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Os Estados desunidos da América assombrados pela guerra civil

Pesquisa: Nunca, desde a Guerra Civil, os americanos estiveram tão divididos, não apenas sobre Donald Trump, mas também sobre sua concepção da nação, seus valores e seus mitos fundadores, com visões opostas do passado e do futuro.

O Talbot Boys Memorial existe desde 1916 no gramado do tribunal em Talbot, na costa leste de Maryland. Lembra dos 84 soldados do condado que lutaram cinquenta anos antes contra soldados da União para defender a escravidão. Após o assassinato de George Floyd em maio, quando se falava em derrubar a estátua, o conselho do condado votou por 3 a 2 para mantê-la onde está há cento e quatro anos. “Sem justiça, sem paz!”, reclamaram os opositores. Uma cena da vida cotidiana nos Estados Unidos da América, que coloca os residentes de uma pequena comunidade uns contra os outros ao longo de uma história de 150 anos. A América então quase se dividiu em duas. A união foi feita pela força. É sólida?

Desde a eleição de Trump, as batalhas pela memória nacional revelam feridas abertas. Quer se esteja lutando para preservar monumentos confederados ou para limpar a memória das honras feitas a Jefferson – o pai fundador com 600 escravos -, a Cristóvão Colombo ou a outros conquistadores que massacraram índios, a história americana, fervendo de ódios realimentados, parece ter entrado em erupção. “A manutenção da unidade dos Estados Unidos da América não está garantida”, escreve hoje o cientista político David French. Neste momento de nossa história, não há uma única força cultural, religiosa, política ou social importante que una os americanos mais do que os separa.”

Veterano do Iraque, advogado que lida com questões de liberdade religiosa, católico, era republicano convicto – chegou mesmo a pensar em disputar as primárias – antes de se descobrir “sem tribo”, depois que em 2016 seu partido passou a ser quase irreconhecível. É desse ponto de vista de apóstata que ele observa a desintegração da unidade nacional e o imenso fosso ideológico que pode muito bem levar à divisão. Seu livro mais recente, Divided We Fall, faz parte de uma série de livros lançados este ano que refletem a sensação de caos: Why We’re Polarized, do influente analista político Ezra Klein, Union: The Struggle to Forge the Story of United States Nationhood, do ensaísta Colin Woodard, Break It Up: Secession, Division, and the Secret History of America’s Imperfect Union, de Richard Kreitner, jornalista do semanário de esquerda The Nation, ou ainda American Secession: The Looming Threat of a National Breakup, do ensaísta pró-Trump F. H. Buckley… Uma espécie de colapsologia nacional, que olha para a mesma catástrofe: a desunião.

“Guerra das culturas”

O estado de polarização extrema é talvez a única constatação compartilhada por toda a população. Mais de um quarto dos americanos terminaram uma amizade ou cortaram laços com um membro da família desde a eleição de Donald Trump. Porque as divergências não são apenas políticas. Em 2008, em The Big Sort, o ensaísta Bill Bishop já notava a auto-segregação dos americanos em comunidades social e politicamente homogêneas. Ora, quando pessoas com ideias e sensibilidades semelhantes se reúnem, elas tendem a se tornar mais radicais. Para Lilliana Mason, professora da Universidade de Maryland e autora de Uncivil Agreement: How Politics Became Our Identity (2018), a identidade política não é mais do que um componente da identidade social: tornou-se um “mega-identidade”, que fornece informações sobre “as preferências partidárias de uma pessoa, bem como sua religião, raça, etnia, gênero, bairro e mercearia favorita”. Tudo é político.

A expressão “guerras culturais” remonta a um livro publicado em 1991 pelo sociólogo James Davison Hunter. Questões de família e valores religiosos, feminismo, direitos dos homossexuais, raça, armas e aborto já haviam redefinido a política americana. No futuro, teorizou ele, as divergências agudas em torno dessas questões seriam a espinha dorsal da política em uma nação polarizada. A expressão foi retomada por Pat Buchanan, que proferiu um discurso na convenção republicana de 1992: segundo ele, Bill Clinton, então candidato, ameaçava o país com uma guerra cultural religiosa ao promover “o aborto sob demanda, direitos dos homossexuais, discriminação contra escolas religiosas, mulheres em unidades de combate”. Trinta anos depois, o movimento Black Lives Matter, as mudanças climáticas, as políticas de saúde pública e os direitos dos transgêneros foram identificados como novas frentes na guerra das culturas.

“Em geral, os americanos podem ser classificados em dois campos: aqueles que veem as mudanças do último meio século como tendo efeitos positivos principalmente em suas vidas e na sociedade americana, e aqueles que veem os efeitos dessas mudanças como sendo principalmente negativos”, escreve o cientista político Alan Abramowitz. David French coloca a questão de outra forma: “A esquerda – que domina a mídia, a academia e a cultura pop – tem sido extraordinariamente eficaz em mudar a janela de Overton”, que define a estrutura para um discurso politicamente aceitável sobre determinado assunto.

“O resultado é que as forças que empurram a borda direita da janela de Overton se tornaram tão fortes que, de muitas maneiras, elas a deslocaram”, continua French. Não há mais uma janela, há duas. [Elas] estão se distanciando tão rapidamente uma da outra que agora é difícil envolver-se em conversas de boa fé, mesmo as mais elementares, sobre algumas das questões mais críticas que definem a política americana” Nem sobre o contrato social, a forma de educar seus filhos, o direito ao porte de arma ou sua proibição, nem sobre a imigração, o direito de voto, os direitos reprodutivos das mulheres, as ciências climáticas ou o uso de mascara. Visões contraditórias do futuro e do passado.

Polarização negativa

Os Estados Unidos estão enfrentando um fenômeno de polarização negativa. Em outras palavras, a filiação a um partido político é feita menos por adesão a sua linha do que por ódio e medo do partido adversário. Não apenas os americanos estão divididos, como também fantasiam amplamente sobre suas diferenças. De acordo com artigo de 2018 do Journal of Politics, os republicanos acreditam que 32% dos democratas são LGBT (6% na verdade), que a metade são negros (24% na verdade), que 44% são sindicalizados (11%). Os democratas acreditam que 44% dos republicanos têm 65 anos ou mais – o número real é de 21%.

Cada lado, afirma David French, é animado pela “convicção ardente de que o outro lado não só quer que seus adversários percam batalhas políticas, mas quer que existam em um estado de subordinação permanente e perigoso (talvez mesmo fatal)”. Em três anos, o número de americanos que dizem se sentir justificados em usar a violência para atingir seus objetivos políticos aumentou de 8% para mais de 33%, e as vendas de armas atingiram níveis recordes neste ano.

Esse estado de evidente divisão reativa uma retórica de guerra civil. No início de outubro, foi em Gettysburg, Pensilvânia, o local da batalha de 1863 que simboliza a nação dividida, que Joe Biden fez um discurso que traçou paralelos entre os Estados Unidos da América da Guerra da Secessão e a situação atual: novamente, disse ele, o país vive uma “batalha pela alma da nação”. Duas semanas antes, foi a “grandeza” do general Lee – o comandante do exército confederado – que Trump escolheu homenagear: “ele deveria ter vencido”, quase, lamentou-se, se não fosse por Gettysburg.

“Guerra Civil Fria”

Então haveria duas Américas em vez da união que Trump governa hoje. Ele regularmente se apresenta como o presidente de apenas uma parte da América: aquela que o apóia. Se gabando de seu histórico na pandemia, por exemplo: “Se você tirar os estados azuis [democratas]”, declarou, “estamos em um nível que acho que ninguém no mundo poderia alcançar.» Remover os estados azuis? “Muitas vezes encarado como não muito sério ou ilusório, o novo secessionismo – um retorno à Confederação – revela divisões na vida americana que talvez não sejam menos intratáveis %u20B%u20Bdo que aquelas que levaram à primeira Guerra Civil”, escreve Richard Kreitner .

