Relatores da ONU se unem para denunciar a nova Política Nacional de Educação Especial (PNEE), sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em setembro de 2020 e mais conhecida na sociedade civil como “decreto da exclusão”.
A iniciativa, na prática, desobriga a escola a matricular estudantes com deficiência e permite a volta do ensino regular em escolas especializadas. Para entidades, isso é um retrocesso de décadas na educação inclusiva no país, além de uma violação a Constituição ao segregar alunos.
Numa carta sigilosa, enviada em fevereiro de 2021 ao governo e obtida pela coluna, os relatores alertam que a medida de Bolsonaro pode “restringir o direito à educação inclusiva para crianças com deficiências no Brasil”. O documento é assinado por Gerard Quinn, relator especial para o direito de pessoas com deficiências, e Koumbou Boly Barry, relatora especial para o direito à educação.
“O decreto promove o estabelecimento de um sistema separado de educação especial, incentivando estados e municípios a construir escolas e programas especializados para pessoas com deficiência”, aponta a carta. “Em particular, permite que as autoridades direcionem algumas crianças para escolas especiais se as crianças forem consideradas incapazes de “beneficiar-se em seu desenvolvimento quando incluídas em escolas regulares inclusivas e necessitarem de apoio múltiplo e contínuo”, alerta. Para os relatores, a política prevê “segregação”.
“O decreto também exige o desenvolvimento de critérios para identificar “estudantes que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas”, o que levanta sérias preocupações de que as autoridades possam, nesta base, excluir crianças com deficiências das escolas regulares e exigir ou pressioná-las a frequentar escolas ou salas de aula especiais”, denuncia a carta.
De acordo com os relatores, ao considerar a estratégia, o governo não consultou pessoas com deficiências ou suas organizações representativas, nem durante o processo de elaboração do decreto, nem antes de sua adoção formal. Segundo os relatores, a única consulta realizada ocorreu online e apenas 0,6 % dos entrevistados.
A carta constata que, em 1º de dezembro de 2020, o Ministro Dias Toffoli suspendeu a política do governo. No dia 18 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma sentença final adotada por maioria, para confirmar a suspensão do decreto.
Isso não impediu o governo a continuar a promover a ideia. No documento da ONU, os relatores lembram que, em 7 de janeiro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro disse que “a presença de estudantes com deficiência, em classes de estudantes sem deficiência, pode prejudicar toda a classe”.
Programa viola obrigações internacionais assumidas pelo Brasil
No documento, os relatores ainda se dizem “preocupados” com o fato de que as disposições contidas no decreto possam ser “contrárias às obrigações internacionais do governo brasileiro de promover a universalidade e a não-discriminação no gozo do direito à educação por todos”.
“Queremos expressar nossa séria preocupação com o desenvolvimento desta nova política nacional sobre educação especial e seu impacto negativo sobre os direitos das crianças com deficiência, bem como sobre a sociedade como um todo. Estamos preocupados que, se implementada, a nova política violaria uma série de obrigações em matéria de direitos humanos”, denunciam.
Na carta, os relatores ainda pedem que o governo adote “medidas necessárias, de acordo com as normas internacionais de direitos humanos, para garantir o direito das crianças com deficiência de ter acesso a uma educação inclusiva e de qualidade em pé de igualdade com os demais”.
O documento ainda pede que o governo responda a uma série de perguntas e solicita que Bolsonaro “altere ou revogue urgentemente as disposições do Decreto nº 10.502/20 pois consideramos este decreto incompatível com as disposições da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e outras normas de direitos humanos no que diz respeito ao direito à educação inclusiva”.
A postura dos relatores é aplaudida por Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “O decreto foi mais uma ação do governo Bolsonaro que vai na contramão dos avanços em termos de direitos humanos, políticas públicas e educação”, disse.
Há muitos estudos nacionais e internacionais que mostram que a educação inclusiva é o melhor caminho. Tanto a convenção da ONU quanto as políticas que vinham sendo elaboradas e implantadas no Brasil avançaram nessa concepção”, disse.
“O decreto, ao contrário, apesar de se dizer pela educação inclusiva, reforçava a educação especial excludente, imprimindo uma série de retrocessos nessa política”, alertou.
Andressa conta como organizações do campo dos direitos da criança e do adolescente e do direito à educação se uniram para entrar com ações no STF contrárias a esse decreto. “Foi uma vitória em meio a uma série de arbitrariedades de cunho privado conduzidas por esse governo que não está preocupado com a população, mas sim com seus próprios interesses marqueteiros e escusos”, disse.
Segundo ela, a legislação educacional, desde a Constituição Federal, passando pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Plano Nacional de Educação, determinam que a educação deve ser inclusiva. “A ONU e a OEA em suas recomendações ao Brasil, desde 2015, vêm reiterando a necessidade de cumprir com o PNE, mas os governos o têm escanteado, como mostram os balanços que publicamos todos os anos na Semana de Ação Mundial”, disse.
Para a especialista, o desafio para a garantia da educação inclusiva passa não só por barrar retrocessos nas políticas e diretrizes como este decreto como também por “garantir insumos adequados nas escolas e formação dos profissionais da educação para implementação das políticas”.
*Jamil Chade/Uol
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