forma geral, o que acontece é uma especialização maior das FFAA, buscando participar daqueles setores mais afeitos às questões da defesa e, hoje, inclusive por inércia e ação civil, da segurança pública.

Há uma infinidade de textos que ajudam a entender a passagem, os anos constituintes e após. Menciono os que tenho à mão:
Os livros/artigos de Eliézer Rizzo de Oliveira publicados a partir de 1988, especialmente o livro A tutela militar, escrito em conjunto com João Quartim de Moraes (o texto deste é seminal).

Como se deu a atuação das Forças Armadas nos governos FHC, Lula, Dilma e Temer?

Em pouquíssimas palavras (quase leviana): houve pouco ou nenhum interesse de FHC e Lula em estabelecer autoridade sobre as FFAA. Ambos buscavam ao mesmo tempo, utilizar as FFAA como funcionários do Estado para funções que não são de defesa (atividades subsidiárias) e reduzir sua presença política. Ou, como expressado em um artigo (escrito com Ana Penido) ainda inédito, “o poder político busca o controle civil reduzindo a autonomia militar, mas cede frente a esta, incorporando, às vezes ingenuamente, a concepção própria do meio militar, que é a internalização do conflito, reforçando, assim, o autoimputado papel de controle da ordem aos soldados.”

Os governos civis procuram, seguindo uma tradição brasileira de achar que a existência da Lei/regras escritas é suficiente para fazer com que algo aconteça, desenhar em documentos legais a Defesa e as funções das FFAA, daí a Lei Nacional de Defesa (o primeiro documento é de 1996), a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa. Na feitura de todos esses documentos houve grande participação dos militares.

A novidade com Lula, é que ele tinha um projeto de desenvolvimento nacional, muito nos moldes do que foi conhecido nos anos anteriores ao golpe de 1964. Neste projeto, a área de defesa estava fortemente contemplada, com um plano de modernização interessante. No entanto, esta política se chocava com a prática cotidiana que, como dito acima, tinha na função subsidiária das FFAA como principal atividade.

Dilma inaugura uma forma diferente, especialmente no segundo mandato, buscando reparação para o passado recente e transformar as FFAA em uma instituição como outra qualquer do Estado, numa burocracia eficiente. Há distribuição da conta da crise também para as FFAA. Ela entende, talvez ingenuamente, que se está em um processo de consolidação democrática e, portanto, as FFAA estão subordinadas ao poder civil.

Houve alguma mudança na atuação das Forças Armadas no governo Bolsonaro?

Sim. O ponto de inflexão, quando fica mais explícita a “tutela” militar sobre o governo, está no governo Temer, quando do twitte do Villas Bôas. Mas, desde que Temer assumiu e designou o general Etchegoyen para o Gabinete de Segurança Institucional – GSI, já se notou a mudança.

Até a posse de Bolsonaro, creio que havia alguma expectativa, por parte dos militares no governo, que eles emprestariam alguma racionalidade a ele. Hoje, passados nove meses de governo (uma gestação!), penso que aqueles que não são corporativos, que têm algum interesse na profissão, como Santos Cruz, já não alimentam expectativas. A natureza da atuação das FFAA (não no governo), especialmente do Exército, é corporativa: querem garantir seus interesses, com a reforma que está no Congresso em primeiro plano. Há ainda um outro movimento que já percebeu que o governo Bolsonaro não será aquilo que esperavam, que os militares não chegaram ao poder como acreditavam e agora esperam manter-se profissionais. Os indícios são o silêncio da caserna, especialmente da Armada e da Aeronáutica.

Por outro lado, o projeto Bolsonaro para o país fica cada vez mais claro: a desestruturação do Estado, com afrouxamento de todas as instituições, criando o que a literatura chama de “Estados falidos”, para que se espalhe para o Brasil a forma de administração própria das milícias, que é o grupo representado pelo bolsonarismo. Autoritarismo e repressão é o mote.

Os militares têm algum projeto específico para o Brasil? Em que consiste?

“Os militares” tratados genericamente, devem nutrir expectativas e desenhar planos para o país. No entanto, as FFAA, seja como instituição seja como corporação, não me parecem ter um projeto para o país. Elas estão voltadas muito para si mesmas, parecem viver em uma bolha tão rígida quanto a do Judiciário, que não consegue ver o país real. Porém, não me parece que devessem ter um projeto para o país. Pensar o país desde um ponto de vista institucional é importante, especialmente para definir as prioridades que julga essencial para que a instituição cumpra seu papel – os militares, mas não só eles, devem pensar a defesa do país. Porém, projeto de país é uma questão política e, portanto, não deve ser preocupação das FFAA, nem aqui nem em nenhum lugar.

É possível perceber disputas internas no interior do governo entre o que seria um projeto do próprio governo e o projeto dos militares para o país?

Parece-me que há várias visões em disputa no interior do governo, mas nenhum divide militares de um lado e civis do outro. Há unidade, um núcleo, que permitirá o que informei acima, que é uma desregulação completa das instituições, jogando como se fosse um “mercado” em que tudo é disputado, mas não haverá árbitro, e aí é o “quem pode mais, leva”.