Em 2018, 31% dos americanos acreditavam que uma guerra civil seria possível em cinco anos. A perspectiva está sendo explorada pela mídia de extrema direita, tanto para alimentar o temor de uma vitória democrata e seu hipotético surto de “antifas”, quanto para intimidar os liberais. Em um sentido menos literal de guerra, fala-se sobretudo de uma “guerra civil fria”. O processo de impeachment de Trump, as teorias de conspiração da extrema direita sobre o Estado profundo ou manifestações violentas são às vezes analisados por ambos os lados como sinais de uma guerra civil em ato.

“A guerra civil é como o dragão gigante que cochila da história americana, sempre pronto para se levantar quando menos esperamos e cuspir contra nós seu fogo insuportável”, escreveu o grande historiador David Blight no [The] Guardian. Esta nação, a mais diversa do mundo, é ainda uma experiência, e estamos mais uma vez em uma situação política que nos faz pensar se não estamos à beira de um novo tipo de conflito civil.”

Demandas secessionistas

Após a Guerra Civil, em 1869, a decisão da Suprema Corte do caso Texas v. White afirma que os estados não têm o direito de se separar unilateralmente. Mas a tentação separatista não desapareceu. Em 2012, quando Obama foi eleito, o site da Casa Branca recebeu petições de secessão de 50 estados; a do Texas foi o mais popular, com mais de 125.000 assinaturas. Na sequência da vitória de Trump, foi a ideia de um “Calexit”, uma Califórnia independente (majoritariamente progressista e em desacordo com o país em muitas questões da sociedade) que de repente ganhou popularidade.

Em 2017, uma pesquisa revelou que mais de 20% da população de Vermont acreditavam que o estado deveria considerar “deixar pacificamente os Estados Unidos e se tornar uma república independente, como fez de 1777 a 1791″. Reivindicações secessionistas são encontradas até mesmo nos dois últimos estados a fazerem parte da União, Alasca e Havaí. Há movimentos separatistas ao nível das regiões, das cidades. Projetos de secessionismo étnico, como o da Liga do Sul, que sonha em reconstituir uma neoconfederação branca. Propostas transnacionais, como a de Cascadia, uma bio-república progressista formada pelo norte da Califórnia, Oregon, estado de Washington e as províncias canadenses British Columbia e Alberta.

A lista de movimentos separatistas ativos também compreende projetos de República Negra, Sioux e Lakota … Há também propostas para dividir os Estados Unidos em dois, cinco, sete, seis, nove, onze, doze, treze pequenos países. “Paradoxalmente, a desunião tem sido uma de nossas únicas ideias verdadeiramente nacionais”, escreve Richard Kreitner. A secessão é o único tipo de revolução que nós, americanos, conhecemos e a única que tivemos a chance de ver.”

O medo da desunião

Afinal, os próprios Estados Unidos nasceram da secessão. Na sua história de quatrocentos anos [dos Estados Unidos] da América, Break It Up: Secession, Division, and the Secret History of America’s Imperfect Union, Richard Kreitner afirma que os fundamentos da nação sempre foram frágeis: “Desunião – a possibilidade de que tudo isso desabe – é um fio oculto em toda nossa história, da era colonial ao início da República e da Guerra de Secessão e além, passando pelo lendário século americano até nosso próprio período de instabilidade.” O mito de uma nação unificada não seria nada mais do que isso, “um mito”. A constante ameaça de desunião mostra mais a fragilidade da união do que sua capacidade de resistência?

“Antes da Guerra [da Independência], um dos principais argumentos contra a saída do Império era que a identidade britânica comum era uma das poucas coisas que permitia que as colônias permanecerem em paz”, escreve Colin Woodard em Union: The Struggle to Forge the Story of United States Nationhood. Se uma nação pode ser descrita como um povo com um senso de cultura, história e pertença comuns, na verdade havia meia dúzia no interior desses “Estados Unidos”. Depois da Revolução Americana, completa, a “solução ad hoc” foi celebrar a vitória comum contra os britânicos, mas as diferenças fundamentais não foram abordadas. O que tinham em comum os primeiros treze estados? “Só poderia ficar claro para todos que essas independências separadas, como as pequenas cidades da Grécia, estariam eternamente em guerra umas com as outras e se tornariam, a longo prazo, meros apoiadores e satélites das grandes potências europeias”, escreveu então Jefferson.

“Os fundadores são atormentados pela desunião”, explica Romain Huret, historiador dos Estados Unidos e diretor de estudos da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS). Viviam a angústia da ideia de que a união é composta por estados com sistemas econômicos e sociais muito diferentes, valores muito diferentes, e que será necessário acomodar divisões muito profundas. O sistema político foi inventado para lutar contra as divisões.” A Convenção Constitucional de 1787 foi convocada em resposta a esta crise crescente e forneceu um remédio legalista: um governo federal mais forte, limitado por freios e contrapesos. ‘O objetivo era garantir que nenhum bloco de colônias – nenhuma cultura regional – pudesse impor sua vontade às outras”, escreve Colin Woodard.

“Isso ajuda a explicar por que o culto à Constituição persistiu por tanto tempo: a ideia de ‘nós, o povo’ é muito poderosa”, comenta Jeffrey Rosen, presidente do National Constitution Center, organização que convida liberais e conservadores a discutirem o texto para além de lógicas partidárias. “Nestes tempos de grande polarização, talvez a única ideia com a qual os dois lados possam concordar é que a Constituição representa os ideais dos americanos”, continua. Eles não concordam em absoluto sobre o significado do texto. Mas eles concordam que a Constituição é nossa estrela polar. ”

Uma “quarta batalha pela Constituição”

Mesmo assim, Jeffrey Rosen acredita que o país vive sua “quarta batalha pela Constituição”. As três primeiras – a Revolução, a Guerra da Secessão e o New Deal – “lidavam todos com o tamanho e a extensão do poder federal”. A quarta batalha “faz eco às três anteriores e resume o status único da Constituição na vida americana como o documento impar, que tanto nos divide quanto nos une”. Com a confirmação da juíza Amy Barrett, nomeada in extremis por Donald Trump, “há seis votos na Suprema Corte para reviver a Constituição originalista”, explica Jeffrey Rosen.

Originalismo é uma filosofia constitucional defendida em particular pelo falecido juiz Antonin Scalia, mentor muito conservador de Amy Barrett, que defende uma interpretação da Constituição no sentido que tinha quando se tornou lei. Assim, Clarence Thomas, outro juiz originalista da corte suprema, considera que a maior parte das principais decisões tomadas desde o New Deal traíram o sentido original da Constituição e deveriam ser anuladas. Em contraste, o “constitucionalismo vivo” acredita que o significado do texto deve mudar com o tempo, à medida que a sociedade evolui.

A quarta batalha pela Constituição pode levar a uma série de decisões transformadoras que podem restringir significativamente o escopo do poder federal pela primeira vez desde 1937. “Este texto tem valor sagrado para alguns”, analisa Romain Huret. Os conservadores acreditam que este texto é divinamente inteligente, que cada palavra foi pesada. Mas podemos fazer interpretações literalmente opostas. A palavra “bem-estar” [welfare], por exemplo: o que os Pais Fundadores entendiam por “bem-estar”? Um convite à felicidade, como o Iluminismo? Ou pode significar o direito à segurança social? ”

Em busca da “própria origem” da nação

“Pode-se dizer que a história americana, a interpretação da revolução americana, sempre foi uma questão política”, resume o historiador Pap Ndiaye. A história dos monumentos confederados “erguidos nos anos entre as guerras, na década de 1950, sempre foi denunciada. A população afro-americana nunca concordou com a construção dessas estátuas, há uma longa história de protesto. As estátuas do General Lee são um século de opressão e segregação no sul.” Elas narram uma genealogia da vontade de afirmar o poder branco. As agitações e debates em torno da história americana não são tanto uma “destruição de nossa história”, como disse Donald Trump, mas o sintoma óbvio de uma necessidade de reescrever uma narrativa nacional que não seja fragmentada e mistificada. “As nações, escreve a historiadora Jill Lepore em This America: The Case for the Nation (2019), “são compostas de pessoas, mas estão unidas pela história (…). Há uma geração, a história americana se desfaz e a nação se desagrega. As nações, para entender quem são, precisam chegar a um acordo com seu passado.”

