Numa noite gelada de abril, cerca de 5.000 pessoas se aglomeravam para participar do evento “Desbloqueio da mente milionária” no ginásio da Portuguesa, no centro de São Paulo. O objetivo era transformar cada cérebro presente em uma “máquina de prosperidade”.
Quem apontava os caminhos do “desbloqueio” era o coach Pablo Marçal, 36. Para além do círculo de seus milhões de seguidores nas redes sociais, ele ficou conhecido por liderar uma expedição que quase terminou em tragédia ao Pico dos Marins (SP), na Serra da Mantiqueira, e pela tentativa frustrada de concorrer à Presidência da República em 2022.
“Alguém aqui duvida que eu posso comprar 2.000 Camaros hoje?”, perguntou Pablo aos “generais”, como chama seus fãs —homens jovens principalmente.
Entre gritos de “amém” e “glória a Deus”, o público repetia cada palavra dita pelo coach, que é evangélico e adota um tom messiânico em suas falas. Entre elas uma sentença recorrente: “Vítimas não prosperam.”
Um participante que saiu de Várzea Paulista (SP) assistia de pé ao monólogo de pouco mais de seis horas.
Desde que assinei uma mentoria [de Pablo Marçal], em 2022, comecei a realizar tarefas diárias e desenvolvi o hábito da leitura”, contou o jovem, que trabalha como soldador e sonha com abrir a própria empresa.
Pablo —que não gosta de ser chamado de coach; prefere mentor ou estrategista digital— começou a falar às 20h em ponto. Terminou no dia seguinte, perto das 2h. Mais de 180 mil assistiam ao encontro pelas redes sociais.
Quem conseguiu ficar até o fim recebeu grãos de feijão “para semear a prosperidade”.
Mas descobriu que, para passar de fase no jogo do milhão, era preciso assinar um outro curso, de R$ 3.000 ao ano.
Sermão da montanha
Para muitos dos espectadores no evento na Portuguesa, chegar perto de Marçal era uma chance de chamar sua atenção – disputada literalmente no grito. “Um dos sócios do Pablo conta que se jogou na frente do carro dele e implorou por uma chance. Ele gostou disso e chamou para trabalhar”, relata um aluno. “Muita gente quer fazer isso agora. E ele já disse, brincando, que na próxima vai atropelar.”
A anedota ajuda a explicar como o influencer convenceu 32 pessoas a escalar uma montanha em um dia de chuva e ventos de 100 km/h sem o treinamento adequado. Deu tudo errado, e uma operação de resgate do Corpo de Bombeiros foi necessária.
O caso rendeu a Pablo Marçal um processo por tentativa de “homicídio privilegiado” —quando se comete o crime impelido por relevante valor moral ou social. Em nota, a defesa de Marçal afirma que colabora com todas as investigações, “manejando inclusive os recursos jurídicos cabíveis para ver logo encerrado esse caso”.
Ele está proibido de voltar às escaladas sem autorização da Defesa Civil.
E essa não é a única encrenca judicial em que esteve envolvido. Em 2010, Pablo foi condenado por participação em uma quadrilha que desviava dinheiro de bancos. Apesar da condenação, a pena foi prescrita em 2018.
Procurado, ele não atendeu aos pedidos de entrevista da reportagem do UOL.
Em suas apresentações, Pablo Marçal narra que nasceu num carro, em 1987, a caminho do hospital, em Goiânia, e demorou a chorar, levando a mãe a pensar que estava morto.
O culto à própria personalidade envolve histórias sobre triunfos em competições esportivas, brigas com sócios e decisões acertadas.
No evento da Portuguesa, ele contou que certa vez foi agredido quando trabalhava em uma empresa de telefonia e decidiu não acionar a Justiça.
A indenização renderia, segundo ele, R$ 1 milhão. “Hoje, é o que tenho só neste braço”, disse, mostrando o relógio suíço Patek Philippe que trazia no pulso e dizendo que seus negócios “alcançam” dez dígitos em valor de mercado.
Um antigo colega de trabalho, que prefere não se identificar, diz duvidar que o caso de agressão tenha acontecido. E afirma que Marçal, desde sempre, exagera em seus relatos.
Por exemplo, ele não teria nascido pobre, como diz, mas numa família de classe média em Goiânia. E não teria tanto sucesso quanto vende por aí.
“Repara que ele não diz que tem R$ 1 bilhão. Usa as palavras ‘acesso’, ‘alcanço’, ‘posso comprar’. É uma tática dele”, diz um observador.
Em 2022, quando decidiu entrar para a política, o coach declarou à Justiça Eleitoral possuir quase R$ 97 milhões em bens. Aos 36 anos, ele hoje está à frente ou tem participação em empresas de eventos, cursos digitais, uma incorporadora e um resort.
Após o episódio nos Marins, em janeiro de 2022, Pablo dobrou o número de seguidores no Instagram, onde divulga sua agenda e ostenta uma vida de luxo.
