Por Ângela Carrato*
A Globo, principal emissora de TV aberta do Brasil, está comemorando 60 anos de existência.
Para a maioria dos expectadores, a data não diz nada, mas a família Marinho, que detém a concessão, resolveu comemorar de “forma diferente”.
Despachou Renata Vasconcellos, que divide a bancada do Jornal Nacional com William Bonner, para diversos locais do país, de onde, da sala de visita de alguma família, apresenta o noticiário.
O objetivo é tentar mostrar sintonia e presença no cotidiano de seu público.
Em 2024, o Grupo Globo registrou lucro líquido de R$ 1,99 bilhão, um aumento de 8% em relação ao ano anterior.
Apesar do resultado positivo, a sua dívida bruta teve aumento de 30%, totalizando R$ 6,6 bilhões. Como o valor da marca Globo é estimado em R$ 9,14 bilhões, a situação está longe de ser confortável.
Motivo que possivelmente explique as razões para a família Marinho tentar passar a limpo a história da emissora, que está longe de ser pautada pelo compromisso com os fatos e a notícia e, menos ainda, com a democracia e o interesse da maioria da população brasileira.
Não há nada mais distante do que qualquer sintonia entre a Globo e o efetivo interesse de seu público.
Chega a causar repulsa em quem estuda a história da mídia brasileira, em especial a da TV Globo, como é o meu caso, ver e ouvir Renata Vasconcellos, com suas caras e bocas e suposta simplicidade, da sala de visita de casas pobres, perguntar às pessoas reunidas em torno de um aparelho de TV, a relação de suas vidas com os 60 anos da emissora.
A resposta, para lá de óbvia, é que todos gostam e se lembram de programas e novelas que “marcaram” suas vidas.
A própria Renata tem feito questão de enfatizar que está sendo super bem recebida por estas famílias, que, não raro, a tratam como “velha amiga” e oferecem o que possuem de melhor.
Em Manaus, por exemplo, saboreou um peixe preparado especialmente para a ocasião.
Quanto mais simples as pessoas, mais se desdobram para receber da melhor maneira possível suas visitas, especialmente uma visita tida como celebridade, que “entra” todos os dias em suas casas e traz as notícias do Brasil e do mundo.
Mas será que essas pessoas teriam o mesmo comportamento se soubessem que a TV Globo, nos dias atuais e ao longo de sua história, mentiu e distorceu os fatos mais relevantes para a vida de cada um de nós?
O que a Globo escondeu do seu respeitável público é muito grave e não pode ficar esquecido.
Vamos aos fatos.
Na última quinta-feira (24/04), o ministro do STF, Alexandre de Moraes, expediu o mandado de prisão para o ex-presidente da República Fernando Collor. A Globo deu a notícia com destaque, mas contou apenas o que lhe era conveniente.
Collor, que foi preso 30 anos após renunciar à presidência para escapar do impeachment, vai cumprir condenação de oito anos e 10 meses, por corrupção na BR Distribuidora. Através de indicados, ele favoreceu contratos e recebeu propina de R$ 20 milhões.
Propositalmente, o passado de Collor, que tem tudo a ver com a Globo, não foi mencionado.
Para entender o assunto, é preciso recuar a 1989, quando após 21 anos de ditadura militar, apoiada pelo então patriarca Roberto Marinho e pela Globo, os brasileiros foram às urnas escolher diretamente o presidente da República.
Um total de 22 candidatos, dos mais diversos espectros políticos, se apresentou dentre eles nomes como o trabalhista Leonel Brizola (PDT), o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ex-presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães (PMDB), o socialdemocrata Mário Covas, os conservadores Aureliano Chaves (PFL) e Paulo Maluf (PDS) e um até então desconhecido, Fernando Collor de Mello, que disputou pelo minúsculo PRN.
Roberto Marinho, que proibiu a cobertura pela Globo dos comícios gigantes em defesa das eleições diretas, não queria nem ouvir falar na chegada ao poder de candidatos progressistas como Brizola ou Lula, que eram os mais cotados.
Daí ter colocado todas as suas empresas, em especial a TV Globo, a serviço da criação e vitória de um nome que supostamente atendesse aos interesses populares e lhe fosse submisso.
Surge a candidatura de Fernando Collor, apresentado pela emissora como o jovem, bonito e vigoroso governador de Alagoas, mas, sobretudo, um “caçador de marajás”.