“Há um debate muito acalorado na América sobre a relevância dos fundadores”, observa Jeffrey Rosen. À esquerda, os progressistas argumentam que a fundação da América foi fatalmente marcada pela escravidão, na qual os próprios fundadores, quando proclamaram a igualdade, possuíam escravos e quase todos se opunham ao direito de igualdade das mulheres, e que é crucial sublinhar a imperfeição da história. Os conservadores replicam que os fundadores, embora tenham traído seus princípios de escravidão, abraçaram os ideais do Iluminismo, que mais tarde foram usados %u20B%u20Bpara acabar com eles. “Enquanto a América tiver uma política racial, ela terá uma memória de guerra civil política”, escreveu David Blight em 2001 em Race and Reunion: The Civil War in American Memory.

E se a certidão de nascimento da América não fosse a Revolução, mas a chegada dos primeiros escravos? Os historiadores têm debatido a questão desde que o New York Times lançou em 2019 um projeto de longo prazo denominado “The 1619 Project”, em referência à data em que um navio transportando vinte homens vindos da África chegou a Virgínia. Mais do que um pecado original, a chegada desses primeiros escravos constituiria a “própria origem” da nação, o ato fundador de um sistema que irrigou tudo que faz a América, sua riqueza, seu racismo, seu sistema eleitoral, de saúde, sua cultura …

O jornalista responsável pelo projeto recebeu o Prêmio Pulitzer. Os historiadores agora pedem que tal prêmio seja revogado, em nome dos “erros factuais, generalizações especiosas e interpretações forçadas” que sustentam seu projeto. Nas próprias colunas do New York Times, o jornalista Bret Stephens critica o projeto e sua visão “monocausal” da história nacional. “E quanto, por exemplo, às ideias da Primeira Emenda? Ou o espírito de abertura que trouxe milhões de imigrantes a lugares como a Ilha Ellis? Ou a visão de mundo iluminada do Plano Marshall e da ponte aérea a Berlin? (…) Que lugar ocupa o racismo anti-negro nas desonras americanas, como a brutalização dos ameríndios, a lei de exclusão dos chineses ou o internamento dos japoneses da América durante a Segunda Guerra Mundial?“ Por meio dessas conversas, buscamos o princípio explicativo, a razão de ser do país, que não mais reina sozinho no mundo, nem vive à altura de seus ideais fundadores. Talvez um dia eles tornem possível ressoar os “acordes místicos da memória”, como dizia Jefferson, que têm o poder de ligar o passado e o presente em um todo harmonioso.

*Publicado originalmente em ‘Le Monde’ | Via Carta Capital/ Tradução de Aluisio Schumacher

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China, além de comprar soja da Tanzânia, amplia a compra da Argentina

A Argentina aumentará de três para quatro milhões de toneladas o volume de suas exportações de soja para a estatal chinesa Sinograin em 2021, conforme anúncio feito nesta sexta-feira (30) pelo Ministério das Relações Exteriores argentino.

O aumento foi confirmado na renovação de um convênio firmado em 2018 por Buenos Aires e Pequim, que também prevê incrementar o volume de óleo de soja vendido para a empresa chinesa de 300 mil para 400 mil toneladas.

A chinesa Sinograin vai aumentar em 25% as compras de grãos e óleo de soja, aumentando em 500 milhões de dólares o faturamento em relação a 2019.

Segundo a chancelaria argentina, isso implicará em receitas de US$ 1,5 bilhão (R$ 8,6 bilhões) a US$ 2 bilhões (R$ 11,5 bilhões), com base no atual patamar de preços do produto.

“A Argentina chegou a exportar US$ 85 bilhões [R$ 488 bilhões] e, em 2019, alcançou apenas os US$ 65 bilhões [R$ 373 bilhões]. É necessário recuperar esses US$ 20 bilhões [R$ 115] de diferença, porque aumentar as exportações permitirá que nosso país não tenha o clássico problema de estreitamento da balança de pagamentos que culmina em endividamento”, disse o chanceler Felipe Solá.

Mais cedo, o governo argentino conseguiu interromper uma greve de trabalhadores em processadoras de oleaginosas motivada por desentendimentos entre funcionários e empresários sobre o pagamento de bônus relacionados à pandemia da COVID-19.

O Sindicato de Trabalhadores e Empregados de Indústrias de Oleaginosas (SOEA), que representa os trabalhadores das empresas processadoras de grãos das cidades de San Lorenzo, Puerto General San Martín e Timbúes, de onde provêm cerca de 80% das exportações agroindustriais do país, reivindica o pagamento retroativo de bônus mensais por trabalhos realizados durante a suspensão de atividades econômicas por conta do surto do novo coronavírus, assunto que vem sendo debatido em uma série de reuniões mediadas por representantes do Ministério do Trabalho.

Nesta sexta-feira (30), no início da tarde, o sindicato iniciou uma greve que deveria durar ao menos 24 horas, mas foi suspensa após o governo publicar um decreto de conciliação compulsória, segundo o qual as partes terão 15 dias úteis para chegar a um acordo.

“A conciliação foi emitida e nós a cumprimos”, declarou à Reuters o secretário da SOEA, Daniel Succi, destacando que uma nova reunião com as empresas do setor deverá ser realizada na próxima terça-feira (3).

 

*Com informações do Sputnik

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Nova variante do coronavírus se espalha pela Europa, alertam cientistas

De acordo com o jornal britânico Financial Times, nova cepa surgiu na Espanha e é responsável pela maioria dos novos casos de Covid-19 no continente.

Uma variante do coronavírus, que surgiu entre trabalhadores no nordeste da Espanha em junho, se espalhou rapidamente por grande parte da Europa desde o verão e é a responsável pela maioria dos novos casos de Covid-19 em vários países do continente, que vive uma segunda onda de infecção.

De acordo com o Financial Times, uma equipe internacional de cientistas que rastreia o vírus por meio de suas mutações genéticas descreveu a disseminação da variante, identificada pelo acrônimo 20A.EU1, em um artigo que será publicado nesta quinta-feira (29). A nova cepa, informa o jornal britânico, já é responsável por mais de 80% dos casos no Reino Unido.

O estudo, que ainda não foi publicado em periódico revisado por pares, sugere que pessoas que voltaram de férias na Espanha desempenharam um papel fundamental na transmissão do vírus pela Europa. Essa é uma possibilidade que levanta indagações sobre se a segunda onda que está varrendo o continente poderia ter sido reduzida com uma melhor triagem em aeroportos e outros centros de transporte.

— A partir da disseminação da 20A.EU1, parece claro que as medidas [de prevenção contra o coronavírus] em vigor muitas vezes não eram suficientes para interromper a transmissão das variantes introduzidas neste verão — afirmou Emma Hodcroft, geneticista da Universidade de Basileia (Suíça) e líder do estudo, ao Financial Times.

Cada variante do vírus tem sua própria assinatura genética, por isso ela pode ser rastreada até o local de origem. As equipes científicas na Suíça e na Espanha estão examinando o comportamento da nova cepa para determinar se ela pode ser mais letal ou infecciosa do que outras.
Cepa é diferente de outras versões do vírus

De acordo com o jornal britânico, Emma Hodcroft enfatizou que não há “nenhuma evidência de que a propagação [rápida] da variante se deva a uma mutação que aumente a transmissão ou impacte o resultado clínico” . Mas ressaltou que a 20A.EU1 era diferente de qualquer versão do Sars-Cov-2 que ela havia encontrado anteriormente.

— Não vi nenhuma variante com esse tipo de dinâmica desde que comecei a observar sequências genômicas de coronavírus na Europa — disse Hodcroft ao Financial Times.