Meses após a escalada frustrada, lançou a pré-candidatura à Presidência e, depois, a deputado federal, mas os planos esbarraram em uma disputa entre caciques do seu partido, o Pros, e no paredão da Justiça Eleitoral. O coach goiano acabou fazendo campanha para Jair Bolsonaro (PL), candidato derrotado à reeleição.
No dia 11 de maio, Marçal foi condenado a pagar multa de R$ 5.000 e a retirar de suas redes um vídeo relacionando o presidente Lula (PT) ao “kit gay”.
Hoje, afirma, não tem mais o sonho de ser presidente. Seu propósito, diz, é ajudar as pessoas a enriquecer.
Dinheiro, segundo ele, tem valor apenas se estiver a serviço do “Reino”.
Dos centavos ao milhão
Pablo gosta de contar que se propôs a juntar R$ 1 milhão quando leu, aos 12 anos, o best-seller “Pai Rico, Pai Pobre”, de Robert Kiyosaki e Sharon L. Lechter.
Queria atingir a meta antes dos 60 anos e afirma que conseguiu aos 27 —embora pessoas próximas desconfiem do feito. “Ele já deveria ter mais de 30 anos quando atingiu R$ 1 milhão. A não ser que levasse em conta a valorização futura de alguma propriedade”, avalia um amigo, também sob condição de anonimato.
Os caminhos até a fortuna eram improváveis. Ele queria ser pastor, mas não conseguiu. Fez direito, mas não se tornou juiz nem delegado, como queria.
Na empresa de telefonia onde foi atendente de call center, chegou a liderar mais de mil funcionários, mas deixou o posto após dar uma bronca considerada desproporcional na própria equipe, relata uma testemunha.
O coach também trabalhou na empresa do sogro e tentou a carreira como consultor. Mas a escalada financeira só aconteceu mesmo depois que começou a promover eventos, cursos online e seus próprios livros motivacionais.
Em meio à ascensão evangélica no país, Pablo Marçal formou seu público falando em espiritualidade, família, empreendedorismo e segredos do sucesso.
Entre a fé e o cifrão
O estilo workaholic e verborrágico de Marçal não rende apenas cifras, mas atritos. Ele é admirado no meio neopentecostal, onde há fiéis que abraçam com mais facilidade o discurso da prosperidade. Marçal ocupava cargos de liderança na Igreja Videira, em Goiânia, quando aprendeu técnicas de coaching e decidiu seguir carreira, dando seu primeiro curso para frequentadores da igreja.
“Era um curso muito apelativo, com manipulação de emoções, para as pessoas saírem de lá com pensamentos positivos e a crença de que eram capazes de tudo”, diz um desafeto, para quem Marçal é “um excelente manipulador”.
Críticos citam como exemplo da megalomania o dia em que tentou fazer uma mulher sair de uma cadeira de rodas e andar no palco em um evento em Goiânia, em 2021.
Quem trabalhou com o coach antes da fama diz, porém, que ele sempre foi “extremamente compromissado” com o trabalho e a família. Um ex-subordinado o considera “meio doidão, mas com grandes ideias” e talento para se comunicar, apesar das diferenças políticas.
A maior crítica de quem acompanhou a sua ascensão é a de que ele vende algo que não consegue entregar.
“Ele realmente acha que pode fazer as pessoas mudarem de vida”, diz um ex-colega. “E muitos mudam mesmo, deixam vícios. Mas as pessoas não vão virar um Pablo Marçal comprando os cursos dele. É como se o Neymar ensinasse outras pessoas a serem o Neymar. Não tem como.”
Em sites de reclamações, alunos se queixam do conteúdo “repetitivo”, que serve para vender um curso atrás do outro, e também do tom político adotado nos tempos de campanha. A bronca, porém, é pequena perto do fascínio exercido sobre a maioria dos mentorados, segundo pessoas próximas.
Teologia da prosperidade
Coaches religiosos como Marçal são fruto da “cultura gospel” que emergiu na virada do século 20 para o 21, explica Magali Cunha, doutora em ciências da comunicação e pesquisadora do Iser (Instituto de Estudos da Religião). Essa cultura absorve noções das teologias da prosperidade, da guerra espiritual e da confissão positiva – o hábito de dizer coisas positivas para alcançar objetivos.
Para Pedro Pamplona, teólogo e pastor batista em Fortaleza (CE), Marçal é parte de um fenômeno que ele denomina como “teologia coaching”, que veio para substituir a própria teologia da prosperidade. “Em vez de barganhar com Deus no âmbito sobrenatural, essa teologia traz a prosperidade para os ‘meus’ atos”, analisa.
O problema é que a dimensão da meritocracia não alcança os chamados perdedores. O processo de coaching, explica a estudiosa, não leva em conta a estrutura em que as pessoas vivem, nem desenvolve empatia diante do revés. “Não importa quem não consegue. O fracasso do outro é problema do outro.”
*Do Uol Prime
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