Para reforçar a pré-campanha de Collor, a TV Globo colocou no ar até uma novela, “Que Rei Sou Eu”, escrita por Cassiano Gabus Mendes e exibida às 19h.
A trama era uma paródia da realidade vivida pelo Brasil, que passava pela transição do governo militar para as eleições diretas e apresentava a boa vida de uns poucos, os “marajás”, como sendo o principal problema a ser combatido.
O Jornal Nacional, que omitia a atuação e história dos demais candidatos, dava total cobertura e destaque a Collor no suposto combate aos “marajás” em seu estado.
O resultado não poderia ter sido outro.
Para o segundo turno foram Collor e Lula. Brizola, sem dúvida o mais preparado e experiente para o cargo, perdeu por pouco para Lula e ficou fora da disputa.
O que motivou enorme comemoração na Globo e no Comitê de Campanha de Collor, uma vez que consideravam mais fácil derrotar Lula do que Brizola.
A Globo favoreceu descaradamente Collor no último debate contra Lula. Na edição, além de dar maior tempo de fala para Collor, colocou no ar uma espécie de os melhores momentos de Collor e os piores de Lula.
Além disso, permitiu todo um teatro da parte de Collor, que levou pastas vazias e as apresentou como “dossiês contra Lula”.
O resultado dessas manipulações foi a vitória de Collor com 55% dos votos. Vitória que a maioria da população rapidamente passou a amargar.
Um dia após a posse foi anunciado um plano econômico que desesperou milhares de pessoas, exceto ricos e bilionários.
Numa atitude desastrada, Collor e sua ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Melo, congelaram por 18 meses todos os depósitos em contas correntes, cadernetas de poupança e overnight que excedessem a 50 mil cruzados novos (NCz$)
A então moeda brasileira, o cruzado novo, foi substituído pelo cruzeiro. Os preços e salários foram congelados, ao mesmo tempo em que se aumentava o preço dos serviços públicos como gás e energia elétrica.
A reforma ultraliberal de Collor eliminou também vários tipos de incentivos fiscais e abriu o país para importações, com enormes prejuízos para a indústria nacional.
Os muito ricos e bilionários, que foram avisados com antecedência (“informações privilegiadas”) sobre as medidas, puderam tomar providências e as aplaudiram.
Enquanto isso a classe média e os mais pobres se viram privados do dinheiro que pouparam, levando muita gente à penúria, ao desespero ou mesmo ao suicídio.
A Globo, no entanto, seguiu firme ao lado de Collor, destacando cada vez mais seu preparo físico, suas caminhadas matinais e sua paixão por jet-ski.
Só quando tentou criar o próprio esquema político e econômico e sair da tutela da família Marinho é que denúncias de corrupção contra ele e sua família passaram a ser divulgadas.
Atribui-se à Globo a visibilidade que os “caras pintadas”, jovens que defendiam o impeachment de Collor, ganharam. Manifestações que impulsionaram pedido nesse sentido, que passou a tramitar no Congresso Nacional.
Com Collor, Roberto Marinho conseguiu um duplo feito: elegeu e depois derrubou um presidente que não atendia mais ao seu comando. O grupo Globo e seu patriarca, que cresceram à sombra da ditadura militar, mostravam-se dispostos a tudo fazer para tutelar o nascente poder civil.
Itamar Franco, o vice de Collor que assumiu em meio à trapalhada encontrada, mal teve tempo para estabilizar a economia. Situação que abriu caminho para o sociólogo tucano Fernando Henrique Cardoso chegar ao poder, com, claro, as bênçãos da Globo.
FHC não só pediu para que esquecessem o que havia escrito, como aprofundou e consolidou o neoliberalismo iniciado por Collor, com a redução dos investimentos públicos e privatização de importantes empresas estatais.
Durante seu governo foram vendidos o sistema Telebras, os bancos Banerj, Banestado e Banespa, e privatizadas empresas como Embraer, Vale do Rio Doce e Companhia Siderúrgica Nacional.
Por pouco a Petrobras também não entrou na lista, numa onda que abriu completamente o mercado nacional para empresas estrangeiras e reduziu em mais de 20% os funcionários públicos em nível federal e estadual por meio de aposentadorias antecipadas ou demissões.