Os cientistas estão trabalhando com laboratórios de virologia para descobrir se a 20A.EU1 carrega uma mutação específica na proteína spike (espícula, em inglês), que o vírus usa para entrar nas células humanas, capaz de alterar seu comportamento.

 

*Com informações de O Globo

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Chefes do Facebook, Twitter e Google são chamados pelo senado americano; por quê?

A pouco menos de uma semana para a eleição presidencial dos EUA, os executivos-chefe de três dos maiores nomes da tecnologia mundial —Mark Zuckerberg (Facebook); Sundar Pichai (Google); e Jack Dorsey (Twitter)— vão testemunhar perante o Comitê de Comércio, Ciência e Transporte do Senado do país nesta quarta-feira (28), a partir das 11h (horário de Brasília).

Os depoimentos serão feitos por videoconferência. O anúncio da Comissão de Comércio do Senado disse que a audiência “oferecerá uma oportunidade para se discutir as consequências imprevistas do escudo de responsabilidade da Seção 230 e a melhor forma de preservar a internet como fórum para o discurso aberto”.

A Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações de 1996 é uma imunidade legal das empresas de tecnologia sobre a responsabilidade sobre o conteúdo publicado por usuários em plataformas como Twitter, Facebook e YouTube (pertencente ao Google). Ela vem recebendo fortes críticas do presidente Donald Trump e de legisladores norte-americanos.

Os políticos republicanos afirmam que a seção foi usada pelas empresas de tecnologia para censurar opiniões conservadoras. Os democratas dizem que essas mesmas empresas fazem pouco para moderar conteúdo falso. Já as companhias dizem que tomam essas decisões sem levar em conta pontos de vista políticos.

O Wall Street Journal reportou, no mês passado, que o governo americano quer mexer na Seção 230 alegando que ela dá muita margem de manobra às empresas para policiarem elas mesmas seus sites e assim escapa de processos na Justiça.

A audiência é separada de uma outra, planejada pela Comissão de Justiça do Senado, que autorizou na última quinta-feira (22) uma intimação a Dorsey e Zuckerberg depois de as empresas terem limitado o compartilhamento de artigos do jornal “New York Post” relacionados ao filho do candidato democrata à presidência, Joe Biden, que poderiam comprometê-lo.

Outro lado

Em seus testemunhos, Mark Zuckerberg, do Facebook, Jack Dorsey, do Twitter, Sundar Pichai, do Google, dirão ao comitê presidido pelo senador republicano Roger Wicker que a Seção 230 é fundamental para a liberdade de expressão na internet.

Dorsey, do Twitter, alertará o comitê que erodir a base da Seção 230 pode prejudicar significativamente a forma como as pessoas se comunicam online, deixando “apenas um pequeno número de empresas de tecnologia gigantes e bem financiadas”.

Zuckerberg vai afirmar, em seu testemunho, que as plataformas de tecnologia provavelmente censurarão mais para evitar riscos legais se a Seção 230 for revogada. Segundo ele, sem a legislação, as plataformas poderiam “enfrentar a responsabilidade de fazer até moderação básica, como remover discurso de ódio e assédio que impacta a segurança e segurança de suas comunidades”.

 

*Com informações do Uol

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Num plebiscito histórico, Chile escreverá a sua nova constituição

Em um plebiscito histórico, o Chile aprovou escrever uma nova Constituição. Antes que os relógios completassem às 21h15 da noite deste domingo, os chilenos já sabiam que este 25 de outubro mudaria a história do país. Com as televisões ligadas, e em pontos de concentração já tradicionais palcos de protestos, como a ‘Plaza de la Dignidad’ – antiga Plaza Itália, a população esperava ansiosa a contagem de votos.

Sem a certeza do resultado, a jornada de votações havia cumprido o objetivo de ser um aprendizado para as gerações futuras, com recordes de presença eleitoral, principalmente de jovens, em um país acostumado a não votar e, como tal, desacreditado da representatividade selecionada do Congresso ou da Presidência.

O plebiscito nacional 2020 chamou a atenção pela massiva participação destes jovens, os mesmos que iniciaram o que era uma pequena mobilização pelo aumento do preço das passagens de metrô, na capital do país, Santiago, há pouco mais de um ano, que foi respondida pelo governo de Sebastián Piñera com truculência desproporcional das Forças de Segurança, culminando, poucos dias depois, em um Estado de Exceção e no que se tornou o maior colapso social da história do país.

O que a população pedia nos mais de três meses de manifestações ininterruptas era justamente dignidade. Dignidade para conseguir chegar ao final do mês, pagando o preço – que anunciavam elevar – do transporte municipal, da cesta básica para além do pão como o único alimento garantido de pagar pelo salário mínimo, dos caros planos de saúde que sequer cobrem necessidades básicas e, para as famílias que ousassem, de creches ou universidades privadas – porque no país não existe nenhum dos dois gratuito.

Porque ao chegar ao final da vida, a aposentadoria privatizada tampouco fazia frente a qualquer destes altos custos de viver no país que decidiu ser o pioneiro do neoliberalismo no mundo, em plena ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990). O que a população entendeu é que este modelo foi viabilizado graças à Constituição, a que tem entre seus artigos o preceito de que o direito privado pode estar acima do direito a garantias básicas públicas.

E desde o dia que os chilenos entenderam, questionaram o mais forte que puderam: como o país ainda carregava em suas bases de construção uma legislação criada no regime ditatorial, 30 anos depois? De outubro a dezembro, o descrédito e a falta de representatividade na política, num país cujas eleições não são obrigatórias e detinha, há muito, baixa participação sufragista, deram lugar a uma população empoderada, que acreditava, pela primeira vez, que poderia decidir o futuro do país.

O sentimento, muito mais de batalhas naqueles meses, conseguiu fazer-se em conquista cidadã neste domingo. Desde a organização das filas de votações, em todos os setores do país, aonde voluntários davam prioridade aos maiores de 60 anos, grávidas e portadores de deficiência, sem se importar que o horário exclusivo para eles durava das 14h às 17h, até jovens caminhando ao largo das filas quilométricas para motivar eleitores a não desestimularem. A energia de contribuição cidadã era visível por todos os lados. O desânimo tampouco ganhava os que esperaram até 3 horas, em algumas filas maiores, exclamando a felicidade de participar deste processo histórico.

Pouco mais das 21 horas, os resultados já mostravam 77,5% pelo “aprovo” contra 22,5% de “rechaço”, com 19% dos votos contabilizados. A essa hora, a festa da cidadania na Plaza Dignidad já estava montada. Desta vez, a violência policial não seria capaz de conter a mudança de um país, decidida e escrita por seu próprio povo.

 

*Com informações do GGN

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“Recuperamos a democracia e a esperança”, diz Luis Arce após contagem extraoficial

Jornada eleitoral na Bolívia neste domingo (18) foi marcada por votação pacífica e alta participação cidadã.

“Recuperamos a democracia e a esperança”. Essas foram as primeiras palavras do candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), Luís Arce Catacora, após a divulgação da contagem rápida com 95% do padrão eleitoral, realizado pela empresa Unitel.

De acordo com os dados, o candidato, apoiado pelo ex-presidente Evo Morales, venceu as eleições realizadas neste domingo (18) já no primeiro turno. Os dados não são oficiais, mas uma pesquisa de boca de urna.

De acordo com o levantamento, Luís Arce obteve 52,4%; Carlos Mesa, 31,5% e Fernando Camacho, 14,1%.

Desde a Casa do MAS em La Paz, ao lado de apoiadores, Arce saudou os bolivianos e destacou a jornada pacífica realizada no país.

“Vamos governar para todos os bolivianos, vamos construir um governo de unidade nacional”, ressaltou antes de destacar seu compromisso com a retomada do desenvolvimento econômico do país.

Jeanine Añez, que se autoproclamou presidenta do país após o golpe de Estado contra Evo Morales também reconheceu o resultado eleitoral e a tendência demonstrada pela pesquisa de boca de urna.