Que papel as Forças Armadas têm exercido na Amazônia?

As FFAA sempre foram importantes para a Amazônia, especialmente naqueles territórios de difícil acesso. Nos quartéis de fronteira, muitas vezes os únicos moradores de etnia distinta são os oficiais das FFAA. Assim, elas têm uma função muito importante no sentido de mostrar que somos uma nação, que o Estado brasileiro inclui aqueles territórios.

Entretanto, é preciso considerar que a visão nutrida no interior das FFAA, e que muitas vezes “compramos” sem avaliar, é que elas só fazem o bem. Isso não é verdade. Elas detêm uma visão que as FFAA são as únicas preocupadas com a Amazônia e, portanto, o que elas imaginam ser bom é o que deve ser praticado. A visão de desenvolvimento que elas têm é ainda muito presa aos anos 1960, que indicava a ocupação do espaço e a construção de estradas como o suprassumo do desenvolvimento. Não há uma visão sequer dominante nos meios militares sobre desenvolvimento sustentável, sobre o papel das populações locais na constituição do desenvolvimento. Há uma sobreposição entre desenvolvimento como progresso, como refazer o caminho que os países europeus fizeram…

Assim, creio que a função das FFAA de defender o território é importante e deve ser enfatizada. No entanto, não deve ser papel das FFAA, e nem devem ser cobradas por isso, serem veículo de desenvolvimento.

A partir da sua pesquisa “Enfrentando la Delincuencia Organizada Transnacional: Estudio Comparado de las Estrategias Regionales”, o que evidenciou acerca da atuação das Forças Armadas brasileiras no combate ao crime organizado?

O livro, com um capítulo de minha autoria sobre o Brasil, está para sair. Sumariamente, as Forças Armadas não são polícias e, portanto, não estão preparadas para o combate ao crime organizado. Por outro lado, o uso delas como polícias tem trazido para dentro da instituição o próprio crime, como exemplificado pelo sargento que carregava cocaína no avião presidencial.

Como alguns analistas já apontaram, no caso do Brasil, como também do México, há uma inversão de papéis entre as FFAA e as polícias (estaduais e federais), com as primeiras sendo transformadas em forças auxiliares das segundas. A base disso é uma crença na incorruptibilidade das FFAA. No entanto, o uso indiscriminado delas em atividades policiais, ainda que nas fronteiras geográficas, traz sérios impactos na identidade do militar, não resolve o problema da segurança pública e trazem para dentro das Forças práticas que vêm se tornando corriqueiras nas forças policiais. Pesquisa conduzida por João Arruda em 2006 apontava que em épocas passadas, os crimes mais cometidos por militares eram a deserção e a insubmissão. Em 2000, esse número era de apenas 41% frente a 59% por acusações de roubo, extorsão, estelionato, homicídio qualificado e outros considerados graves. Este número hoje deve ser muito mais alto.

O governo Bolsonaro tem se posicionado contrário ao Sínodo Pan-Amazônico. Como a senhora interpreta a reação do governo ao Sínodo e a proposta do Sínodo em si?

É irrelevante minha posição, ou a da academia, sobre o Sínodo Pan-Amazônico. Este, como outros eventos da Igreja, foi decidido pelos religiosos e pela instituição muito antes do governo de plantão se sentir incomodado. Vivemos em um país religioso, no qual a Igreja (até hoje a única que escrevemos com maiúsculas é a católica) sempre gozou de grande prestígio e nem os mais autoritários generais do período autoritário criticavam a instituição, ainda que tenham perseguido padres e religiosos individualmente. Assim, é preciso perguntar ao governo o que o incomoda tanto. Afinal, o presidente se diz católico e a voz máxima da Igreja, gostemos ou não, é o Papa Francisco.

Recentemente o Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos – OEA decidiu, por iniciativa da Colômbia, invocar o Tratado de Assistência Recíproca – TIAR contra a Venezuela. Como a senhora interpreta essa decisão e quais devem ser suas consequências?

A decisão mostra que a OEA não representa os interesses latino-americanos e, pior, está se transformando em porta-voz, como sempre tentou, dos EUA. O TIAR tinha sido denunciado pelo México pouco antes dos atentados de 11 de setembro de 2001, que voltou atrás diante daquela situação, mas deixou o TIAR. A medida da Colômbia é ilegal, do ponto de vista do tratado, pois não existe agressão externa que justifique uma intervenção. Por outro lado, também não podem invocar uma questão humanitária, com base no capítulo VI da ONU.

A medida fará com que se sufoque ainda mais a Venezuela, alimentando de fato uma crise. A consequência é maior sofrimento humano e, caso seja realmente levado às últimas consequências, traremos uma guerra na América do Sul sem nenhum sentido. A posição do Brasil sempre foi negociadora, tanto assim que propôs e foi vitoriosa a transformação da região do Atlântico Sul como Zona de Paz. Hoje isso não é mais uma realidade, pois tanto os EUA quanto outros países estão militarizando a região. A postura em favor de solução diplomática e não pela força fez o Brasil ser respeitado no mundo e na região. Mesmo quando houve o golpe no Suriname (governo Figueiredo), apesar das escaramuças, mantivemos a serenidade e negociamos.