Data daí a piora dos serviços públicos com a terceirização de trabalhadores. Piora extremamente agravada após o golpe, travestido de impeachment, contra Dilma Rousseff, em 2016, que levou ao poder Michel Temer e possibilitou a vitória de Jair Bolsonaro, em 2018, outra inexpressiva figura que contou com o decisivo apoio do Grupo Globo.
Não falta nem mesmo quem veja no capitão expulso do exército um novo Collor, seja pelo porte atlético, seja pela paixão por jet ski.
Outra semelhança se deve ao fato de que Bolsonaro, mesmo nunca tendo gozado da amizade dos sofisticados Marinho, os proporcionou o convívio com o seu ministro da Economia, Paulo Guedes, que era e continua sendo um querido para a emissora, em sua sanha de tudo privatizar.
Em 2013, o Grupo Globo, já sem Roberto Marinho e comandado por seus três filhos, chegou a admitir que “errou” ao apoiar a ditadura militar. Esse reconhecimento, pelo visto, não continha qualquer sinceridade.
Tanto que em editorial sobre o assunto, tenta justificar o injustificável e lembra que tal apoio se deu “ao lado de outros grandes jornais como Estadão, Folha, Jornal do Brasil e Correio da Manhã”.
Some-se que o grupo não pensou duas vezes para voltar a apoiar outro golpe, desta vez contra Dilma três anos depois.
Agora o Grupo Globo tenta passar ao largo da prisão de Collor, como se não fosse responsável pelo deplorável papel que sua criatura exerceu na vida pública brasileira, da mesma forma que não fez qualquer autocrítica sobre o apoio a FHC, incluindo o combate sistemático às candidaturas de Lula à presidência em 1994 e 1998 e, menos ainda, ao apoio que deu ao governo Bolsonaro.
Quem se recorda que o Jornal Nacional nunca mencionou os mais de 100 pedidos de impeachment protocolados contra Bolsonaro?
Se os humildes telespectadores da Globo soubessem dessas atuações e de como a emissora, não tendo conseguido impedir a vitória de Lula em 2022, fez de tudo para sabotar seus dois primeiros governos, dificilmente Renata teria a acolhida que vem recebendo.
Se a vida melhorou para as pessoas mais simples, beneficiários de programas como Luz para Todos, SUS, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, Mais Médicos, Brasil Sorridente, Farmácia Popular, SAMU, Minha Casa Minha Vida, Desenrola e valorização do salário mínimo acima da inflação, todos eles contaram com a oposição sistemática da família Marinho.
Depois de não ver nada de errado no governo Temer, que praticamente acabou com os direitos trabalhistas, e de apoiar entusiasticamente a Reforma da Previdência de Bolsonaro, a Globo não tem medido esforços para desgastar Lula nesse terceiro mandato.
A emissora passa ao largo de mostrar para o seu público o desastre dos seis anos de governos golpistas (2016-2023) e já tem candidato para 2026: o extremista de direita que governa São Paulo, Tarcísio de Freitas, do Republicanos, agremiação ligada à Igreja Universal do Reino de Deus e linha auxiliar do PL de Bolsonaro.
Pelos parâmetros da Globo, Tarcísio é o candidato moderado de que o Brasil precisa.
Seria quase infindável a lista das ações da família Marinho e da TV Globo contra a soberania brasileira e os interesses da maioria da nossa população nas últimas seis décadas, grande parte dela já registrada em textos anteriores de minha autoria.
Considero indispensável, antes de concluir, lembrar três outras ações que deixam claro como a emissora e seus proprietários não mudaram de atitude.
Em meados de 2023, após forte campanha da emissora a favor de que fosse prorrogada a desoneração da folha de pagamentos para 17 setores da economia, a medida foi aprovada.
Foram inúmeras as reportagens veiculadas pelo Jornal Nacional, dando conta da necessidade da medida para “evitar o desemprego” em setores chave da economia.
Nada mais mentiroso.
A tal desoneração, que nunca foi devidamente explicada pela emissora, significou prorrogar por três anos a isenção do pagamento de impostos por parte de 17 setores, um deles o das comunicações, do qual o Grupo Globo é o principal integrante.
Dito de outra forma, ao utilizar o seu noticiário para defender a isenção de impostos para grandes empresários e para si próprio, o Grupo Globo retirou do orçamento público recursos que poderiam ser investidos em políticas que interessam diretamente à maioria da população.