“Ainda não temos a contagem oficial, mas pelos dados com que contamos, o sr. Arce e o sr. Choquehuanca ganharam a eleição. Felicito aos ganhadores e lhes peço governar pensando na Bolívia e na democracia”.

A demora na divulgação da pesquisa de boca de urna, que historicamente é difundida a partir do fechamento dos centros de votação, gerou indignação em todos os setores do país.

Mais cedo, em conferência de imprensa, o ex-presidente Evo Morales reafirmou a vitória do MAS e pediu que as entidades do país reconheçam o resultado da votação.

De acordo com a lei eleitoral boliviana, para vencer em um primeiro turno, é preciso ter 50% mais 1 dos votos ou ter 40% mais um e abrir dez pontos percentuais em relação ao segundo colocado.

 

*Do Brasil de Fato

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Live de Bolsonaro levou a demissão de funcionário do Facebook nos EUA

A revista New Yorker desta semana trouxe uma reportagem sobre como uma live do presidente Jair Bolsonaro levou à demissão de um especialista em cibersegurança da sede do Facebook, na Califórnia, Estados Unidos.

Foi a transmissão ao vivo em que o presidente disse que o índio “é cada vez mais é um ser humano igual a nós”, em janeiro, que levou David Thiel a travar uma batalha dentro da empresa para provar que a fala continha um “discurso desumanizador”, a fim de tirá-la do ar.

O primeiro passo foi mandar uma mensagem na rede corporativa para denunciar o conteúdo. O vídeo teria sido passado para especialistas em Dublin, na Irlanda, e no Brasil, e não foi retirado, já que a avaliação foi de que as diretrizes não foram violadas.

O especialista de Brasília escreveu que o “presidente Bolsonaro é conhecido por seu discurso controverso e politicamente incorreto”. “Ele está se referindo, na verdade, aos indígenas se tornarem mais integrados à sociedade (em vez de isolados nas tribos).”

Descontente com a decisão, Thiel apelou e conseguiu que quatro ou cinco membros da equipe de políticas de conteúdo o ouvissem por meio de vídeoconferência. Para isso, ele fez uma apresentação de slides explicando por que o discurso de Bolsonaro desumanizava os índios.

Em um dos slides, ele usou uma fala do próprio criador do Facebook para fortalecer o argumento. “Sabemos pela história que desumanizar pessoas é o primeiro passo para incitação à violência. […]Eu levo isso muito a sério e trabalhamos duro para tirar isso da nossa plataforma.”

Entretanto, apesar do apelo, o vídeo não foi retirado. “Em algum momento, alguém do Facebook poderia ter dito ‘nós continuares a abrir exceções sempre que os políticos violarem nossas regras'”, falou Thiel.

Em março, ele decidiu pedir demissão e postou um texto dizendo que o Facebook está se alinhando cada vez mais com com políticos e ricos poderosos para abrir exceções. Depois disso, houve uma proposta para que ele voltasse, dizendo que o vídeo seria excluído, mas ela não foi aceita.

 

*Com informações do Uol

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Ignácio Rucci: um divisor de águas na luta pela Pátria Grande

O dia 25 de setembro passado marcou os 47 anos de um fato trágico que assinala um ponto de aprofundamento na divisão da esquerda argentina, e porque não dizer continental, e que precisa ser devidamente debatido e esclarecido por todos que se empenham sinceramente pela luta dos trabalhadores e pela libertação e unidade da América Ibérica. Falo do assassinato, aos 49 anos de idade, do trabalhador metalúrgico e braço direito de Perón no movimento sindical: José Ignácio Rucci, executado por um comando ligado ao movimento Montonero.

Rucci é um típico exemplo das lideranças trabalhistas que emergiram com Perón. Ele nasceu em Alcorta, Provincia de Santa Fé, em 15 de março de 1924 e foi para Buenos Aires na metade da década de 1940. Lá começou a trabalhar numa montadora de automóveis chamada Hispano-argentina. Foi quando ingressou numa entidade sindical denominada União Obreira Metalúrgica (UOM). Embora sindicalizado, ele não tinha militância política, mas no 17 de outubro de 1945 estava na Plaza de Mayo apoiando o então Coronel Perón. Desde então ficou clara sua identidade política: nacionalista, metalúrgico e peronista.

Quando o Partido Justicialista foi proscrito como consequência do golpe sangrento articulado pela Embaixada dos EUA e que culminou na derrubada e exílio de Perón, Rucci passou a militar na chamada Resistência Peronista atuando principalmente no movimento sindical na UOM. Nessa época foi eleito delegado sindical na empresa siderúrgica SOMISA e assumiu a secretaria de imprensa da UOM. Um pouco depois chegaria a secretário geral dessa entidade sindical na seccional de San Nicolás de los Arroyos. No final dos anos 50, sob Arturo Frondizi, a militância sindical peronista de Rucci o levou à prisão.

Já fora da cadeia e descontente com antigos companheiros sindicalistas, renunciou a seus cargos de dirigente sindical, vendeu a casa que havia comprado a crédito – e ainda estava pagando – e adquiriu um automóvel para trabalhar como taxista ou chofer, como ainda se dizia na época.

Mas acabaria voltando à vida de sindicalista e com o assassinato de Vandor “El Lobo” em 1969, assumiu a Secretaria Geral da poderosa Confederação Geral do Trabalho, a CGT. Ainda como parte de sua trajetória sindical vale destacar que em 1970 foi convidado a discursar na sede da OIT (Organização Internacional do Trabalho) em Genebra. Em sua fala criticou a concepção materialista da vida, na qual o homem “está a serviço da economia e na qual os trabalhadores são um simples instrumento da riqueza de uns poucos”. Esse discurso, segundo os especialistas no tema, representa a concepção cristã de justiça social a que está vinculada a comunidade organizada que defendia Perón desde 1949.

Ignácio Rucci, do alto da direção da CGT, lutou, efetiva e consequentemente, pela volta de Perón. Sua posição era de que a nação argentina deveria se reconciliar e buscar uma convivência pacífica e que para isso era necessário o retorno do General. Rucci via com grande preocupação o crescimento da violência política e ideológica vivida pelo país e que se intensificava cada vez mais desde meados da década de 1960. “Os que nos sentimos peronistas, que nos sentimos argentinos, que estamos dispostos a oferecer nossa dignidade como homens a serviço da causa do povo, jamais deixaremos nosso profundo sentimento de nacionalidade para nos envolvermos em esquemas estrangeirizantes”, afirmou em 1973.

Discursos como esse granjearam um grande número de inimigos. Um dos setores que reagiu de forma mais virulenta foi o então recentemente criado Exército Montonero e a guerrilha de orientação marxista-trotskista, como o ERP (Exército Revolucionário do Povo). Mario Firmenich, então principal liderança dos Montoneros, afirmou: “os que ocorrem em traições e desvios estão passíveis de sofrer medidas punitivas para que se estabeleça a justiça popular”. Desde então, era comum que setores mais radicais entoassem cânticos em que Rucci era chamado de traidor e que prometiam que ele seria morto, promessa que por pouco não se cumpriu em 1972, quando escapou de um atentado.

Com o retorno de Perón e os tristes e historicamente mal explicados episódios de Ezeiza, Rucci insistiu no discurso conciliatório: “a reconstrução da Pátria é uma tarefa comum para todos os argentinos, sem sectarismos nem exclusões”. Pouco tempo depois, em 25 de setembro de 1973, foi assassinado quando saía de casa.

No primeiro momento não se soube quem executou o líder sindical mais prestigioso do peronismo, mas em junho de 1975 os Montoneros, numa revista batizada com o nome de Evita, comunicaram que Rucci havia sido executado num ato de “justiça popular”.