Do ponto de vista militar, se tivermos uma guerra, será escancarado o despreparo das FFAA brasileiras para enfrentar o conflito. E no caso remoto de resolver o problema rapidamente, com o “colapso” da Venezuela, quem ganhará algo com isso, ainda que tomemos do ponto de vista estritamente econômico e sem considerar as perdas humanas inclusive de longo prazo, será a Colômbia e os próprios EUA. Nós desmantelamos toda nossa capacidade de auxiliar em reconstrução pós-conflito, inclusive a de financiamento. Para este governo, talvez o “ganho” seja que provocará o desmatamento e a ocupação de uma parte da região amazônica escudando-se no conflito, o que pode, mas é bem pouco provável, dar alguma folga do ponto de vista da política ambiental e das cobranças, particularmente europeias, que as “políticas” adotadas pelo governo vêm sofrendo.

Por que e em que contexto foi criada a União de Nações Sul-Americanas – Unasul, o que ela significou para os países membros e qual é o significado da sua recente extinção?

Outra pergunta que há mais de uma tese a respeito…. Uma resposta mais formal é que o Brasil cumpriu a lei, pois a Constituição de 1988 determina que o país se esforce pela integração regional. Ela significou um atestado de maioridade para os latino-americanos, que poderiam resolver seus problemas contando apenas com seus próprios meios, pois excluía os países do Norte, que vivem outra realidade, muito diferente da regional sul-americana. Também atestou a capacidade negociadora do Brasil, especialmente do próprio Lula, que incluiu todos os países no acordo. Os diferentes conselhos (órgãos internos especializados) estavam funcionando muito bem e havia a perspectiva, no médio prazo, de vários acordos em diversas áreas, promovendo maior cooperação e menores custos para toda a região. Do ponto de vista econômico, se não tivesse a devassa lava-jatista, teríamos ainda ganhos relativos bastante significativos, pois tínhamos as melhores construtoras e melhor capacidade de financiamento. Sua extinção implica no retorno a uma condição que apequena o país e a região.

Qual foi a importância do Conselho de Defesa Sul-Americano para a soberania dos países membros?

O Conselho de Defesa estava arquitetando uma forma cooperativa de enfrentar os problemas regionais relativos à defesa. Estava construindo uma ideia de soberania que implicava em que a dissuasão fosse externa à região, e nesta prevaleceria a paz – no sentido de ausência de conflitos internacionais. Também estava servindo para o compartilhamento de treinamento militar e de experiências em indústria de defesa. Poderia vir a ser um mecanismo de capacitação tecnológica e científica na área de defesa.

Por outro lado, ao separar em conselhos diferentes a questão da defesa da de segurança, responsabilizando este último pelo combate ao crime organizado, estava iniciando um outro processo de cooperação em segurança policial, incluindo inteligência, que poderia vir a ser um modelo inovador no controle dos crimes transnacionais.

A partir do fim da Unasul, o que deve acontecer com o Conselho de Defesa e como se projeta a agenda de defesa para os então países membros da Unasul?

Se a Unasul está desmantelada, então não existem mais seus órgãos. Aquilo que foi construído está se desintegrando e voltaremos a uma situação de agendas de defesa nacionais, com a cooperação entre os países costurada em acordos bi ou trilaterais. A probabilidade, como mostra a questão da OEA que você levantou, é a não existência de agenda de defesa regional e o sucesso dos EUA em impor sua agenda a todos e cada um dos países sul-americanos.

Desde 2013 a senhora pesquisa a relação entre a política externa e a defesa regional no âmbito da Unasul no que se refere à sua operacionalização militar. Quais são as principais conclusões desta pesquisa?

Posso compartilhar o relatório, que está espalhado nos diversos artigos que publiquei no período. Sumariamente, é o que respondi antes sobre a Unasul, ou seja, estava-se desenhando entre os países da região uma política de defesa compartilhada com crescente coordenação das operações militares e também policiais. Também havia aumento do interesse por desenvolvimento de artefatos de defesa com tecnologia compartilhada. O impacto, tanto econômico quanto político, indicava maior autonomia regional no médio prazo.

Quais são as principais diretrizes do Prosur (Fórum para o progresso da América do Sul), que surge depois da dissolução da Unasul? O que o Prosur sinaliza? Há uma mudança geopolítica na região?

Desconheço qualquer documento relativo ao Prosur. Não estudei. Há um desvio na geopolítica na região, mas não tenho como precisar a mudança geopolítica. Aparentemente, com o fim do estímulo ao multilateralismo e o estímulo a acordos de baixo alcance (sobre um único tema ou envolvendo dois ou três países), a região voltará a ser o que Celso Amorim falou sobre o Brasil: voltaremos ao cantinho do mundo. Estamos em um momento de contestação forte da hegemonia estadunidense, com a China avançando, bem como com o aumento de poder da Rússia. É um novo tabuleiro, com regras ainda nada claras.

 

 

*Do Diálogos do Sul

 

 

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