A ação nefasta do grupo Globo e de sua principal emissora não termina aí.
Defendeu com unhas e dentes, durante os últimos dois anos, a criminosa gestão do bolsonarista Roberto Campos Neto, que deixou como herança, em sua despedida do cargo, uma taxa de juros de 12,25%, a segunda maior do mundo.
Taxa que seu sucessor, indicado por Lula, Gabriel Galípolo, vem enfrentando as mais diversas pressões, capitaneadas pelo mercado e pela própria Globo, quando se trata de reduzi-la.
Para os menos versados em economia, taxa de juros elevada é sorvedouro de recursos que poderiam ser utilizados na ampliação e criação de novas políticas públicas. Taxas de juros altas interessam apenas à elite financeira nacional e internacional.
Quando o Jornal Nacional esconde de seu público, como tem feito desde o final do ano passado, que as emendas parlamentares secretas, “inovação” do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira, nada mais são do que espaços para corrupção grossa, isso significa desinformação e mentira para o seu público.
Já imaginou, por exemplo, qual seria a reação das pessoas se o JN desse ao assunto o mesmo espaço que dedicou à criminosa Operação Lava Jato ou à condenação e prisão, sem crime, de Lula por 580 dias?
Possivelmente – e com toda razão – haveria manifestação permanente nas mais diversas capitais e em frente ao Congresso Nacional. Desta vez, manifestações legítimas e não as manipuladas como a dos “caras pintadas” ou as batizadas como “Jornadas de Junho”, em 2013.
O silêncio da Globo é exatamente para evitar que tais manifestações aconteçam.
Não menos importante, nos últimos dias, desde que a Controladoria Geral da União (CGU) e a Polícia Federal denunciaram e fizeram operações para prender integrantes da quadrilha que lesou o INSS e deu mais de R$ 6,6 bilhões de prejuízos a aposentados e pensionistas, é o Jornal Nacional tentar jogar este escândalo de corrupção no colo do governo Lula.
O esquema começou no governo Temer, intensificou-se durante os anos de Bolsonaro e foi desbaratado agora. Trata-se de mais um esquema pesado de corrupção que Bolsonaro e sua turma deixaram como herança.
A mídia sabe disso, mas faz cara de paisagem, ao mesmo tempo em que tenta implicar o irmão mais velho de Lula, José Ferreira da Silva, o Frei Chico, no escândalo, pelo simples fato de ser vice-presidente de um dos sindicatos da categoria.
Detalhe: a entidade da qual é vice-presidente não está envolvida no esquema e nem ele foi citado.
É conveniente tentar implicá-lo para atingir Lula e jogar água no mentiroso moinho de que “o PT é corrupto”.
Talvez tudo isso explique o desespero que tomou conta de Bolsonaro e de sua turma quando perderam a eleição. Desespero que volta a rondar a classe dominante brasileira diante da decisão de Lula de que é “candidatíssimo” para as eleições de 2026.
É de se esperar que a Globo e a família Marinho, que consideram normal Bolsonaro internar-se pela sexta vez e transformar o espaço de uma CTI em Brasília em palco para lives e encenações políticas, voltarem suas baterias novamente contra Lula, a fim de impedir sua reeleição.
Até porque os esforços para inviabilizaram seu terceiro mandato se mostram cada dia mais ineficazes.
Integra esta estratégia da Globo a busca por maior proximidade com seu público, a pretexto dos 60 anos.
Estratégia que cumpre dois objetivos: manter tanto a sua audiência quanto o seu valor de mercado. Se o expectador é também o eleitor, quanto maior o número de expectadores, mais valiosa será esta marca.
É essa estratégia que está por trás de Renata Vasconcellos ter trocado, nem que seja por alguns dias, o confortável e refrigerado estúdio onde atua, no Rio de Janeiro, por embrear-se pelo Brasil.
Por desconhecer o que fez e continua fazendo a TV Globo, as pessoas recebem Renata de coração aberto e são sinceras no carinho que demonstram. Resta saber se são sinceras e verdadeiras as lágrimas e a emoção de Renata nestes contatos.
Como profissional bem informada que é, suas lágrimas se assemelham mais às de crocodilo.
Por quanto tempo mais a TV Globo conseguirá enganar a maioria de seus expectadores?
*Ângela Carrato é jornalista. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI.
*Viomundo