Hoje é consensual entre os peronistas que José Ignacio Rucci foi um líder nacional e popular, exemplo de trabalhador, patriota convencido que o justicialismo (peronismo) é o caminho para a liberdade e o progresso dos argentinos. Um texto em sua memória afirma que “desde muito jovem ele compreendeu o valor dos grupos intermediários da sociedade para a conquista do bem comum, quer dizer o bem-estar de todos e de cada um dos argentinos. Por isso dizia que a recuperação plena dos salários, a valorização do trabalho, a criação de novas riquezas, seriam necessários para a pacificação dos espíritos, requisito indispensável para encarar o processo de reconstrução e reconquista dos valores nacionais”.

Ainda segundo o referido texto, foi justamente essa busca pela concórdia em meio à radicalização exacerbada dos anos sessenta e setenta que acabou sendo fatal para Ignácio Rucci. Passados todos esses anos a história continuaria prisioneira dos discursos ideológicos. Com isso a verdade acaba sendo colocada em segundo plano e as consignas defendidas por ele com a própria vida, embora essenciais para a recuperação da nação, não prosperam.

25 de setembro: data para recordar a história, buscar a recuperação da memória de José Ignácio Rucci e reacender o debate sobre o real papel desempenhado pelas forças populares na nossa Pátria Grande que o imperialismo e nossa insistência em ocultar (e por isso repetir) nossos erros mantém fraturada.

*H. Raphael de Carvalho
Professor colaborador e Pesquisador associado do Inst. de Estudos Estratégicos (INEST/UFF) e Laboratório de Política Internacional (LEPIN/UFF). Mestre em Política pela PUC/RJ. Doutor em Política pela UFF.

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Farsa da meritocracia cria ressentimento explorado por populistas como Trump e Bolsonaro

Mérito é uma farsa. É assim que Daniel Markovits, professor de Direito na Universidade de Yale com um currículo invejável, começa seu livro “The Meritocracy Trap” (A armadilha da meritocracia, em tradução livre).

Se criticar a meritocracia não é novidade, o trabalho de Markovits chama atenção não só pela argumentação ao mesmo tempo profunda e acessível, mas principalmente por apontar que esse sistema não é bom nem mesmo para a elite.

De um lado, ele diz, a classe média não consegue pagar pela educação exclusiva da elite e fica excluída dos melhores salários, status e vantagens. De outro, os ricos têm enormes ganhos financeiros, mas levam vidas desgastantes e mais exigentes do que tinham as elites no passado.

Em entrevista à BBC News Brasil, Markovits explica os mecanismos pelos quais, na visão dele, a meritocracia gera desigualdade, cria ressentimento na classe média, e abre caminho para o populismo.

“A meritocracia produz uma elite que diz servir ao interesse público, mas que, na verdade, serve a si mesma. Dessa forma, o que faz é dar a todo o restante da sociedade uma razão poderosa para desconfiar das elites. E um elemento do populismo é a desconfiança em relação às elites”, diz.

Britânico, que passou os anos entre os Estados Unidos e a Inglaterra (e que conta adorar o Brasil), Markovits tem dois diplomas da Universidade de Yale, um da London School of Economics, além do doutorado na Universidade de Oxford. Entre as áreas de atuação, estão os fundamentos do direito privado, filosofia moral e política, e economia comportamental.

E o que Markovits diz sobre os constantes exemplos de pessoas que saíram de condições muito adversas e tiveram sucesso?

“A desigualdade que venho descrevendo é sistêmica, estrutural, mas não é absoluta. É sempre possível para as pessoas — ou por serem excepcionalmente talentosas ou por serem excepcionalmente sortudas — sair da armadilha”, diz. “Uma sociedade justa e eficiente não faz suas regras e políticas básicas com a exceção em mente, e sim com a maioria das pessoas em mente.”

O livro de Markovits sairá no Brasil pela Editora Intrínseca, mas ainda não tem data de publicação definida.

Leia os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil – A primeira frase do seu livro é: mérito é uma farsa. Como você define mérito?

Daniel Markovits – Mérito ou meritocracia é a ideia de que as pessoas devem se destacar não com base na classe social de seus pais, mas com base em suas próprias conquistas — em quão produtivas e habilidosas elas são. O problema do mérito na nossa sociedade é que se tornou um sistema fechado e auto sustentável em que ocorre o seguinte: as elites dão educação aos seus filhos de uma maneira que ninguém mais consegue pagar. Aí, as pessoas que têm acesso a essa educação incrível que ninguém mais consegue pagar, transformam o mercado de trabalho de forma que os trabalhos que pagam os melhores salários são exatamente os que exigem as habilidades que só a educação mais cara proporciona.

É um sistema fechado. Não estamos tratando das pessoas que vão bem na escola na maioria da sociedade, estamos falando de quem faz o seu melhor de acordo com um conjunto de padrões construídos especificamente para favorecê-las. É por isso que o mérito é uma farsa.

BBC News Brasil – Quais são as particularidades do ideal meritocrático em países com altos índices de desigualdade, como o Brasil?

Markovits – Tem dois pontos importantes. O primeiro é que em um país como o Brasil há muita desigualdade não-meritocrática — ou seja, uma desigualdade aristocrática antiga, em que elites herdam grandes propriedades ou outros tipos de capital. De forma hereditária, simplesmente. Ao mesmo tempo, o Brasil também tem uma classe profissional cada vez mais bem paga, como banqueiros e advogados que ganham muito dinheiro supostamente por suas habilidades. E é aqui que a meritocracia causa problema.

Em um estudo feito no Reino Unido, mas que reflete o que também ocorre em outros países, economistas mediram qual é o retorno para a sociedade de cada libra paga em salário para trabalhadores como lixeiro ou enfermeiro. O resultado é que, para cada libra paga a um professor, cuidador ou lixeiro, a sociedade tem 10 libras como retorno. Por outro lado, se olhar o advogado ou o banqueiro, o resultado é que os salários privados são maiores que os benefícios sociais. Assim, as pessoas que são supostamente super qualificadas, com salários enormes, na verdade produzem menos do que recebem. Enquanto isso, trabalhadores supostamente menos qualificados produzem benefícios sociais muito maiores que seus salários.

Em geral, você pensa que seu salário é seu mérito, mas é muito confuso e muito injusto.

BBC News Brasil – E o que você chama de herança meritocrática?

Markovits – Nos EUA, se você calcular a diferença entre o que uma família da elite investe na educação de seus filhos — taxas escolares, professores particulares, entre outros — e o que uma família da classe média investe e aplicar esse valor extra a cada ano no mercado de ações, isso dá muito mais que US$ 10 milhões por filho. No modelo aristocrático, isso seria a herança.

E é claro que esse investimento compensa. Apenas um a cada 75 americanos sem diploma de ensino médio terá ganhos ao longo da vida tão altos quanto a média de um advogado.

Todo esse dinheiro investido em capacitação dá às pessoas diplomas sofisticados, que geram enormes rendas, que, por sua vez, são investidas nos filhos e continua o ciclo em que a elite controla as vantagens.

BBC News Brasil – Mas, de tempos em tempos, vemos casos incríveis de pessoas que saem de condições muito pouco promissoras e conquistam posições consideradas de sucesso. Como você os explica?

Markovits – A desigualdade que venho descrevendo é sistêmica, estrutural, mas não é absoluta. É sempre possível para as pessoas — ou por serem excepcionalmente talentosas ou por serem excepcionalmente sortudas — sair da armadilha, partir de circunstâncias modestas e chegar a conquistas gigantes. Mas política social tem que ser feita para pessoas comuns, não para pessoas excepcionais. Uma sociedade justa e eficiente não faz suas regras e políticas básicas com a exceção em mente, e sim com a maioria das pessoas em mente.

BBC News Brasil – Você aponta que a meritocracia também prejudica os ricos. Como ela pode ser ruim para todos? E como você diferencia os efeitos para a classe média e a elite?

Markovits – A forma pela qual a meritocracia prejudica os mais pobres e a classe média é que, na hora de decidir quem entrará em uma vaga na universidade ou em um emprego, as pessoas com mais treinamento, cujos pais gastaram o que ninguém mais consegue gastar, terão os melhores resultados. Se você não é rico, não vai conseguir ter a melhor educação e será muito difícil entrar na elite por conta própria.

Por outro lado, todo esse treinamento que as crianças ricas têm não é divertido para elas, que estão sempre recebendo aulas particulares, lições de casa… Escolas particulares de elite nos Estados Unidos geralmente dão a alunos de 12 ou 13 anos até 5 horas de lição de casa. Você é constantemente testado. E a competição se tornou tão intensa que ter pais ricos não garante que você vai vencer.

Você também pode ser excluído, mesmo que tenha nascido com privilégios. Por exemplo, na década de 1990, a Universidade de Chicago admitia 75% dos candidatos. Este ano vai admitir 6%. Então, os ricos estão constantemente preocupados em serem excluídos e, quando eles conseguem esses altos empregos, os trabalhos exigem 70, 80 até 100 horas semanais de trabalho. Os ricos tornam-se uma espécie de mecanismo de sua própria exploração. É claro que eles ficam muito ricos com isso, mas não é uma vida divertida, significativa ou cheia de bem-estar. É uma corrida destrutiva, que prejudica até mesmo aqueles que a vencem.

BBC News Brasil – E quando você diz a estudantes da elite, como em Yale, que eles também estão nessa ‘armadilha’, como eles reagem?

Markovits – Uma das mudanças mais significativas na sociedade dos EUA nos últimos anos é que, há 20 anos, estudantes da elite se sentiam muito bem sobre si mesmos. Sentiam que mereciam suas vantagens e ansiavam por uma vida em que teriam admiração, riqueza e sucesso. Hoje, estudantes da elite estão incertos, com medo, e conscientes de que suas vantagens custam a exclusão de outras pessoas, e têm uma forte sensação de que pulam de desafio em desafio e não querem a vida dessa forma. Parece um pouco com 1968, no sentido de que os jovens privilegiados estão frustrados. E todas as outras pessoas na sociedade, que têm sido excluídas, estão ainda mais frustradas, com mais raiva e têm a sensação de que o sistema é prejudicial e injusto com elas. Acredito que os jovens veem o que está acontecendo e são uma força poderosa de transformação. Enquanto gerações anteriores queriam se tornar a estrutura de poder, os jovens de hoje querem desfazer a estrutura de poder.

BBC News Brasil – Nesse contexto, como você vê ações afirmativas como as políticas de cotas raciais nas universidades?

Markovits – Nesse ponto, os EUA e o Brasil têm semelhanças: são duas sociedades que foram construídas com base na escravidão e em uma incrivelmente brutal ordem de casta racial. É importante entender que essas formas de escravidão eram terríveis inclusive para os padrões de escravidão, em Roma, na Grécia antiga, na Europa medieval. Não era bom ser um servo ou escravo na França ou em Roma, mas ser um escravo nos Estados Unidos significava não ser considerado uma pessoa pela sociedade, era ser posse de uma pessoa. Era muito mais brutal. E o motivo pelo qual eu aponto isso é que os EUA e o Brasil ainda estão, necessariamente, no processo de reconhecer as formas de exploração racial que construíram esses países. E isso é separado da exploração econômica. Não é o caso de entender raça nos Estados Unidos ou no Brasil apenas pela lente de classe. E o que as ações afirmativas fazem é um pequeno passo para responder a séculos de uma brutal injustiça racial.

BBC News Brasil – O que você chama de “maternidade meritocrática”? Esse sistema afeta mulheres e homens de maneiras diferentes?

Markovits – Sim. Um exemplo específico mostra um fenômeno geral: na Faculdade de Direito de Yale, as mulheres são metade das turmas; nos mais requisitados escritórios de advocacia dos EUA, elas também são metade dos advogados iniciantes, mas se você analisa os profissionais em cargo sênior nesses escritórios, em torno de uma em seis ou uma em dez serão mulheres. Elas são metade nos primeiros anos da carreira, mas há uma grande queda nos estágios mais avançados. Por quê?

Há várias razões — assédio sexual no ambiente de trabalho, várias formas de injustiça de gênero no trabalho… Mas uma razão muito forte para isso é que em uma meritocracia, na qual a elite precisa educar seus filhos de forma intensa para manter o status familiar na próxima geração, isso exige pais extremamente qualificados para criar a criança meritocrática. Investir dinheiro não é suficiente. Você tem que direcioná-la de forma inteligente, ajudá-la quando se sentir estressada ou com incertezas, tem que ajudar na lição de casa e ensiná-la a trabalhar duro desde cedo. E essas são coisas que pais fazem melhor que ninguém — e, em um mundo sexista, quem ficará com essa tarefa será a mãe. Então o que você vê são mulheres da elite que têm uma educação tão elaborada quanto a dos homens, que começam carreiras fortes, e deixam o chamado mercado de trabalho para trabalhar como treinadoras para seus filhos. Afinal de contas, se você está em uma meritocracia, ser pai/mãe é um papel produtivo, porque produz o capital humano da próxima geração. Então essas mães são trabalhadoras meritocráticas. Essa é uma ação racional em uma sociedade meritocrática, mas tem uma gigantesca desigualdade de gênero associada.

É verdade que o período da gravidez e os primeiros meses após o nascimento são fases em que as mulheres quase que necessariamente têm um trabalho desproporcionalmente maior, mas acredito que o maior ponto aqui é o enorme esforço e atenção exigidos nos próximos 20 anos da vida desse filho. E isso é algo que poderia muito bem ser feito igualmente bem por homens ou mulheres.

Um dado interessante é que, se você quiser que a sociedade equilibre o trabalho doméstico entre homens e mulheres, uma das melhores formas de fazer isso é reduzir as diferenças salariais. Quando os profissionais mais bem pagos não têm salários tão maiores que as pessoas que recebem menos, homens ficam muito mais propensos a cuidar das crianças, porque em um mundo sexista os homens conquistam seu status com base no salário.

BBC News Brasil – O que o populismo tem a ver com a meritocracia?

Markovits – Há pelo menos duas conexões. A primeira é que a meritocracia produz uma elite que diz servir ao interesse público, mas que, na verdade, serve a si mesma. Dessa forma, o que a meritocracia faz é dar a todo o restante da sociedade uma razão poderosa para desconfiar das elites. E um elemento do populismo é a desconfiança em relação às elites. E vemos isso de forma concreta, como no exemplo dos banqueiros que colocaram a sociedade na crise financeira de 2007-2008. São pessoas que publicamente declaravam ser as mais inteligentes do mundo — que estavam empregando pessoas e construindo capital para todos, fortalecendo a economia -, mas que, na verdade, construíram riquezas gigantescas para eles mesmos e quase nada para os demais.

Outro ponto é que há uma espécie de psicologia obscura da meritocracia. O que expliquei antes, sobre a educação incomparável da elite, é uma forma de exclusão estrutural. Se você nasceu na classe média e não entrou na universidade ideal ou não conseguiu o melhor trabalho, a razão não tem a ver com você, individualmente, mas tem tudo a ver com estruturas de riqueza, poder e exclusão em uma sociedade meritocrática.

No entanto, o que a meritocracia faz é contar uma história que faz parecer que uma exclusão estrutural é, na verdade, uma falha individual. A meritocracia diz à pessoa que não passou na USP ou em Harvard que se ela tivesse sido um pouco mais estudiosa e dedicada, ela teria passado — ou seja, é culpa dela.

Há uma psicologia política muito sombria que aparentemente justifica a desvantagem. Se as suas desvantagens parecessem sem justificativas, imorais, naturalmente você procuraria argumentos sobre por que isso precisa mudar.

Mas se suas desvantagens parecem ser justificadas, isso produz raiva, ressentimento, e outros aspectos do populismo são a raiva, o ressentimento e a política destrutiva.

Dessas duas formas, a meritocracia cria as patologias que os populistas podem explorar e vemos isso nos Estados Unidos e também no Brasil, com Bolsonaro, que está jogando exatamente esse jogo.

Bolsonaro usa o ressentimento para desencadear batalhas culturais que, na verdade, não são as batalhas centrais das vidas das pessoas, a fim de conseguir apoio a uma espécie de autoritarismo em que ele vai atravessar todas essas elites e produzir quaisquer que sejam os resultados que ele se propôs.

BBC News Brasil – E para as eleições dos EUA, quais são os efeitos desse fenômeno que você descreve?

Markovits – A vitória de Trump em 2016 está muito conectada a esse fenômeno. Ele é exatamente o populista que levanta suspeita sobre as elites, que levanta a psicologia sombria das desvantagens para finalidades ainda mais obscuras. O trumpismo é um sintoma da desigualdade que eu descrevo.

No entanto, também acredito que a sociedade americana também começou a entender isso. A classe média nos EUA está entendendo que o que a prejudica não são imigrantes, não são pessoas negras, e sim uma estrutura econômica que mantém a classe média excluída dos bons empregos e vantagens. E acredito que inclusive a elite americana está começando a entender que não merece essas vantagens. Vemos isso no ciclo eleitoral.

Diferente de 2016, quando a sensação era de que Hillary Clinton não entendia por que Trump era tão popular, nesta eleição temos a sensação de que o Partido Democrata, e particularmente Joe Biden, entende o que está acontecendo e está fazendo uma campanha que fala com a classe média.

Estou otimista em relação ao futuro, de que a sociedade está cada vez mais entendendo o que deu errado estruturalmente e construindo vontade política para tratar isso. O tempo vai dizer.

BBC News Brasil – A própria palavra mérito é frequentemente citada por políticos. Neste mês, o ministro da Fazenda do Brasil, Paulo Guedes, usou o termo mérito ao defender a necessidade de maiores salários no topo do funcionalismo, como para o presidente e ministros do Supremo Tribunal Federal. Como você analisa o uso desse conceito na política?

Markovits – Isso é complicado. Há vários dados que mostram que, pelo menos para as pessoas mais ricas, salários mais altos não são necessários para que trabalhem. Elas continuarão a trabalhar mesmo que não recebam tanto assim.

Ao mesmo tempo, há um problema diferente que é o fato de a meritocracia ter criado uma diferença salarial gigante entre o que as pessoas podem ganhar no setor privado e no público. Por exemplo, na Inglaterra, em 1900, os salários mais altos eram de funcionários públicos. Se você quisesse ser rico no setor privado, tinha que ser dono de propriedades, você não ficava rico trabalhando. A forma de ficar rico trabalhando era ter um trabalho no governo.

Hoje o secretário do Tesouro dos Estados Unidos provavelmente ganha US$ 250 mil por ano, enquanto o presidente do JP Morgan talvez receba US$ 25 milhões por ano. Um juiz talvez ganhe US$ 200 mil por ano, enquanto um advogado sócio de um escritório muito lucrativo talvez ganhe US$ 5 milhões em um ano.

Os trabalhos públicos não pagam nem perto do que a iniciativa privada paga. E isso leva a uma grande migração de pessoas em empregos públicos para o setor privado e a uma questão de política de influência. Quando pessoas que trabalhavam no governo e vão para empresas privadas, grande parte do que fazem é usar suas conexões no governo para obter tratamento favorável.

Então salários mais altos para cargos no setor público que o ministro mencionou não resolveriam este problema. Não seriam altos o suficiente. Para solucionar essa diferença, seria necessária intervenção regulatória para reduzir esses salários extremamente altos no setor privado. Não há uma boa razão para um presidente de um banco receber US$ 25 milhões por ano.

BBC News Brasil – Como um homem britânico, com dois diplomas de Yale, um doutorado em Oxford, como você se vê nesse sistema que descreve?

Markovits – Eu ataco um sistema que de muitas formas me beneficiou e não escondo isso. Mas a natureza desse argumento não tem a ver com um depoimento pessoal. Não estou argumentando baseado em minha experiência. O que o meu livro faz e o que faço nesta entrevista é descrever fatos e conectá-los a causas econômicas, fazendo conclusões morais sobre eles.

BBC News Brasil – Considerando todos os danos da meritocracia que você mencionou, qual é a solução? Existe uma forma de realmente premiar esforço e dedicação de cada um?

Markovits – Temos dois pontos a serem trabalhados. O primeiro é democratizar a educação, com grandes investimentos públicos para educar mais gente e uma série de reformas para dificultar que escolas privadas se tornem tão exclusivas — ou seja, estimular essas escolas a terem mais alunos e mais alunos da classe média, dificultando que os ricos separem seus filhos no âmbito da educação.

Nos EUA, por exemplo, essas escolas privadas são organizadas como entidades filantrópicas, então elas têm isenção de imposto. Assim, o governo poderia retirar essas isenções se elas não tiverem diversidade econômica entre os alunos. Na Alemanha, Berlim proibiu creches de cobrar mais de 8 euros a mais, por mês, do que o Estado paga, então a cidade tornou quase impossível ter creches exclusivas incríveis. A melhor forma de fazer dependerá da política, Constituição e ordem social de cada país, mas é necessário pressionar a educação da elite para que essas escolas se tornem mais abertas.

O outro ponto está no mercado de trabalho: é preciso favorecer trabalhos da classe média. Isso exige inúmeras políticas diferentes, uma delas são os impostos. Nos EUA, a renda do trabalho da classe média é mais tributada do que qualquer outra renda. Outra é ter representação sindical em conselhos de empresas. Poderia inclusive haver um ministro da classe média, para promover os interesses desse grupo.

Politicamente, o ponto central é o seguinte: o sistema que temos hoje não ajuda ninguém. Não é bom para a classe média, que é excluída em termos de renda, status e vantagens. E também não é tão bom mesmo para os ricos, que têm enormes ganhos financeiros, mas não têm vidas que os tornam felizes. Politicamente, o ponto central é todo mundo perceber que todos nós temos algo a ganhar mudando esse sistema.

BBC News Brasil – O Brasil reformou a legislação trabalhista. De um lado, o governo disse que a ideia era flexibilizar as relações de trabalho. De outro, sindicatos argumentaram que seria uma precarização do trabalho. Um mercado de trabalho mais rígido ou mais flexível afeta a desigualdade?

Markovits – O que os neoliberais chamam de um mercado de trabalho flexível produz desigualdade. É realmente importante para a igualdade que os trabalhadores possam obter treinamento no trabalho e progredir dentro de suas empresas. E, quando você tem um mercado de trabalho flexível, fica muito difícil para as empresas treinarem seus trabalhadores, porque se uma faz isso, um concorrente dela vai contratar essas pessoas treinadas. Então, o que acontece é que ninguém treina e os profissionais que estão na base continuam na base.

 

*Lais Alegretti/BBC Brasil

 

 

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Trump diz que terá alta hoje, o que aumenta a desconfiança de uma ‘farsa da facada americana’

Donald Trump anunciou no Twitter que deixará o hospital militar Walter Reed Medical Center hoje às 18h30 (19h30 no horário de Brasília).

Michael Moore talvez tenha razão quando insinuou que essa internação de Trump pode ter sido uma jogada de marketing.

Como nessa história tudo é estranho, nós brasileiros que conhecemos bem o jogo sujo da direita na base das farsas e fake news, não nos assustamos. Quem tem um presidente como Bolsonaro, colocado no poder por uma combinação de fraudes e farsas, incluindo a da facada, comporta-se como cão picado por cobra que tem medo de linguiça.

Para aumentar ainda mais as nossas desconfianças, Trump fez um discurso de super homem que vive num super país, com a seguinte fala:

“Me sentindo muito bem! Não tenha medo da Covid. Não deixe que isso domine sua vida. Desenvolvemos, sob a administração Trump, alguns medicamentos e conhecimentos excelentes. Sinto-me melhor do que há 20 anos!”, postou.

 

*Da redação